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Kostas Axelos (2023) – Humano no Mundo

AXELOS, Kōstas. The game of the world. Tradução: Justin Clemens; Tradução: Hellmut Monz. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2023.

I. A Definição Paradoxal e a Condição do Humano

  • O ser humano define-se, o que aparentemente define todas as coisas, por uma multiplicidade de perspectivas contraditórias: como ente extremamente frágil e existente terrível, como medida de todas as coisas e animal racional, como imago Dei e fundamento subjetivo-objetivo da objetividade, como corpo-alma-espírito (ora enfatizando um lado, ora buscando a síntese), como sujeito, animal social e político, trabalhador genérico e ser socializante, como pessoa e existência, e como o lugar por onde passa o ser do mundo; estas definições, contudo, deixam em suspenso se a subjetividade, mesmo objetivada e coletivizada, constituirá a última palavra deste ente passageiro que é e não é o englobante.
  • É imperativo rastrear os vestígios que se misturam e se perdem, ligando com continuidade e solução de continuidade o humano ao não-humano, questionando como este consegue adentrar a dimensão do logos e dialogar com aquilo que não é, num momento em que a filosofia, ao tornar-se antropologia, reduz todas as interpretações e entes ao humano, erigindo-o como figura última do absoluto, ainda que um absoluto composto de relações humanas não seja precisamente ab-soluto.
  • A subjetividade, em sua fluidez e fixidez, debate-se com imperativos cósmicos e físicos, com os clarões e eclipses do pensamento, com a lentidão do trabalho da história e com a sua própria problemática antropológica e psicológica; o humano, brinquedo de poeira que emerge da terra e a ela retorna, imita sem modelos e busca uma proximidade com algo indefinido, falhando em encontrar as chaves para línguas mortas enquanto instrumentos enferrujados ou novíssimos caem de suas mãos.
  • Mais radical e abrangente que a alienação (Entfremdung) do humano, cuja supressão coincidiria com a supressão do próprio humano, é a sua insuperável estranheza (Verfremdung), pela qual permanece estranho a si mesmo e ao mundo, e o mundo estranho a ele, a despeito de todos os hábitos, costumes e familiaridades que tentam mascarar essa condição de ser uma composição rarefeita no vazio cósmico ou uma câmara de ressonância.

II. Estruturas, Determinismos e a Ilusão do Sujeito

  • As linhas de força que constituem o ser humano atravessam um emaranhado complexo formado por fatores hereditários, temperamento constitucional, dramas da infância e constelação familiar, formações educacionais e meio sociocultural, incidentes, acidentes, encontros, disposições, identificações, pressões subconscientes e potências inconscientes, exigindo uma abordagem hierárquica, multidimensional e sintética que compreenda o jogo do conjunto sem se perder numa esquematização excessiva.
  • Após o domínio do sujeito, evidencia-se a ascensão de sistemas e estruturas sem sujeito que, havendo eliminado mais do que apenas o pensamento, jogam inocentemente com pequenos conjuntos, mantendo o humano preso a uma estrutura que ele transgride apenas em favor de outra, num mundo onde centro e circunferência tornaram-se elusivos.
  • O humano, surgido há um milhão de anos num planeta de quatro bilhões de anos, com uma história exígua comparada à sua pré-história, falha em resolver o problema da solidão e, mais do que revolucionário, é revolucionado, existindo mediocremente e mediado por aquilo que não é, constituindo o paradoxo maior de ser o conhecido e o desconhecido que atraem simultaneamente.
  • O humanismo situa o humano simultaneamente muito baixo e muito alto, encarando com falsa modéstia o inumano como estrangeiro, enquanto o medo protege e impede o caminhar; outrora, o humano buscava seu lugar na natureza cósmica e na criação, mas ao querer-se sujeito livre numa natureza morta e sob um céu vazio, ditando regras ao universo, acabou por retirar-se das esperanças fundadas na história, entrando numa época de ansiedade, tédio e obscuridade aparente num mundo administrado.

III. Desejo, Necessidade e a Dinâmica Psíquica

  • As necessidades parecem mais profundas e elementares que os desejos e estes mais que os votos, havendo ainda o desejo do desejo, o que explica por que o eu deseja também aquilo que não quer e não pode, sendo escolhido mais do que escolhe, numa dinâmica onde a fadiga pode repousar e onde se continua a viver apesar do infortúnio alheio.
  • O triângulo fundamental composto pela mãe (ou seu substituto), o pai (ou seu substituto) e a criança é incessantemente reativado, sendo que o não perder o amor materno e o retorno a ele permanecem centrais na vida afetiva; tudo ocorre como se as frustrações infantis precoces das necessidades fossem a fonte de conflitos subsequentes, com a tentação da regressão infantil perdurando por toda a vida adulta.
  • O ser humano encontra-se dividido em corpo-alma (e espírito) e tripartido segundo a tradição platonico-aristotelica em alma desejante, volitiva e pensante, sem que ninguém tenha visto claramente através destas partições; o indivíduo, mais do que uma pessoa de direito privado, é um sistema de singularidades que, no encontro com os outros, busca a si mesmo e ao outro, numa humanidade que parece uma experiência falhada sem experimentador.
  • A força da coerção social internalizada pelo indivíduo através do superego é extremamente poderosa, e a juventude com ricas potencialidades tende a ser absorvida pelas fileiras de adultos convencionais; o humano moderno ousa afirmar uma posição a partir de si mesmo, mas o dualismo sobrevive maliciosamente, fazendo com que ele se alimente de seu próprio fantasma.

