Bouveresse (2005:98-99) – filosofia a varejo
(Bouveresse2005)
Em O homem sem qualidades, Musil constatou que “hoje em dia, ninguém mais senão os criminosos atreve-se a incomodar os outros sem recorrer à filosofia”. (Musil1982:230-1) E se surpreendeu com o paradoxo “comercial” extremamente singular que faz com que, no exato momento em que a situação dos fornecedores de filosofia “a granel” tornou-se inteiramente problemática, essa mercadoria decerto nunca tenha sido tão onipresente nem tão sistematicamente vendida “no varejo”: “A filosofia a varejo é hoje praticada com abundância tão apavorante, que já é só nas lojas que se pode receber alguma coisa que não traga de quebra uma concepção do mundo, ao passo que, a respeito da filosofia a granel, impera uma desconfiança acentuada. Ela é até francamente tida como impossível”. (Musil1982:304) Essa tendência ampliou-se consideravelmente desde então, uma vez que a “concepção do mundo” é hoje uma mercadoria da qual praticamente já não se pode escapar em parte alguma, e toda sorte de “amadores” consideram-se cada vez mais obrigados a nos expor ou nos infligir a deles. O paradoxal, evidentemente, é que, ao mesmo tempo, os filósofos profissionais hesitam mais e mais em fazê-lo. A razão talvez esteja em que, como diz Musil, quod licet bovi non licet Jovi, ou seja: “A época em que os sábios duvidam de conseguir ter uma visão de mundo fez das visões de mundo uma propriedade popular”.] Mas, em todo caso, não é em uma razão desse tipo que se pensa habitualmente. Segundo uma censura que lhes tem sido dirigida, de fato, em quase todas as épocas, os filósofos profissionais são acusados de haver abandonado inteiramente a discussão das “verdadeiras” questões filosóficas, justamente aquelas para as quais deveriam, por profissão, tentar fornecer respostas. O que se tornou impossível ou inaceitável não é a filosofia em si, mas o que os “especialistas” fizeram dela.
