User Tools

Site Tools


borella:sujeito-puro-face-a-pura-natureza-e-a-pura-cultura

Sujeito puro face à pura natureza e à pura cultura

(Borella1990) Relativamente a esta natureza radicalmente colocada, que encerra a existência no círculo rigoroso de seu determinismo, a cultura aparece necessariamente como não-natural, ou mesmo como anti-natureza. É então somente que ela é colocada em si mesma e que pode ser concebida como cultura pura. No entanto, ainda não estamos de posse de todos os elementos de nossa problemática. É bem a polaridade natureza-cultura que delimita o campo especulativo da filosofia europeia, mas esta polaridade implica um terceiro termo em relação ao qual precisamente aparece esta oposição constitutiva: trata-se do sujeito cognitivo. Este terceiro termo é implicado duplamente e pela posição da natureza e pela da cultura. Pela posição da natureza, é o que mostra exemplarmente a filosofia cartesiana. O fechamento ontológico da realidade cósmica que está inteiramente encerrada na substância extensa (como se a extensão pudesse ser uma substância!), ou seja, identificada à exterioridade como tal, suscita a posição, polarmente contraditória, de um sujeito pensante reduzido à pura interioridade face à pura exterioridade. Mas esta posição não é apenas contraditória (o sujeito cognitivo é a não-exterioridade), ela é também exigida, mais ou menos conscientemente em Descartes, pela lógica do mecanicismo estrito. Pois há dificuldade em colocar um objeto absoluto, um em-si puramente físico, puramente e exclusivamente “lá”. É preciso para isso que o pensamento que coloca tal em-si e ao qual todo o resto é necessariamente relativo, pense a si mesmo como olhar absoluto, não relativo ao que coloca, e que se identifique à razão universal, radicalmente “exterior” à natureza. Descartes acredita assim salvar a “espiritualidade da alma”, e, aliás, é aí de certo modo seu álibi, sua garantia religiosa. Mas a que preço? É preciso eliminar do sujeito cognitivo tudo o que o enraíza no mundo, tudo o que, nele, resulta de sua situação de ser mundano, historicamente e geograficamente determinado. Ora, de onde vêm estes traços “cósmicos” que permanecem em nosso espírito e o ligam ao mundo em que vive? Essencialmente da educação, ou seja, da cultura, pois uma é inseparável da outra. Como disse H. Gouhier, o que Descartes quer matar em si mesmo é a criança, ou seja, aquele que foi “informado” pela cultura recebida: “há bem um escândalo da condição humana: aos olhos de Platão, é que a humanidade seja o exílio da alma; aos olhos de Descartes, é que o homem comece por ser uma criança” ]. Trata-se de expulsar da alma adulta tudo o que permanece da educação recebida; tratamento de choque: “é menos um parto (à maneira da psicanálise) do que um infanticídio” ]. É por isso que Descartes propõe na primeira parte do Discurso do Método o primeiro modelo de uma revolução cultural. Mas, na verdade, esta revolução é individual. Ela se passa no interior de uma única e mesma pessoa ], e é por isso que o afastamento do sujeito pensante em relação às suas próprias determinações culturais não leva Descartes a colocar a cultura em si mesma, esta sendo sempre considerada como um estado do sujeito, uma prevenção ou um preconceito. Que ela se difunda e se espalhe na sociedade europeia — da qual Descartes não é, aliás, senão um porta-voz — traduzir-se-á necessariamente pela oposição do homem universal, o homem comum, ou ainda aquele que Rousseau chama o “homem abstrato” ]. à diversidade das culturas particulares. O tema, filosófico em Descartes, torna-se sociológico e etnográfico assim que se pensa nos homens em seu conjunto e na diversidade das civilizações e das sociedades. A razão universal dá lugar ao homem universal. “Depois de ter comparado tantos estratos e povos”, diz Rousseau, “retirei o que era de um povo e não de outro, de um estado e não de outro, e não considerei como pertencendo incontestavelmente ao homem senão o que era comum a todos em qualquer idade, qualquer estrato e qualquer nação que fosse” ]. Certamente, há alguma diferença entre o sujeito pensante cartesiano e o homem abstrato de Rousseau, pois este último parece desprovido de razão. No entanto, eles desempenham na realidade o mesmo papel: o primeiro é o que resta quando a dúvida metódica expulsou toda existência e toda essência, o segundo é o que resta quando a hipótese metodológica expulsou do homem concreto tudo o que a diversidade dos tempos e dos lugares acrescentou. Por outro lado, do que o homem natural é privado, segundo Rousseau, não é tanto da razão que existe em estado virtual ], quanto de seu uso do qual ele não tem o que fazer. Assim que as relações humanas o exigem, ela aparece, e então, o que fala nela, é bem a voz da natureza tal como Deus a ordenou: “dizer-me para submeter minha razão, é ultrajar seu autor” ]. Não poderia ser de outra forma: colocar a cultura em si mesma, elaborar um conceito fechado que poderá levar mais tarde à constituição das ciências humanas, só é possível se a libertarmos daquele que é seu suporte natural e por quem ela existe: o homem. Pois a cultura não existe sozinha. Na medida em que ela “informa”, é preciso uma matéria na qual esta informação se tornará visível e manifesta, o próprio homem. Logo, abstrair a cultura e colocá-la em si mesma, é libertá-la de seu portador humano e, consequentemente, é abstrair este último, por sua vez.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/borella/sujeito-puro-face-a-pura-natureza-e-a-pura-cultura.txt · Last modified: by 127.0.0.1