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Lima Vaz (EF2EC:11-16) – êthos e éthos

Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo (geloion) querer demonstrar a existência do ethos, assim como é ridículo querer demonstrar a existência da physis ]. Physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos senão a transcrição da physis na peculiaridade da praxis ou da ação humana e das estruturas histórico-sociais que dela resultam. No ethos está presente a razão profunda da physis que se manifesta no finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento do diferente no espaço da liberdade aberto pela praxis ]. Embora enquanto autodeterminação da praxis o ethos se eleve sobre a physis, ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da natureza ao fixar-se na constância do hábito (hexis). Demonstrar a ordem da praxis, articulada em hábitos ou virtudes, não segundo a necessidade transiente da physis, mas segundo o finalismo imanente do logos ou da razão, eis o propósito de uma ciência do ethos tal como Aristóteles se propõe constituí-la, coroando a tradição socrático-platônica ]. A Ética alcança, assim, seu estatuto de saber autônomo, e passa a ocupar um lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do Ocidente ] e passa a ocupar um lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do Ocidente.].

O termo ethos é uma transliteração dos dois vocábulos gregos êthos (com eta inicial ) e éthos (com épsilon inicial ). É importante distinguir com exatidão os matizes peculiares a cada um desses termos ]. Por outro lado, se a eles acrescentarmos o vocábulo hexis, de raiz diferente, teremos definido um núcleo semântico a partir do qual será possível traçar as grandes linhas da Ética como ciência do ethos. ]

A primeira acepção de ethos (com eta inicial ) designa a morada do homem (e do animal em geral). O êthos é a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do êthos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxiológico durável, estilo de vida e ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações ]. Por conseguinte, o espaço do ethos enquanto espaço humano, não é dado ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído. Nunca a casa do êthos está pronta e acabada para o homem, e esse seu essencial inacabamento é o signo de uma presença a um tempo próxima e infinitamente distante, e que Platão designou como a presença exigente do Bem, que está além de todo ser (ousia) ou para além do que se mostra acabado e completo ].

É, pois, no espaço do ethos que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical de dever-ser ou do bem. Assim, na aurora da filosofia grega, Heráclito entendeu o êthos na sua sentença célebre: êthos anthrôpo daímôn ]. O êthos é, na concepção heraclítica, regido pelo logos,] e é nessa obediência ao logos que se dão os primeiros passos em direção à Ética como saber racional do êthos, assim como irá entendê-la a tradição filosófica do Ocidente.]

A segunda acepção de ethos (com épsilon inicial ) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. É, portanto, o que ocorre frequentemente ou quase sempre (pollákis), mas não sempre (aeí), nem em virtude de uma necessidade natural. Daqui a oposição entre éthei e physei, o habitual e o natural. O ethos, nesse caso, denota uma constância no agir que se contrapõe ao impulso do desejo (órexis). Essa constância do ethos como disposição permanente é a manifestação e como que o vinco profundo do ethos como costume, seu fortalecimento e o relevo dado às suas peculiaridades. O modo de agir (trópos) do indivíduo, expressão da sua personalidade ética, deverá traduzir, finalmente, a articulação entre o êthos como caráter e o éthos como hábito.

Mas, se o éthos (com épsilon inicial ) designa o processo genético do hábito ou da disposição habitual para agir de uma certa maneira, o termo dessa gênese do éthos - sua forma acabada e o seu fruto - é designado pelo termo hexis, que significa o hábito como possessão estável, como princípio próximo de uma ação posta sob o senhorio do agente e que exprime a sua autárkeia, o seu domínio de si mesmo, o seu bem. Entre o processo de formação do hábito e o seu termo como disposição permanente para agir de acordo com as exigências de realização do bem ou do melhor, o ethos se desdobra como espaço da realização do homem, ou ainda como lugar privilegiado de inscrição da sua praxis.

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