Arendt (VE) – verdade
A atividade do pensamento — segundo Platão, o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo — serve apenas para abrir os olhos do espírito; e mesmo o nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade. ArendtVE I O Pensar Introdução
Segundo as tradições da Era Cristã, quando a filosofia se tornou serva da teologia, o pensamento passou a ser meditação, e a meditação passou novamente a terminar na contemplação, uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava por conhecer a verdade, mas por antecipar um estado futuro, recebendo-o temporariamente na intuição (Descartes, de modo característico, ainda influenciado por essa tradição, chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations). ArendtVE I O Pensar Introdução
Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza e as leis da matemática”; ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. ArendtVE I O Pensar Introdução
Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras, o medium no qual pensamos, e o mundo das aparências, o medium no qual vivemos, que conduziu, pela primeira vez, à filosofia e à metafísica? Com a ressalva de que no começo era o pensamento, na forma de logos ou de noesis, que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser, ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais. ArendtVE I O Pensar Introdução
Para antecipar e resumir: a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. ArendtVE I O Pensar Introdução
E verdade e significado não são a mesma coisa. ArendtVE I O Pensar Introdução
A falácia básica que preside a todas as falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade. ArendtVE I O Pensar Introdução
Em outras palavras, quando o filósofo se retira do mundo dado aos nossos sentidos e faz meia-volta (a periagoge de Platão) em direção à vida do espírito, ele se orienta por este em busca de algo que lhe seria revelado e que explicaria sua verdade subjacente. ArendtVE I O Pensar 2
Essa verdade — a-letheia, o que é revelado (Heidegger) — pode ser concebida unicamente como outra “aparência”, outro fenômeno originalmente oculto, mas de ordem supostamente mais elevada, o que indica a predominância última da aparência. ArendtVE I O Pensar 2
Coisa bastante semelhante parece ser verdade para a ciência, especialmente para a ciência moderna que — de acordo com uma antiga observação de Marx — está de tal modo fundada na cisão entre Ser e Aparência, que não é mais necessário o esforço individual e particular do filósofo para chegar a alguma “verdade” por sob as aparências. ArendtVE I O Pensar 2
Contra essa inabalável convicção do senso comum há a antiga supremacia teorética do Ser e da Verdade sobre a mera aparência, ou seja, a supremacia do fundamento que não aparece sob a superfície que aparece. ArendtVE I O Pensar 2
Também aqui não lidamos com um erro simplesmente arbitrário; a verdade é que não só as aparências nunca revelam espontaneamente o que se encontra por trás delas, mas também que, genericamente falando, elas nunca revelam apenas; elas também ocultam — “nenhuma coisa, nenhum lado de uma coisa se mostra sem que ativamente oculte os demais”. ArendtVE I O Pensar 2
Ficou evidente que nenhum homem pode viver entre “causas”, ou dar conta de — em modo integral e em linguagem humana ordinária — um Ser cuja verdade pode ser cientificamente demonstrada em laboratório e testada praticamente no mundo real pela tecnologia. ArendtVE I O Pensar 2
Para dizer o mínimo, é altamente duvidoso que a ciência moderna, em sua incansável busca de uma verdade por trás das meras aparências, venha a ser capaz de resolver esse impasse; quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao mundo das aparências, embora sua perspectiva com relação a esse mundo possa diferir da perspectiva do senso comum. ArendtVE I O Pensar 3
A primeira noção inteiramente nova trazida pela Era Moderna — a ideia seiscentista de um progresso ilimitado, que depois de alguns séculos transformou-se no mais precioso dogma de todos os homens que vivem em um mundo cientificamente orientado — destina-se aparentemente a lidar com o impasse: embora se espere um progresso cada vez maior, ninguém parece ter acreditado que se pudesse atingir um estágio final e absoluto de verdade. ArendtVE I O Pensar 3
Propriamente falando, somente a autoapresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento, e a única forma de diferençar fingimento e simulação de realidade e verdade é a incapacidade que os primeiros desses elementos têm para perdurar guardando consistência. ArendtVE I O Pensar 4
As semblâncias só são possíveis em meio às aparências; elas pressupõem as aparências como o erro pressupõe a verdade. ArendtVE I O Pensar 5
O erro é o preço que pagamos pela verdade, e a semblância é o preço que pagamos pelo prodígio das aparências. ArendtVE I O Pensar 5
A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia; o que — para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como “sem sentido” — parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências. ArendtVE I O Pensar 6
Restou a Wittgenstein — que planejou investigar “quanta verdade há no solipsismo” e, assim, tornou-se seu mais destacado representante contemporâneo — formular a ilusão existencial subjacente a todas as teorias solipsistas: “Com a morte, o mundo não se altera, apenas chega a um fim”. “ ArendtVE I O Pensar 7
