Onfray (2012) – Camus, um gramscismo mediterrâneo
ONFRAY, Michel. L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.
- A dicotomia entre a esquerda do ressentimento e a esquerda dionisíaca
A esquerda dionisíaca caracteriza-se por uma afirmação radical da vida, dizendo um “sim” convicto que vira as costas à esquerda do ressentimento, a qual, alimentada pela pulsão de morte e pela negação, rejeita a existência em favor de uma destrutividade vingativa. Nietzsche analisa com precisão o mecanismo negativo que frequentemente motiva os defensores do socialismo, do comunismo e do anarquismo, os quais, sob o pretexto de acelerar o progresso, realizar a humanidade ou celebrar a fraternidade, são movidos por um desejo profundo de destruir, incendiar e massacrar, erigindo guilhotinas e ativando tribunais revolucionários que resultam no aniquilamento dos indivíduos em prol de uma comunidade totalitária.
- O socialismo de ressentimento, oposto diametralmente à visão nietzschiana, assenta-se sobre a patologia do revolucionário que aspira menos a uma potência jubilatória positiva do que à satisfação negativa de eliminar tudo aquilo que obstrui o seu acesso ao poder, reclamando para si virtudes como justiça e liberdade, embora seu verdadeiro motor seja uma animosidade secular e uma maldade visceral que explicam o derramamento de sangue perpetrado pelos profetas das utopias políticas. Nietzsche, profetizando o despotismo inédito e o terrorismo de Estado que surgiriam dessas ideologias, aponta a natureza reacionária de uma revolução que reativa a tirania que pretendia abolir, sugerindo em contrapartida um socialismo que não se paute pela vingança, mas pela criação de novas possibilidades de vida.
- A crítica ao socialismo de ressentimento não invalida a totalidade do pensamento socialista, mas convoca à leitura de obras como Aurora, onde se insurge contra a redução dos operários a meras engrenagens mecânicas e se constata que a escravidão moderna não é compensada por aumentos salariais, tampouco abolida por uma sociedade revolucionária que mantenha a servidão maquinista; propõe-se, em vez da destruição, uma criação em outro lugar, onde a classe operária, declarando-se uma impossibilidade humana enquanto classe, inaugure um nomadismo de grande estilo que afirme a liberdade e a potência sem recorrer à violência, em eco à servidão voluntária de La Boétie.
- O nietzschianismo de esquerda e a fidelidade camusiana
Albert Camus oferece o antídoto à esquerda do ressentimento através de uma postura de fidelidade às origens e de recusa às paixões tristes, uma vez que em sua obra não se encontra ódio pelas figuras de poder ou pelas instituições que marcaram a pobreza de sua infância, mas sim uma ausência de rancor contra o Estado que enviou seu pai à morte ou contra os patrões de sua mãe, o que o diferencia radicalmente dos revolucionários movidos pela vingança. O socialismo dionisíaco de Camus é solar e afirmativo, fundamentado numa promessa de não esquecimento de sua proveniência proletária, contrastando com o ambiente intelectual parisiense, como ilustrado pela postura de Camus em uma fotografia no ateliê de Picasso, onde ele prefere a companhia de um cão à das elites filosóficas como Sartre e Beauvoir.
- A crítica partilhada por Nietzsche e Camus não se dirige ao socialismo em si, mas à contaminação deste pelo ressentimento niilista, defendendo que é impossível subscrever às forças da negação em nome de um ideal de justiça; ambos comungam de uma predileção pela claridade mediterrânea e pela luz solar em oposição à gravidade germânica e europeia. O comunismo de Camus inscreve-se ontologicamente no desejo de aumentar as potencialidades da vida, recusando o despotismo não por ser socialista, mas por ser despótico, e buscando fontes de afirmação na fidelidade dionisíaca e na existência solar.
