Linguagem em Espinosa
(Chaui1981)
Em várias ocasiões, Espinosa trata explicitamente da linguagem: no capítulo XVI da parte II do Breve Tratado, no Tratado da Reforma da Inteligência, nos livros II e IV da. Ética e no capítulo VII do Tratado Teológico-Político. Além dessas referências mais alongadas, encontramos outras, mais curtas e esparsas, nos Pensamentos Metafísicos, no livro III da Ética e na Correspondência.
Curiosamente, nesses poucos textos há variação do sentido e do papel atribuídos à linguagem. Assim, no Breve Tratado, no Tratado da Reforma, nos livros II e III da Ética e nos Pensamentos Metafísicos ] a linguagem se encontra do lado do erro e situada no exterior face ao movimento interno do intelecto na busca do verdadeiro. Originando-se do e no corpo, é uma atividade imaginativa e, como tal, sujeita a todos os enganos e mal-entendidos próprios da imaginação. Fonte de quiproquós e de controvérsias, é pouco propícia à clareza conceitual exigida pelo intelecto. Em contrapartida, no livro IV da Ética e no capítulo VII do Teológico-Político,] embora conservada como afecção corpórea, é fonte de conhecimento porque a descoberta do sentido primitivo das palavras permite acompanhar o curso de suas alterações e compreender como e por que imagens concretas foram convertidas em universalidades vazias. E não só isto. No Teológico-Político, o conhecimento da história do povo hebraico, indispensável para a compreensão de seu documento, se realiza graças ao conhecimento de sua língua, pois o modo de ser hebraico se exprime em seu modo de falar e de escrever. Por outro lado, levando em consideração o fato de que entre os hebreus a escrita é privilégio dos que detêm o poder para interpretar as leis, Espinosa distingue entre a linguagem falada e a escrita, confia na primeira e desconfia da segunda, vinculando política e palavra.
Esse duplo compasso, ora afastando ora aproximando linguagem e verdade, ora separando ora reunindo representação e expressão, reaparece na Correspondência. Assim, na carta 21, dirigindo-se a Blyenbergh, que não o compreendera (e por isso mesmo se tornara agressivo), Espinosa escreve: “vejo que deveria ter conservado a linguagem de Descartes, alegando que não podemos saber como nossa liberdade e tudo que dela depende concordam com a providência divina (…) mas julgava trair a amizade que me oferecíeis se não vos respondesse segundo minha convicção profunda”.] A relação entre palavra e ideia parece ser tão extrínseca que permitiría usar a linguagem de Descartes para representar ideias espinosanas sem prejuízo para ambas. Teria bastado a Blyenbergh lembrar-se de que, no prefácio aos Princípios da Filosofia Cartesiana, Luis Meyer afirma haver diferenças entre os dois filósofos no tocante a várias ideias, especialmente a de liberdade da vontade, para que entendesse, através das palavras cartesianas, por que Espinosa diz não compreender como concordam liberdade e providência divina. No entanto, apesar de admitir a possibilidade de usar a linguagem de outrem, Espinosa apresenta sua “convicção profunda”, isto é, usa suas próprias palavras para exprimir suas próprias ideias. Neste caso, a busca de um vínculo mais interior entre palavra e conceito supõe outro tipo de relação entre eles.