A própria noção de verdade — que de alguma forma sobreviveu a tantos momentos cruciais de nossa história intelectual — sofreu uma mudança decisiva: ela foi transformada, ou melhor, partida em uma enorme corrente de veracidades, cada uma das quais, a seu tempo, reivindicando validade geral, ainda que a própria continuidade da pesquisa implicasse algo meramente provisório. ArendtVE I O Pensar 8
A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 8
A cognição, cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é autoevidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. ArendtVE I O Pensar 8
Como tradução alemã da palavra latina perceptio, o termo Wahrnehmung, usado por Kant (o que me é dado na percepção e deve ser verdadeiro ), indica claramente que a verdade está situada na evidência dos sentidos. ArendtVE I O Pensar 8
Essa distinção entre verdade e significado parece-me não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano, mas parece ser também a consequência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e intelecto. ArendtVE I O Pensar 8
Mesmo a inexorabilidade do Progresso da ciência moderna — que constantemente se corrige a si própria descartando respostas e reformulando questões — não contradiz o objetivo básico da ciência — ver e conhecer o mundo tal como ele é dado aos sentidos —, e seu conceito de verdade é derivado da experiência que o senso comum faz da evidência irrefutável, que dissipa o erro e a ilusão. ArendtVE I O Pensar 8
O que a ciência e a busca de conhecimento procuram é a verdade irrefutável, ou seja, proposições que os seres humanos não estão livres para refutar — são coercitivas. ArendtVE I O Pensar 8
Apenas a questão é que um fato, um evento, nunca pode ser testemunhado por todos os que estão eventualmente nele interessados, ao passo que a verdade racional ou matemática apresenta-se como autoevidente para qualquer um dotado do mesmo poder cerebral; sua natureza coercitiva é universal, enquanto a força coercitiva da verdade factual é limitada; ela não alcança aqueles que, não tendo sido testemunhas, têm que confiar no testemunho de outros em quem se pode ou não acreditar. ArendtVE I O Pensar 8
O verdadeiro contrário da verdade factual, em oposição à racional, não é o erro ou a ilusão, mas a mentira deliberada. ArendtVE I O Pensar 8
Que a verdade compele com a força da necessidade (anagké), que é muito mais forte que a força da violência (bia), é um velho topos da filosofia grega; e que ela possa compelir os homens com a irresistível força da Necessidade sempre foi um atributo compreendido como algo que a recomenda (hyp’ autés alétheias anagkasthentes, nas palavras de Aristóteles). ArendtVE I O Pensar 8
A fonte da verdade matemática é o cérebro humano; e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que o estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto. ArendtVE I O Pensar 8
Mas esse estar “destinado a ser” não é uma verdade; é uma proposição altamente significativa. ArendtVE I O Pensar 8
O conhecimento sempre busca a verdade, mesmo se essa verdade, como nas ciências, nunca é permanente, mas uma veracidade provisória que esperamos trocar por outras mais acuradas à medida que o conhecimento progride. ArendtVE I O Pensar 8
Esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar com o impulso de conhecer. ArendtVE I O Pensar 8
A verdade é aquilo que somos compelidos a admitir pela natureza dos nossos sentidos ou do nosso cérebro. ArendtVE I O Pensar 8
Quando distingo verdade e significado, conhecimento e pensamento, e quando insisto na importância dessa distinção, não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca de verdade do conhecimento. ArendtVE I O Pensar 8
Nesse sentido, a razão é a condição a priori do intelecto e da cognição; e porque razão e intelecto estão assim conectados — apesar da completa diferença de disposição e propósito — é que os filósofos sentiram-se sempre tentados a aceitar o critério da verdade — tão válido para a ciência e para a vida cotidiana — como igualmente aplicável ao âmbito bastante extraordinário em que se movem. ArendtVE I O Pensar 8
Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento, particularmente em relação a Deus, à liberdade e à imortalidade — para ele os mais elevados objetos do pensamento —, não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento, assim como do conhecimento, é a verdade e a cognição; é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkentnis, “conhecimento derivado da razão pura”, uma noção que, para ele, deve ter sido uma contradição em termos. ArendtVE I O Pensar 8
Nesse contexto, só faz sentido falar de erro ou ilusão quando somente a verdade (para Kant, a intuição), e não o significado, é o critério último para as atividades espirituais do homem. ArendtVE I O Pensar 8
Nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”), na notável fórmula de Duns Scotus; ou “voluntas vult se velle” (“a verdade quer querer-se”), como até mesmo Tomás, o menos voluntarista dentre aqueles que refletiram sobre esta faculdade, teve que admitir. ArendtVE I O Pensar 9
E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico. ArendtVE I O Pensar 9
