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Onfray (2012) – Camus, Introdução

ONFRAY, Michel. L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.

  • A Dicotomia entre a Filosofia Existencial Dinamarquesa e o Sistemismo Prussiano

A análise da história da filosofia revela uma bifurcação fundamental entre duas metodologias antagônicas de pensamento, sendo a primeira representada pela linhagem dinamarquesa de Soren Kierkegaard, que concebe a filosofia como uma técnica de construção de subjetividade e escultura de si, na qual a existência se torna uma obra de arte singular e a doutrina serve como bússola para ordenar o caos íntimo, recuperando o sentido antigo da filosofia como modo de vida anterior à sua contaminação teológica e acadêmica; em oposição, a tradição prussiana, simbolizada por Hegel, reduz a vitalidade e a multiplicidade do mundo a arquiteturas conceituais sistemáticas e inabitáveis, onde o real é submetido à rigidez do conceito e a paixão pelo verbo afasta o indivíduo da experiência concreta das coisas, transformando a disciplina em um exercício de pedantismo e abstração que pouco serve àqueles que buscam dar sentido à própria vida.

  • A Tradição da Clareza Francesa versus a Obscuridade Germânica

Existe uma guerra estilística e epistemológica secular que opõe a tradição filosófica francesa, caracterizada pela linha clara e pela prosa acessível de pensadores como Montaigne, Descartes, Diderot, Maine de Biran, Auguste Comte, Bergson e Bachelard, à tradição do idealismo alemão e da universidade prussiana inaugurada por Kant, que valoriza a complexidade sintática e a criação de neologismos obscuros como garantias de profundidade teórica; neste contexto, Albert Camus insere-se decididamente na linhagem francesa da clareza, escrevendo para ser compreendido e para auxiliar na existência, o que lhe vale o desprezo da casta filosófica dominada pelo modelo hegeliano e sartriano, para a qual a inteligibilidade é sinônimo de superficialidade e a escrita obscura é a única digna de comentários acadêmicos, gerando o paradoxo de autores que escrevem para não serem lidos, mas glosados, enquanto Camus acumula leitores reais para além das salas de aula.

  • A Distinção entre o Filósofo Existencial e a Moda Existencialista

É imperativo dissociar a figura de Albert Camus do movimento existencialista que se tornou um fenômeno de moda em Saint-Germain-des-Prés, associado ao casal Sartre e Beauvoir, ao jazz, ao álcool e à boemia, pois embora Camus tenha convivido nesse meio, ele rejeita a etiqueta e a frivolidade de uma doutrina que, quando vulgarizada, transforma-se em um niilismo de pose ou em uma justificativa para o não sentido; Camus posiciona-se como um filósofo existencial que, recusando tanto a divindade da religião quanto a divindade da História, busca formular uma ética e um art de vivre para tempos niilistas, diferenciando-se radicalmente da ontologia fenomenológica de O Ser e o Nada, obra massiva e pouco lida que serviu de alicerce teórico para uma geração que muitas vezes preferiu a imagem à leitura atenta.

  • A Fabricação de Lendas Jornalísticas e a Verdade da Obra

A reputação de um filósofo na modernidade é frequentemente o resultado de um acúmulo de mal-entendidos propagados por uma imprensa preguiçosa e incompetente, que substitui a leitura crítica das obras pela disseminação de perfis pitorescos e superficiais, criando lendas que obscurecem a verdadeira natureza do pensador, como a falsa imagem de Camus como o profeta do absurdo desesperante, quando na realidade sua filosofia diagnostica o niilismo precisamente para ultrapassá-lo através da revolta e da afirmação da vida; embora Camus critique a leitura puramente autobiográfica da obra, admite-se que seus escritos traçam a história de suas nostalgias e tentações, revelando um pensamento enraizado na luz solar da Argélia e em uma fidelidade instintiva à vida, evocando um Zaratustra mediterrâneo que diz sim à existência mesmo na dor.

  • A Sátira à Vacuidade Filosófica Parisiense em O Improviso dos Filósofos

Através da peça teatral O Improviso dos Filósofos, escrita em 1947 e mantida na obscuridade, elabora-se uma crítica feroz e molièresca aos costumes intelectuais de Paris, retratada como a caverna de Platão onde se tomam sombras por realidade, personificando em Monsieur Néant a figura de Sartre e expondo o ridículo de uma conversão ao existencialismo que nega a existência do amor, das intenções e da liberdade em favor de um determinismo da ação e da responsabilidade absoluta; a peça desmonta a retórica oca que justifica qualquer absurdo lógico, como a tese de que só se é livre após a morte ou a contradição política de votar em tiranos para garantir a liberdade futura, contrastando essa verborragia com a realidade material e inegável de um presunto, que resiste às elucubrações sobre o nada e o ser, evidenciando o perigo de uma filosofia praticada como jogo retórico desligado da vida real e capaz de justificar atrocidades como os campos de concentração.

  • A Oposição Schopenhaueriana entre o Professor e o Filósofo

Retomando a distinção estabelecida por Schopenhauer e admirada por Nietzsche, estabelece-se uma fronteira rígida entre o professor de filosofia, um funcionário que vive da filosofia dissecando pensamentos alheios sem compromisso existencial com o que ensina, e o verdadeiro filósofo, que vive a filosofia, unificando teoria e prática, pensamento e ação, de modo que sua biografia seja o reflexo visível de sua sabedoria; enquanto Jean Grenier, mestre de Camus, exemplifica o hiato entre a doutrina taoísta do não-agir e uma vida de ações contraditórias, Albert Camus encarna a coerência ética absoluta, oriunda de sua origem humilde e da moralidade silenciosa e digna de sua mãe, mantendo-se fiel aos valores de retidão e honra dos pobres, recusando o intelectualismo desencarnado que trata as ideias como meros brinquedos dialéticos.

  • A Desconstrução da Lenda Sartriana e a Restauração Histórica de Camus

Faz-se necessário demolir a lenda negativa construída por Sartre e seus seguidores, que tentaram reduzir Camus a um romancista entre filósofos e filósofo entre romancistas, um autodidata incapaz de compreender textos complexos ou um pensador reacionário a serviço do colonialismo, para restaurar a verdade histórica de um filósofo maior do século XX, que foi um leitor livre e voraz, um mestre do estilo capaz de adequar a forma ao conteúdo, um nietzschiano de esquerda crítico do próprio Nietzsche, um anarquista positivo próximo de Proudhon e um anticolonialista precoce; a história revela um pensador hedonista, pagão e pragmático, cuja obra resiste ao tempo justamente por ter rejeitado o academicismo estéril em favor de uma filosofia solar e humana, provando que a verdadeira prova do filósofo reside na vida filosófica que ele conduz.

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