IV. Ação, Jogo e a Temporalidade da Existência

  • A ação é, em geral e em particular, um resíduo de diversas transações, onde força e fraqueza são constelações temporárias que se intercambiam, e onde cada indivíduo se considera excepcionalmente único; a comunicação torna-se um problema obsessivo porque é encarada pelo lado do humano e não do mundo, e a mudança do humano é uma espera e não uma caminhada em direção a algo.
  • Como se sabe desde Rimbaud, é incorreto dizer “eu penso”, devendo-se dizer “pensa-se-me” ou “sou pensado”, pois o “eu é um outro”, o que coloca em questão o nó e a espada do eu e do nós atuais, num contexto onde a era nuclear massifica indivíduos e atomiza as massas humanas, levando ao clímax e esmagando o indivíduo.
  • O humano é o ente através do qual a questão do Ser é posta, o único existente que interroga a existência sem parecer possuir uma essência natural ou histórica, dissolvendo-se e desaparecendo não como sujeito, mas como espaço-tempo do encontro do que está fora do humano com o que é o humano; a mudança e a permanência apoderam-se de sua essência e existência problemáticas.
  • A análise da finitude parece sem fim, e o humano só pode adaptar-se, revolucionar-se ou perecer, vivendo num compromisso que não é uma realidade de segunda ordem, mas uma exploração incessante de determinações biológicas, psicológicas, sociais, culturais e ideológicas, onde o impossível colide com o humano e onde a experiência vivida ultrapassa o simples conhecimento.
  • Acerca da liberdade, todas as passagens ao limite se retiram, pois nem uma liberdade emancipada de todas as causas nem uma não-liberdade engolfada inteiramente nas causas são concebíveis; temos de testar os dois registros da mesma ordem e conceber a liberdade errante como aquilo que deixa e dá jogo a diversas necessidades, sendo a ansiedade diante da liberdade insuportável para o humano.

V. Saúde, Doença e a Tentativa Terapêutica

  • Ser saudável significa, elementarmente, ser capaz de comer, beber, dormir, amar, trabalhar, falar, pensar e jogar, enquanto a doença indica desajustes maiores e manifesta intolerância a frustrações inevitáveis; o esforço terapêutico, seja farmacodinâmico, psicoterápico ou social, visa a conservação da vida e a acomodação do organismo, mas confronta-se com o fato de que cada doença abre uma brecha por onde fluxos necessários entram e saem, e que a unidade psicossomática diferenciada parece necessitar estar doente em algum lugar, pois a doença não é apenas falta, mas abertura.
  • A psicologia é capaz de reduzir tudo às suas motivações psicológicas, e a sociologia às condições sociais, mas ambas esbarram em seus limites e limiares; exigir uma síntese psicossociológica é urgente, mas arrisca permanecer programática se não compreender que o psicológico e o sociológico emergem juntos de um fundamento que os ativa e contém, um texto confuso onde o princípio da razão suficiente encalha.
  • Poder-se-ia conceber um Instituto do Humano que estudasse de maneira multidimensional e pluralista todos os problemas relativos a este absoluto, unindo biólogos, médicos, psicólogos, sociólogos e até parapsicólogos para analisar a árvore genealógica, a constituição psicossomática, o meio social e os fenômenos ultrafluidos, na tentativa de compreender, curar e normalizar o humano planetário e sua errância.

VI. Morte, Sobrevivência e o Fim do Humano

  • O ser humano entra na vida e no mundo trabalhando, falando, lutando e morrendo, deixando o mundo com um desejo de sobrevivência e eternidade; os sobreviventes oscilam entre o culto místico dos mortos e a sua aniquilação, enquanto mitos, religiões e metafísicas tentam assegurar a sobrevivência contra a morte imortal, seja através de uma sobrevivência genealógica, cósmica, teológico-antropológica ou histórico-humana através das obras e traços deixados na memória e no esquecimento.
  • O tempo é a obsessão constante do humano, e o humano talvez seja a obsessão passageira do tempo; tudo o que aparece, é e desaparece fá-lo no tempo, que é tanto instante quanto duração, criação e deterioração, não se deixando imobilizar e constituindo a residência do que passa; a finitude radical do ser do humano e do ser do mundo constitui o jogo dentro do qual tentamos fazer malabarismos.
  • Segundo o fragmento de Anaximandro, o ilimitado é a origem dos entes, onde estes nascem e perecem por necessidade, prestando justiça e pagando penalidade uns aos outros pela injustiça segundo a ordem do tempo; a individuação emerge da totalidade do ser e nela imerge novamente, num processo onde o particular e o universal se entrelaçam.
  • Não sabemos se há sobrevivência ou imortalidade, pois qualquer resposta dogmática ou agnóstica evita a questão posta pela própria práxis do pensamento e da vida; a vida e a morte, cada uma singular e universal, contradizem-se e conjugam-se, mantendo as potências opostas e complementares sem que um termo sintético seja a última palavra, pois não há vida verdadeira sem morte, e a morte total cessaria de ser vivida e dita.
  • O que efetua a ascensão do humano é, evidentemente, a história mundial; resta saber se o fim do humano significaria o fim de um certo tipo de humano ou o fim do humano como fim, e se o que sobrevive ao humano não é também aquilo que o suporta, numa transumância que não é própria apenas aos humanos, mas a tudo que participa do jogo do mundo.
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