- Tipologias do socialismo e a hegemonia marxista
A oposição fundamental entre socialismo de ressentimento e socialismo de afirmação desdobra-se em diversos pares conceituais, tais como socialismo apolíneo versus dionisíaco, europeu versus mediterrâneo, cesarista versus libertário, e marxista versus proudhoniano, revelando uma luta histórica onde a primeira modalidade tende a destruir e desqualificar a segunda através de um maquiavelismo cínico. Marx exemplifica essa dinâmica ao utilizar ataques ad hominem e distinções ideológicas arbitrárias entre socialismo científico e utópico para marginalizar adversários como Proudhon e Bakunin, consolidando a hegemonia do socialismo autoritário na Europa dos séculos XIX e XX.
- A dominação do marxismo impôs uma retórica onde qualquer crítica socialista a esse modelo hegemônico era imediatamente rotulada como reacionária, burguesa ou fascista, uma sofística que vitimou obras libertárias fundamentais como O Homem Revoltado de Camus; torna-se imperativo, portanto, examinar a natureza de um socialismo antimarxista que não se confunda com a social-democracia, mas que recupere as raízes de um comunismo plotiniano e de um socialismo libertário nutrido pela alegria grega e pelo gênio argelino.
- A geografia afetiva e a missão civilizadora do Sul
O socialismo libertário de Camus é indissociável de uma geografia afetiva que privilegia a Argélia não como nação no sentido político estrito, mas como uma terra de poética dos elementos e de miscigenação cultural, onde a missão civilizadora inverte-se: é o calor ontológico e a vitalidade do Sul que devem reaquecer o corpo frigorificado e niilista da velha Europa. A amizade, nesse contexto mediterrâneo, resgata a virtude sublime dos antigos epicuristas e estoicos, contrapondo-se ao amor abstrato e diluído do cristianismo ou à superficialidade das relações intelectuais parisienses.
- A Argélia amada por Camus é caracterizada pelo cosmopolitismo e pela exuberância dos corpos que gozam o simples fato de estar no mundo, uma cidade dionisíaca onde a eternidade não é um conceito metafísico, mas uma sensação vivida no presente absoluto; essa adesão ao real imediato e a recusa de mitos consoladores implicam que o aumento da felicidade acarreta também um aumento da consciência trágica da morte. Em contraste com a retenção do desejo celebrada por Gide, Camus prefere a afirmação direta e sã dos instintos naturais, vendo na luz de Argel uma escola de sinceridade e na vida popular uma aristocracia da moral que despreza as idologias e odeia a morte.
- A herança hispânica e o quixotismo libertário
A vertente espanhola da identidade de Camus, herdada de seus ancestrais de Minorca, introduz a dimensão da sombra, da tradição libertária e do anarquismo positivo, admirando na Espanha a capacidade de federalismo e a concretização de um governo anarquista que concilia ideal e realidade, ao contrário da esquerda de ressentimento que se limita à crítica estéril. A Espanha representa a união paradoxal entre o amor e o desespero de viver, a fusão entre a ditadura militar e a poesia, oferecendo lições de bravura, honra e determinação que complementam a vitalidade argelina.
- A figura de Dom Quixote emerge como o arquétipo do herói positivo para tempos niilistas, encarnando a fidelidade a valores considerados caducos como a honra, a justiça e o desinteresse, e transformando a inatualidade em uma filosofia de resistência; para Camus, o quixotismo não é uma fuga, mas uma força de obstinação que deve ser erguida como bandeira da liberdade e da revolta individual contra a paixão pela servidão que assola a Europa.
- A genealogia grega contra o imperialismo romano
A preferência de Camus pela Grécia em detrimento de Roma fundamenta-se na oposição entre o equilíbrio e a medida helênicos e a desmesura imperialista latina, associando Roma à invenção do cesarismo, do direito constrangedor e da filosofia da história que culmina no idealismo hegeliano e no marxismo. Enquanto a Grécia platônica aponta para o céu e para a beleza, a Europa aristotélica e romana foca na terra, na guerra e na eficiência administrativa, gerando uma civilização técnica e jurídica que perdeu o contato com a natureza e o sagrado imanente.
