Referente linguístico e referente simbólico
(Borella1990)
Aqui está, portanto, o signo simbólico privado de sua referência, ou seja, privado da capacidade de se relacionar com uma realidade transcendente, capacidade que o uso do signo sagrado implica em seu regime próprio. Essa capacidade referencial, a revolução galilaica tornou-a ontologicamente impossível, por um lado negando a existência de um “mundo” invisível e transcendente, por outro negando correlativamente sua eventual imanência nas formas sensíveis. Esse efeito de uma revolução cosmológica sobre o signo simbólico é inconcebível se não admitirmos, como nós, que o referente simbólico, embora diferente de um simples denotado, de um referente objetivo, não deixa de ser indissociável do símbolo, e até mesmo está muito mais intimamente ligado a ele do que no caso do signo linguístico. Como mostramos em O mistério do signo, a redução que Saussure opera sobre o signo linguístico, amputando-o de seu referente (o signo é uma unidade de duas faces: significante e significado), levanta muitas dificuldades, mas não é impossível. Ela corresponde ao que chamamos de fechamento epistêmico do conceito, aquele pelo qual a linguística transforma a língua em um objeto científico; portanto, ela se harmoniza naturalmente com a geometrização galilaica do real físico. Afinal, também não existe reta ou plano sem espessura; no entanto, é a essas formas abstratas que Galileu reduz os corpos. Mas uma tal operação é inaceitável para o símbolo, porque o que restaria dele, se o amputássemos de seu referente, não seria mais de modo algum um símbolo. Só há signo simbólico se a realidade que ele significa se faz presente nele mesmo em virtude de uma analogia participativa.
Essa presentificação — ou presença do referente no símbolo — verifica-se inclusive onde o símbolo é constituído apenas de signos linguísticos, pois, como diz S. Tomás: “são as coisas significadas pelas palavras que podem ser signos de outras coisas” (S. th., I, q. 1, a. 10), e não as próprias palavras. Aí está toda a diferença entre o metafórico e o simbólico. Essas duas categorias podem evidentemente aplicar-se a uma única e mesma expressão, mas a primeira considera apenas o procedimento retórico, a outra a essência profunda das coisas. Dizer do leão que ele é “o rei dos animais” é uma metáfora porque se transporta (sentido etimológico de metáfora) o sentido da palavra rei para fora de seu contexto político natural. Dizer que o leão simboliza a realeza no mundo animal é dizer que a essência real se faz presente nele.
É, portanto, o referente que deve ser levado em conta, ou melhor, toda uma ontologia da referência, que envolve igualmente o significante e o sentido. Uma vez que o símbolo significa por presentificação, é necessário tanto que a realidade significada seja de uma ordem diferente da do símbolo, quanto que ela possa se fazer presente nele. É preciso que haja, ao mesmo tempo, descontinuidade existencial e continuidade essencial. Sem a primeira, não há signo; sem a segunda, não há simbólico. O que a física mecanicista destruiu foi a ontologia referencial de um cosmos aberto ao espiritual e, reciprocamente, de um espiritual e de um divino que não recusam encarnar-se em formas cósmicas. Ela não apenas destruiu o objeto ao qual o signo simbólico se referia, mas ainda mais tornou impossível o modo como ele se referia a ele. E isso é o mais importante, pois esse modo de referência caracteriza precisamente o signo simbólico, e mesmo a destruição do objeto não é senão a consequência da impossibilidade do modo referencial próprio do símbolo. Consequência inevitável: a negação do Transcendente sucede ao desaparecimento dos signos da transcendência, uma vez que, precisamente, Ele só pode afirmar-se por modo simbólico, ou seja, por presentificação. Em outras palavras, a “ciência” não nega Deus, ela nega os signos do divino, ou, mais exatamente ainda, ela nega que eles sejam signos do divino. Como já recordamos, o referente simbólico não é um objeto denotado, à maneira do referente linguístico, mas trata-se de uma potencialidade referencial sintética, que só uma hermenêutica explícita atualiza e define, provisoriamente. Provisoriamente, porque, sendo um ato, ou seja, um acontecimento, a hermenêutica está sempre para ser retomada, recomeçada: todo homem deve compreender por si mesmo. De certa forma, a linguagem fala sempre “de si mesma”, enquanto o símbolo só fala graças à hermenêutica que faz ressoar e ouvir sua palavra (o que não significa de modo algum que ela a invente ]). Por si mesmo, o signo linguístico é quase nada; sua naturalidade está como que extenuada, tudo nele é função significante. Ao contrário, o signo simbólico é tudo, ou quase tudo. É na naturalidade e na própria substância do significante que reside uma função significante que só fala àquele que a escuta e a entende.
