Kostas Axelos (2023) – As Grandes Potências e as Forças Elementares do Mundo
AXELOS, Kōstas. The game of the world. Tradução: Justin Clemens; Tradução: Hellmut Monz. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2023.
As grandes potências e a constituição do mundo * O ser humano acessa o mundo através da mediação de grandes potências fundamentais que estabelecem e assumem a relação humano-mundo por meio de instituições, sendo elas a magia, os mitos, a religião, a poesia, a arte, a política, a filosofia, as ciências e a tecnologia, as quais, ativadas pelas forças elementares da linguagem, pensamento, trabalho, luta, amor, morte e jogo, constituem elaborações que nos edificam desde o início do jogo, abrindo-nos para o mundo e constituindo-o para nós. Pode ocorrer que essas potências se manifestem simultaneamente, procedendo de uma mesma fonte inominável, como nas grandes épocas da história mundial, ou que uma ou várias faltem devido ao recuo ante o poder sufocante de outras, mas nenhuma delas esgota isoladamente o ser no devir da totalidade, nem o seu conjunto o faz, pois não são elementos isolados de um todo ou simples partes de um conjunto, mas comunicam-se, interpenetram-se, combatem e fertilizam-se mutuamente, emergindo todas do mesmo centro problemático sem simetrias artificiais.
- As grandes potências do mundo, nascidas da violência original do logos arquitetônico e da praxis poética, emanam de um centro comum que constitui uma totalidade operante composta não de níveis, mas de domínios, sendo sustentadas por grandes humanos e povos que dão a medida do tempo histórico; contudo, esse centro não é o espírito de uma época, de um povo ou sociedade, nem reside na história econômica e política ou no desenvolvimento das forças produtivas, não sendo a ideia, o espírito absoluto, a matéria cósmica ou o material do trabalho humano, mas um foco único que se oculta atrás e dentro delas, tornando-as visíveis e inevitáveis enquanto elas o tornam visível. As grandes potências formam uma totalidade em progresso, sem centro, foco, origem, motor ou fundamento que limite o jogo de sua estrutura, sendo este não-centro o próprio jogo que atua na busca pelo centro, onde aquilo ou aquele que está mais próximo do centro é simultaneamente o que dele está mais distante, tal como o filólogo está longe da fala poética e pensante, o físico da natureza, e o político da cidade, embora na proximidade de suas funções exponenciais oculte-se a presença distante do que tenta abrir um caminho.
Magia, mito e a transição das formas simbólicas * A magia, ou o que problematicamente assim se denomina, abre o ciclo das grandes potências e, antes de desaparecer como tal, passa para dentro delas, sendo unitariamente o que depois se manifestará como religião, arte, política, tecnica e saber, oferecendo o exemplo do eclipse de uma grande potência onde a máscara figura o simulacro, mobiliza prestígio e provoca transes no jogo mágico, mítico e litúrgico. O jogo das máscaras primitivas e arcaicas provoca fenômenos de possessão e despossessão num universo demoníaco que se tenta exorcizar por meios demoníacos, até que a máscara se torne rosto e uniforme, a mímica se torne política e a feitiçaria se transforme em saber e poder; a magia como fonte de arte, uma fonte iniciática e ocultada, cessou de ser, e a arte tornou-se como a religião do mundo moderno, um sacerdócio problemático que não exclui a inundação da indústria cultural na democracia radical e a exploração total de tudo o que é e se faz.
- Os mitos, que talvez tenham sido supercompensações imaginárias para fraquezas reais ou projeções anunciando realizações técnicas, tornaram-se mitologia, de modo que lidamos apenas com mitologias, sendo o mito um dizer que relata e orienta uma ação, inseparável do que se designa por realidade, enunciando uma história que o rito reproduz e a liturgia celebra e joga. O universo mítico prende a sorte do humano por feitiços que fixam a parte do jogo, prefigurando o que o efetivará, e nosso futuro é tomado por uma mitologia inominável na qual está preso e perdido; a religião, por sua vez, pertence tanto aos jogos falantes ou silenciosos da interioridade mística quanto aos jogos espetaculares da exterioridade eclesiástica, justificando e negando a ordem existente, jogando em dois tabuleiros ao mesmo tempo, onde o jogo cultual se torna sagrado e o sagrado se encontra jogado, participando das potências demoníacas e reagindo contra elas.
Religião, arte e a dimensão do sagrado * A religião apresenta-se inseparável das proibições que promulga e de sua delimitação em relação ao profano, sendo que a fé e a crença determinam o intelecto e o pensamento não apenas nela, mas em todas as grandes potências praticadas mais ou menos religiosamente, inclusive na distinção que via na religião a esperança e na ciência o saber, quando a forma primária do conhecimento é sacerdotal. A arte e a política, a filosofia, as ciências e a tecnica não apenas carregam elementos religiosos, mas constituem a religião da arte, a religião da política e a religião da ciência, até a religião irreligiosa da banalidade cotidiana; a poesia e a arte operam por meio de uma intuição, mas é impossível sair da confusão inicial entre o teórico, o prático, o poietico e o tecnico, onde a prosa e a poesia talvez sejam uma linguagem bifurcada e onde cada obra de arte contém um pouco de impostura e propõe uma forma de vida e um desvio.
Política, poder e a estrutura da cidade * A política não é apenas a administração e a agitação, mas o que institui e constitui a polis, permitindo que o mundo se revele aos humanos enquanto seres sociais, embora o lugar da política seja o Estado e os movimentos revolucionários que visam o poder, realizando uma síntese governamental entre a polis e a polícia. Os laços do ético e do jurídico são tecidos numa única trama, onde todo direito estabelecido é conservador e todo apelo a um direito revolucionário o se torna, sendo a organização das leis dependente das necessidades econômicas e políticas; toda política é tática, o jogo da política pode sobrepor-se à restrição e ao compromisso, e as instituições toleram a recusa das instituições, assimilando essa recusa e fazendo parte do mesmo jogo onde o saber e o poder não podem prescindir de uma organização sólida que, no entanto, se liquefaz.