- A Cabília é percebida como uma extensão da Grécia, partilhando a mesma paisagem geológica e ontológica, bem como valores de honra e hospitalidade, embora tenha sido degradada pela colonização romana, cristã e islâmica que impôs a suspeita sobre o corpo e a miséria material; Camus identifica na “Grécia em farrapos” da Cabília a persistência de uma dignidade ancestral que deve ser recuperada. O artista, herdeiro dessa tradição de beleza e liberdade, posiciona-se como o antídoto à História dominada pela necessidade e pela feiura, promovendo virtudes de limite e recusa ao fanatismo.
- Hédonismo político e o gramscismo mediterrâneo
O hedonismo solar defendido não é um refúgio narcísico, mas a base ética para uma política dionisíaca que aspira a uma comunidade feliz, rejeitando a separação weberiana entre ética da convicção e ética da responsabilidade em favor de uma união indissolúvel entre a moral e a ação política. A esquerda dionisíaca, vacinada pela vida contra o instinto de morte, evitou os erros colossais do século XX, como o totalitarismo e o colaboracionismo, mantendo-se fiel a uma exigência de lucidez e humanidade.
- O “gramscismo mediterrâneo” de Camus define-se pela prioridade da batalha cultural e ideológica sobre a conquista do poder político, utilizando a educação popular, o teatro e a cultura como ferramentas para uma revolução das consciências que deve preceder a revolução social; trata-se de infundir no comunismo o espírito libertário e vitalista do Mediterrâneo, espiritualizando a política através da beleza e da arte acessível a todos.
- O teatro como metáfora política e escola de verdade
O teatro constitui para Camus uma metáfora da sociedade ideal, onde a interdependência fraterna entre os membros da equipe coexiste com a liberdade individual e a responsabilidade coletiva, oferecendo um antídoto ao isolamento egoísta do intelectual de gabinete e impondo um contato rigoroso com a realidade física e material. Longe de ser o lugar da ilusão, o palco é o local da verdade onde a impostura é impossível e onde a autenticidade é testada sob a luz crua dos projetores, servindo também como uma ascese corporal e espiritual que disciplina o indivíduo.
- A prática teatral em Argel, através do Teatro do Trabalho e do Teatro da Equipe, materializou esse projeto de educação popular e militância cultural, levando obras complexas de Ésquilo, Malraux e da literatura clássica a um público operário e heterogêneo, provando que a exigência artística é compatível com a acessibilidade democrática. As encenações de O Tempo do Desprezo e Revolta nas Astúrias serviram como veículos para a afirmação de valores antifascistas, libertários e humanistas, celebrando a revolta individual contra o absurdo da história e a solidariedade na dor.
- A refundação solar da esquerda
A ruptura de Camus com a ortodoxia do Partido Comunista, exacerbada pela sua abordagem cultural independente e pelas intrigas internas, não diminuiu sua convicção na necessidade de uma esquerda renovada pelo contato com o Mediterrâneo, a qual ele promoveu na inauguração da Casa da Cultura em 1937. O objetivo era disputar o conceito de Mediterrâneo com a direita nacionalista, redefinindo-o não como um passado de glória racial ou imperial, mas como um futuro de vitalidade internacionalista e de união entre Oriente e Ocidente.
- A verdadeira civilização, na ótica da esquerda dionisíaca, coloca a verdade antes da fábula e a vida antes do sonho, promovendo um coletivismo que se distingue do modelo russo pela sua incorporação da luz, da diversidade e da alegria trágica; Tipasa ergue-se contra Praga como o símbolo de uma política que não sacrifica o presente em nome de um amanhã hipotético, mas que encontra na imanência do mundo, na coragem quixotesca e na fraternidade solar os fundamentos de uma revolta perene contra o niilismo.
