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Heidegger e a antropologia

Martin Buber, Le problème de l’homme, Aubier, 1962, pp. 67-70.

Relativamente ao ponto de partida de Heidegger, devemos perguntar-nos se é antropologicamente justificável separar o Dasein da vida humana real, se as afirmações sobre uma existência assim libertada podem ainda ser consideradas afirmações filosóficas sobre o homem real, e se a “pureza química” deste conceito de existência não torna fútil o confronto entre a doutrina e a pressuposição da realidade, não torna fútil o teste a que toda a filosofia e, portanto, toda a metafísica deve poder submeter-se.

…Para explicar o que quero dizer, vou escolher um dos capítulos mais ousados e profundos da obra de Heidegger, aquele que trata da relação do homem com a morte. Aqui tudo é perspectiva: trata-se, de facto, da forma como o homem encara o seu fim, se tem a coragem de antecipar a totalidade da existência, que só revela a sua chave na morte. Mas a morte não pode limitar-se ao fim… A morte está também aqui, no segundo presente, como uma força em luta com a força da vida; cada posição nesta luta co-determina toda a nossa constituição neste momento. E se o homem contempla agora o seu fim, o modo como o faz não pode ser separado da realidade de que o poder da morte é dotado neste preciso momento. Por outras palavras, o homem como existência, como compreensão do Ser na perspectiva da morte, não pode ser separado do homem como ser, como ser que começa a morrer assim que começa a viver, e que nunca pode ter o viver sem o morrer, nunca a força que preserva sem a força que destrói e dissolve.

…As categorias de Heidegger abrem um sector parcial e estranho da vida: não uma fatia da totalidade da vida real, tal como a vivemos, mas um sector parcial que deve a sua independência ao facto de amarrarmos o organismo num determinado ponto para interromper a circulação do sangue e de observarmos o que acontece na parte amarrada. Entramos num estranho compartimento da mente; mas temos a impressão de que o terreno que pisamos é um quadro onde se joga um jogo, cujas regras aprendemos à medida que avançamos… e que só pode existir porque um dia decidimos jogar este jogo engenhoso e jogá-lo precisamente desta forma.

…A título de explicação, escolho a noção de culpa (Schuld). Heidegger, que parte sempre de l’Alltäglichkeit, da vida quotidiana, toma aqui como ponto de partida uma situação oferecida pela língua alemã. De fato, o mesmo radical schuld é utilizado para dizer que se “deve” algo a alguém e para dizer que se é “culpado” de algo. Daí a progressão de Heidegger para uma situação em que os dois sentidos do termo coincidem: alguém se torna a razão de uma falta na consciência de outrem. Mas isto continua a ser, segundo ele, apenas uma dívida (Verschuldung) e não o ser originário e propriamente dito culpado (Schuldigsein) do qual resulta em verdade e que o torna possível… A existência é “culpada” no mais profundo do seu Ser. E se o é, é porque não se realiza, permanece presa no humano supostamente universal, no “nós” e não conduz ao Ser do seu próprio eu, o eu do homem…

Heidegger tem razão quando pensa que, para compreender a dívida, temos sempre de voltar a um ser-culpável originário. Ele tem razão em pensar que nos é possível descobrir um ser originalmente culpado. Mas não o poderemos fazer amarrando uma parte da vida, a parte em que o Dasein se comporta em relação a si mesmo e ao seu próprio Ser. Só o conseguiremos se nos familiarizarmos intimamente com a totalidade da vida, sem redução, com a vida em que o ser humano individual se comporta em relação a algo diferente, precisamente, de si próprio. Não é o jogo enigmático do trictrac que eu jogo comigo mesmo que faz a vida acontecer; é ser confrontado com o estado de presença de um Ser com o qual eu não concordei com as regras do jogo, com o qual não é possível concordar com as regras do jogo.

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