O devir da filosofia e o pensamento metafísico * O pensamento filosófico, nascido do jogo do enigma pelo qual a vida e a morte estão em jogo, frequentemente flui nos moldes das outras grandes potências, tornando-se pensamento religioso, poético ou político, e posteriormente pensamento científico e tecnico, tendo sido ao longo de seu curso tanto um questionamento quanto uma justificação do que é. A história da filosofia, desde os pré-socráticos até Hegel, Marx e Nietzsche, é constantemente deixada para ser repensada produtivamente e aguarda integração numa história mais vasta do pensamento, onde o pensamento que precede, atravessa e segue a filosofia pode recomeçar aceitando sua falta de preensão sobre o mundo governado pelas ciências tecnicizadas; a filosofia metafísica ou ontoteologia pensou o ser do mundo como physis-logos, deus-logos ou sujeito, mas o pensamento da era planetária busca pensar o jogo unitário e combinado de tudo isso, onde a morte de Deus anunciada por Nietzsche abre caminho para o super-humano e a inocência do devir num mundo sem fundamento.
- Se Hegel marca o fim de um grande estágio da filosofia e anuncia sua superação pelo saber absoluto, e Marx advoga a supressão da filosofia por sua realização na tecnica e prática totais, Nietzsche questiona radicalmente a realidade e o pensamento do mundo cristão e moderno, expondo a crise da modernidade e preludiando a crise do mundo futuro. O pensamento metafilosófico tenta dialogar com o pensamento pré-filosófico e com as ciências tecnicizadas que, emergindo da filosofia, tornam efetivo o fim contínuo desta, devendo o pensamento interrogar todos os critérios lógicos, éticos e políticos para colocá-los em questão, numa passagem onde a filosofia se abriga na história da filosofia e gera as ciências humanas que assumem sua sucessão técnica e metodológica.
Ciência, técnica e a era planetária * A ciência baseia-se na fé metafísica e antimetafísica do platonismo e cristianismo, acreditando na verdade que do divino se tornou humana, e continua a falar a linguagem da metafísica mesmo quando pretende ultrapassá-la, constituindo-se como uma perspectiva e operação sobre o mundo que não o apreende em seu conjunto, mas cujas bases ocultas são a tecnica que perturba o mundo de alto a baixo. O domínio pertence doravante à atividade tecnocientífica e ao poder tecnocrático, onde o logos se torna tecnica, a cosmologia cosmotecnica e a biologia biotecnica; a tecnologia e a ideologia são inimigas e aliadas, e o pensamento deve aprender a pensar novamente no meio das ciências sem se confundir com elas, enfrentando a era da tecnica onde tudo parece requerer uma solução técnica e onde a tecnica supera todo instrumentalismo, fazendo do humano o instrumento de um processo expresso pelo desenvolvimento tecnológico.
As forças elementares e o jogo do mundo * As grandes potências fundadoras apoiam-se nas forças elementares que expressam, organizam e regulam, chamadas linguagem e pensamento, trabalho e luta, amor e morte, e jogo, as quais revelam e moldam o ser no devir da totalidade fragmentária do mundo, mantendo cada uma relação decisiva com todas as outras. A linguagem fala-nos e nós a falamos, guiando o pensamento que a guia, sendo o jogo do conjunto estruturado que faz palavras dos elementos fônicos, onde o pensamento interroga e questiona, propondo respostas que correspondem e faltam uma à outra; o mestre e o discípulo participam dessa transmissão onde o pensamento se inscreve numa história preexistente, e onde grandes pensadores como Heráclito, Parmênides, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Marx e Nietzsche marcam épocas e visões de mundo.
- O trabalho começa sendo uma negatividade produtiva que extorque a natureza e tende a tornar-se uma negatividade abstrata na qual os humanos exteriorizam sua vida, sendo que Marx vislumbra a superação do trabalho alienado para que o humano encontre prazer no jogo de suas forças; a luta e o combate visam o poder sobre o outro, onde mestre e escravo se confrontam no terreno do trabalho e do poder, e onde a ofensiva e a defensiva estão inextricavelmente combinadas. O amor, o erotismo e a sexualidade aspiram à totalidade mas tropeçam na particularidade, onde o desejo visa a supressão de uma falta de ser e a reprodução da espécie cai sob os golpes do ritmo geral da produção, restando a morte como a força que mata tanto o particular quanto o absoluto, inseparável da vida com a qual mantém um jogo único de pulsões vitais e mortuárias.
O primado do jogo * O jogo engloba todas as grandes potências e forças elementares, sendo regulado até em suas transgressões e constituindo um conjunto de convenções e combinações que dão ritmo ao jogo do mundo, não sendo o inverso do trabalho ou do sério, mas abrangendo ambos. O jogo implica simulação, máscaras, papéis e riscos, unindo o que conta e o que não conta, a sabedoria e a estupidez, o lógico e o lúdico, onde o acaso e a necessidade se encontram num lance de dados; o pensamento planetário do jogo do mundo não tende a criar um sistema fechado, mas visa a elaboração de uma sistemática aberta e problemática, tentando estar no ponto mais alto, poético e pensante, para articular as relações entre saber teórico e ação efetiva, perscrutando o enigma e aceitando o insuspeitado que lhe escapa. No princípio era o logos, mas o logos é inseparável da praxis e a praxis é dita pelo logos, remetendo ambos ao jogo polimórfico através do qual o jogo do mundo se desenrola entre os humanos.
