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Onfray (2012) – Camus, experiência interior do comunismo

ONFRAY, Michel. L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus. Paris: Flammarion, 2012.

A desconstrução da lenda pedagógica e o paradoxo do aconselhamento político

A narrativa histórica rigorosa, quando contraposta à lenda dourada que envolve a relação entre Albert Camus e seu professor Jean Grenier, revela uma dissonância fundamental situada entre agosto de 1935 e 1937, período em que o jovem filósofo, então com vinte e dois anos, adere ao Partido Comunista Francês sob o incentivo direto de um mestre que, paradoxalmente, nutria um anticomunismo visceral; tal constatação exige o desmantelamento da imagem idílica de um salvamento intelectual do órfão pobre pelo sábio mentor, substituindo-a por uma realidade mais sombria onde a orientação do professor conduziu o discípulo a uma experiência destinada à decepção ontológica e política, levantando a questão de como um pensador que denunciava o comunismo como uma seita de abdicação da razão pôde, conscientemente, encaminhar seu aluno para tal precipício ideológico, agindo talvez não como o Sócrates solar da tradição, mas como um cético inseguro que experimentava na existência alheia as escolhas que ele próprio não ousava realizar.

A análise da obra teórica de Jean Grenier, especificamente o Ensaio sobre o espírito de ortodoxia, composto majoritariamente na mesma época da adesão de Camus, demonstra que o mestre possuía plena lucidez sobre a natureza perniciosa dos totalitarismos, condenando no comunismo a mutilação da inteligência, o dogmatismo que obriga o indivíduo a pensar como os mais estúpidos para não ser importunado, a teleologia simplista da história e a justificação dialética da violência e dos campos de concentração em nome de um futuro radioso; a coexistência cronológica entre esta crítica devastadora do marxismo — entendido como uma teologia materialista que exige fé e submissão — e o conselho dado a Camus para que se filiasse ao Partido sugere uma duplicidade perturbadora, onde o teórico do espírito crítico atuava na esfera privada como um agente de engajamento naquilo que ele publicamente repudiava como suicídio intelectual.

O perfil psicológico e as contradições do "an-arquista" conservador

A postura política de Jean Grenier, autodefinida como uma “an-arquia” hifenizada para denotar uma atitude espiritual de autonomia individual e desconfiança do Estado, revela-se, sob escrutínio biográfico, a manifestação de uma fragilidade psicológica profunda e de um conservadorismo latente, onde o ideal taoista do “não agir” serviu frequentemente de máscara para a indecisão patológica e para um distanciamento elitista das massas; este perfil de um homem reformado do serviço militar por transtornos mentais, incapaz de contatos físicos e atormentado por escrúpulos paralisantes, contrasta violentamente com a figura lendária do sábio mediterrâneo, desenhando antes a silhueta de um pirrônico angustiado que, embora pregasse a liberdade e a escolha em obras como O Escolha ou Conversas sobre o bom uso da liberdade, mostrava-se na vida prática incapaz de assumir as consequências de seus próprios imperativos filosóficos, transferindo para outrem a responsabilidade da ação engajada.

O exame impiedoso do diário Sob a Ocupação e de outros registros históricos desmonta a suposta neutralidade filosófica de Grenier, expondo um alinhamento consistente com posições reacionárias que incluíam uma admiração duradoura por Maurras — cuja conduta podia ser detestada, mas cujas linhas gerais eram aprovadas —, um apoio ao Acordo de Munique, uma passividade cínica diante da Resistência Francesa justificada pela superioridade bélica alemã e uma complacência ingênua com o regime de Vichy e a figura do Marechal Pétain; mais grave ainda é a constatação de sua colaboração com a imprensa sob controle inimigo, como a revista Comœdia, e a ocupação de cargos universitários vagos devido à expulsão de professores judeus como Claude Levi-Strauss e Vladimir Jankelevitch, tudo isso permeado por um antissemitismo casual e uma hostilidade aberta, posteriormente manifestada, contra a independência da Argélia e os direitos políticos dos árabes, revelando um abismo entre a ética do desapego oriental que professava e o oportunismo mesquinho de sua sobrevivência material.

