Castoriadis – O social-histórico
Castoriadis1975
O que aqui se visa é a elucidação da questão da sociedade e da questão da história, questões que só podem ser entendidas como uma e a mesma: a questão do social-histórico. Para esta elucidação, a contribuição que pode trazer o pensamento herdado é fragmentária. Talvez seja sobretudo negativa, traçado dos limites de um modo de pensar e exibição de suas impossibilidades.
Esta afirmação pode ser surpreendente, em vista da quantidade e da qualidade do que, pelo menos desde Platão e singularmente durante os últimos séculos, foi fornecido pela reflexão nesse domínio. Mas o essencial desta reflexão — salvo incidentes germinais, fulgurações sem sequência, momentos de presença intransigente da aporia — dedicou-se não a abrir e ampliar a questão, mas a encobri-la tão logo descoberta, a reduzi-la tão logo surgida. O mesmo mecanismo, e as mesmas motivações, estiveram em ação neste encobrimento e nesta redução, e no encobrimento e redução da questão da imaginação e do imaginário — e pelas mesmas razões profundas.
Por um lado, a reflexão herdada nunca conseguiu separar o objeto próprio da questão e considerá-lo por si mesmo. Já esse objeto em si se encontra quase sempre deslocado entre uma sociedade, referida a outra coisa que não ela própria e geralmente a uma norma, fim ou telos fundados alhures; e uma história que sobrevém a esta sociedade como perturbação relativa desta norma, ou como desenvolvimento, orgânico ou dialético, para esta norma, fim ou telos.
Assim, o objeto em questão, o ser próprio do social-histórico, encontrou-se constantemente deportado para outra coisa que não ele mesmo, e absorvido por este. As visões mais profundas, mais verdadeiras sobre o social-histórico, as que mais nos ensinaram, sem as quais só poderíamos balbuciar ainda na incoerência, encontram-se sempre implicitamente dirigidas por um alhures — e também isso pertence à essência e à história do pensamento: é para esse alhures que elas visam conduzir o que elas dizem do social-histórico. O que dirige em larga medida a reflexão herdada sobre a sociedade e a história, aquilo apesar do que ela aí descobre o que chega a descobrir, é, por exemplo, o lugar da sociedade e da história na economia divina da criação, ou na vida infinita da razão; ou a possibilidade, para elas, de favorecer ou entravar a realização do homem enquanto sujeito ético; ou seu caráter de avatar último do existente natural; ou a relação da matéria social e de sua corrupção ou instabilidade histórica (seu caráter de indefinido-indeterminado, apeiron, determinado por sua privação de determinidade; de sempre em devir, aei gignomenon) com a forma e norma da cidade política determinada e estável, implicando a subordinação do exame daquela às exigências desta, portanto da boa forma e da boa cidade, mesmo se se trata de negar sua possibilidade.
Assim também, representação, imaginação, imaginário nunca foram vistos por si mesmos, mas sempre referidos a outra coisa — sensação, intelecção, percepção, realidade — submetidos à normatividade incorporada à ontologia herdada, conduzidos sob o ponto de vista do verdadeiro e do falso, instrumentalizados numa função, meios julgados por sua contribuição possível à realização deste fim que é a verdade ou o acesso ao ente verdadeiro, o ente sendo (ontos on).
Assim, enfim, não houve preocupação em saber o que quer dizer fazer, qual é o ser do fazer, e o que o fazer faz ser, em virtude da obsessão existente em torno das perguntas: o que é bem fazer ou mal fazer? Não se pensou o fazer porque só se quis pensar nesses seus dois momentos particulares, o ético e o técnico. E nem se pensaram verdadeiramente estes dois, já que não se havia pensado aquilo de que eles eram momentos e se havia previamente anulado sua substância, ignorando o fazer como fazer ser e subordinando-o a essas determinações parciais, produtos do fazer mas apresentadas como absolutos imperando a partir de um alhures, o bem e o mal (cujas eficácia e ineficácia são derivadas).
Por outro lado, a reflexão da história e da sociedade situou-se sempre no terreno e nas fronteiras da lógica-ontologia herdada — e como poderia ter feito diferentemente? Sociedade e história não podem ser objeto de reflexão, se elas não são. Mas o que são elas, em que sentido são elas, como são elas? A regra clássica sustenta: não se devem multiplicar os entes sem necessidade. Numa camada mais profunda jaz uma outra regra: não se deve multiplicar o sentido de ser; é preciso que ser tenha um sentido único. Este sentido, determinado do início ao fim como determinidade — peras para os gregos, Bestimmtheit em Hegel — já por si excluía que se pudesse reconhecer um tipo de ser que escapasse essencialmente à determinidade — como o social-histórico ou o imaginário. A partir daí, sabendo ou não, querendo ou não, e mesmo nos casos onde pôde explicitamente visar o contrário, o pensamento herdado foi necessariamente levado a reduzir o social-histórico aos tipos primitivos de ser que ele conhecia ou julgava conhecer — tendo-os construído, portanto determinado — sob outro ponto de vista, a fazer deles uma variante, uma combinação ou uma síntese dos entes correspondentes: coisa, sujeito, ideia ou conceito. A partir de então, sociedade e história encontravam-se subordinadas às operações e funções lógicas já asseguradas e pareciam pensáveis por meio de categorias estabelecidas de fato para captar alguns existentes particulares, mas colocadas pela filosofia como universais.
Esses são apenas dois aspectos do mesmo movimento, dois efeitos indissociáveis da imposição, ao social-histórico, da lógica-ontologia herdada. Se o social-histórico é pensável por meio de categorias que valem para os outros entes, ele só pode ser essencialmente homogêneo a estes; seu modo de ser não coloca nenhuma questão particular, mas se deixa reabsorver pelo ser-ente total. Reciprocamente, se ser significa ser determinado, sociedade e história só são na medida em que são determinadas, ao mesmo tempo, seu lugar na ordem total de ser (como resultado de causas, meio de fins, ou momento de um processo), sua ordem interna e a relação necessária dos dois; ordens, relações, necessidades que se transacionam sob a forma de categorias, isto é, de determinações de tudo o que pode ser enquanto pode ser (pensado). O melhor que assim se pode obter é a visão hegelo-marxista da sociedade e da história: soma e sequência de ações (conscientes ou não) de uma multiplicidade de sujeitos, determinadas por relações necessárias, e por meio das quais um sistema de ideias se encarna num conjunto de coisas (ou o reflete). O que aparece na história efetiva como irredutivelmente em excesso ou em falta em relação a este esquema, torna-se então escória, ilusão, contingência, acaso — em suma, ininteligível; o que não constitui um escândalo em si mesmo, mas deve sê-lo para um filósofo para o qual o ininteligível é apenas um nome do impossível.
Mas, se decidimos considerar o social-histórico por si mesmo; se compreendemos que ele deve ser interrogado e refletido a partir dele mesmo; se recusamos eliminar as questões que coloca submetendo-o previamente às determinações do que conhecemos ou julgamos conhecer sob outro ponto de vista — então constatamos que ele faz explodir a lógica e a ontologia herdadas. Porque percebemos que ele não se insere nas categorias tradicionais, exceto nominalmente e vaziamente, que permite entrever uma lógica diferente e nova, que força a reconhecer os limites estreitos da validade daquelas categorias, e, acima de tudo, a alterar radicalmente o sentido de ser.