A redenção pública e o julgamento privado na obra de Camus

A despeito do conhecimento progressivo dessas falhas morais e políticas, Albert Camus orquestrou uma redenção pública para seu antigo mestre após a Libertação, oferecendo-lhe espaço no jornal Combat e mantendo, até o fim da vida, uma fachada de piedade filial exemplificada na prévia escrita para a reedição de As Ilhas; contudo, a literatura póstuma e os documentos privados, notadamente o manuscrito de O Primeiro Homem, revelam a verdadeira dimensão do julgamento de Camus, que, através do personagem Malan — transparente transposição de Grenier —, retrata um homem amargo, cínico, incapaz de generosidade afetiva e consumido pelo medo da morte, estabelecendo uma distinção crucial entre a dívida intelectual, que é impagável e eterna, e a admiração humana, que fora corroída pela constatação da pequenez de caráter do mentor.

A complexa dinâmica de “escrever e apagar” presente nas notas de Camus indica um desejo de fixar a verdade histórica sobre a natureza fútil e ressentida de Grenier, ao mesmo tempo em que se preservava a lenda necessária da iniciação espiritual; essa tensão não resolvida demonstra que, para Camus, a gratidão pelo acesso ao mundo da cultura e do pensamento superava as falhas da pessoa empírica que abriu essas portas, embora a correspondência e os diários mostrem um distanciamento progressivo e uma lucidez dolorosa sobre a incapacidade de Grenier de amar ou de se alegrar genuinamente com o sucesso alheio, culminando na percepção de que o mestre era um simulador que ostensivamente jogava o jogo do desapego enquanto secretamente ansiava pelos bens e reconhecimentos mundanos.

A síntese filosófica improvável: Plotino e o Comunismo

A adesão de Camus ao comunismo em 1935 não deve ser lida sob a ótica do marxismo ortodoxo, mas sim como uma extensão idiossincrática de seus estudos sobre a metafísica cristã e o neoplatonismo, onde a leitura das Enéades de Plotino (transliterado Plotino) forneceu a estrutura conceitual para um engajamento político que visava uma ascese espiritual e a construção de uma comunidade justa, análoga ao projeto frustrado de Platonópolis; para o jovem Camus, influenciado pela luminosidade de Tipasa e pela miséria de Belcourt, o comunismo representava não o materialismo histórico árido, mas uma “preparação” quase religiosa para atividades espirituais superiores, uma tentativa de reconciliar o sentido de eternidade plotiniano com a luta concreta contra o sofrimento humano, rejeitando a interposição de O Capital entre a vida e o homem em favor de uma experiência de fraternidade solar.

Esta fusão singular entre o pensamento grego de Plotino e a militância de esquerda permitia a Camus conceber o movimento político como uma dialética de procissão e retorno, onde a ascensão à contemplação do Uno-Bem exigia, subsequentemente, a redescida à caverna social para auxiliar os demais, integrando assim a estética, a moral e a política numa unidade coerente que escapava totalmente à compreensão burocrática do Partido Comunista; a correspondência da época revela que Camus buscava um comunismo que, corrigido pela sabedoria mediterrânea e despido de seus excessos dogmáticos, pudesse restaurar a dignidade dos humildes sem sacrificar a beleza do mundo, uma visão que tentava harmonizar o “sim” nietzschiano à vida com o “não” revolucionário à injustiça, sob a égide silenciosa e contraditória da aprovação de Grenier.

A ruptura ética e o legado da decepção

O rompimento definitivo de Camus com o Partido Comunista em 1937 não decorreu de um cansaço da militância cotidiana ou de divergências teóricas abstratas, mas de uma recusa ética intransigente em trair seus companheiros nacionalistas argelinos, notadamente os membros da Estrela Norte-Africana de Messali Hadj, que passaram a ser perseguidos e denunciados pelo próprio PCF em nome de uma tática de frente popular e de alinhamento com os interesses coloniais momentâneos da França; ao preferir a fidelidade aos homens concretos e à justiça imediata em detrimento da disciplina partidária e das manobras geopolíticas, Camus demonstrou a primazia da honestidade sobre a ideologia, marcando o início de sua longa solidão política e o afastamento do modelo de “felicidade sem verdade” que Grenier cinicamente lhe propusera como justificativa para a adesão.

A retrospectiva de Jean Grenier sobre este episódio, formulada décadas depois, expõe a vacuidade de sua defesa, que reduziu o engajamento de Camus a uma estratégia de carreira literária e a uma busca por felicidade mundana dispensada da verdade, revelando uma incompreensão fundamental da natureza do discípulo; enquanto Grenier acreditava que a verdade e os seus tormentos deveriam ser reservados a uma elite desafortunada, Camus provou, através de sua vida e obra, que a recusa em subscrever a tolices em nome de um ideal de justiça não era apenas uma questão de estética, mas o imperativo central de uma honestidade intelectual que o mestre, em sua sabedoria simulada e em suas omissões históricas, jamais conseguiu alcançar plenamente.

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