Os filósofos interpretaram essa luta interna como a hostilidade natural da multidão e de suas opiniões em relação aos poucos e à sua verdade; mas são bastante escassos os fatos históricos capazes de sustentar essa interpretação. ArendtVE I O Pensar 10
Mas essa inversão de posições — tornar a luta entre pensamento e senso comum o resultado dos poucos voltando-se contra os muitos —, embora ligeiramente mais razoável e mais bem documentada (a saber, na pretensão que o filósofo tem de governar) do que a mania persecutória tradicional do filósofo, não está provavelmente mais próxima da verdade. ArendtVE I O Pensar 10
Se a verdade é tomada como o mais elevado objeto do pensamento, então o “verdadeiro é real apenas como sistema”. ArendtVE I O Pensar 10
Para Hegel, essa é a maneira pela qual a própria “vida da verdade” — verdade que se tornou viva no processo do pensamento — manifesta-se para o ego pensante. ArendtVE I O Pensar 10
Encontramos esse ato de não-participação ativa e deliberada nas atividades da vida cotidiana em sua forma provavelmente mais antiga e certamente mais simples em uma parábola atribuída a Pitágoras e relatada por Diógenes Laércio: A vida é como um festival, assim como alguns vêm ao festival para competir, e alguns para exercer os seus negócios, mas os melhores vêm como espectadores ; assim também na vida os homens servis saem à caça da fama ou do lucro, e os filósofos à caça da verdade. ArendtVE I O Pensar 11
O que é enfatizado aqui como mais nobre do que a competição pela fama e pelo lucro não é certamente uma verdade invisível e inacessível ao homem comum; tampouco o lugar para onde os espectadores se retiram pertence a alguma região “mais elevada”, tal como foi posteriormente figurada por Parmênides e por Platão; seu lugar está no mundo e a sua “nobreza” está somente em não participar do que está ocorrendo, em observá-lo como a um mero espetáculo. ArendtVE I O Pensar 11
É óbvia a inferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e compreender: como espectador, pode-se compreender a “verdade” sobre o espetáculo, mas o preço a ser pago é a retirada da participação no espetáculo. ArendtVE I O Pensar 11
Voltarei a esse tratado, já que seu ponto mais interessante é a afirmação de que o critério do logos, do discurso coerente, não é a verdade ou a falsidade, mas sim o significado. ArendtVE I O Pensar 12
Disso se depreende que o discurso, ainda que sempre “som com significado” (phone semantike), não é necessariamente apophantikos, um enunciado ou uma proposição em que aletheuein e pseudesthai, verdade e falsidade, ser e não-ser estão em jogo. ArendtVE I O Pensar 12
Assim, implícita no ímpeto da fala, está a busca do significado, e não necessariamente a busca da verdade. ArendtVE I O Pensar 12
Wittgenstein, ao que eu saiba, foi o único a conscientizar-se do fato de que a escrita hieroglífica correspondia à noção de verdade compreendida segundo a metáfora da visão. ArendtVE I O Pensar 12
Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Ernest Fenollosa, publicado por Ezra Pound e, ao que eu saiba, jamais mencionado na literatura sobre metáfora: “A metáfora é a própria substância da poesia”; sem ela, “não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê”. ArendtVE I O Pensar 12
Tal unidade oculta torna-se, segundo Riezler, o tópico dos filósofos, a koinos logos de Heráclito, a hen pan de Parmênides; a percepção dessa unidade distingue a verdade do filósofo das opiniões dos homens comuns. ArendtVE I O Pensar 12
O ganho é o conceito de objetividade, da coisa como ela é em si, diferentemente da coisa como ela me afeta; dessa distinção surge toda a ideia de theoria e de verdade teórica”. ArendtVE I O Pensar 13
Seria tentador acreditar que o pensamento metafórico é um perigo somente quando é utilizado pelas pseudociências; e que o pensamento filosófico, se não tem pretensão à verdade demonstrável, está a salvo na utilização de metáforas apropriadas. ArendtVE I O Pensar 13
Assim, Aristóteles — embora também ele, em um contexto diferente, tenha falado de uma verdade aneu logou, uma verdade que resistia à expressão discursiva — não teria dito com Platão: dos assuntos que abordo, nada é conhecido, já que não existe nada escrito sobre eles, nem jamais haverá qualquer coisa a ser escrita no futuro. ArendtVE I O Pensar 13
E essa intuição interna pode em si ser chamada de verdade. ArendtVE I O Pensar 13
Essa própria verdade está além das palavras; os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis — “nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas, e as retas, de redondas” —, e as palavras, o discurso argumentado da fala que busca explicar, são “débeis”: não oferecem mais do que uma “pequena orientação” para reavivar a luz na alma, como a de uma centelha tremulante, a qual, uma vez gerada, se torna autossustentável. ArendtVE I O Pensar 13
Citei essas poucas páginas da Sétima carta com algum vagar porque oferecem, como em nenhum outro lugar, uma visão sobre a incompatibilidade entre a intuição — a metáfora-guia para a verdade filosófica — e o discurso — o meio pelo qual o pensamento se manifesta: a primeira sempre nos apresenta um múltiplo contemporâneo, enquanto o último necessariamente revela-se em uma sequência de palavras e sentenças. ArendtVE I O Pensar 13
A verdade aqui é a evidência vista; e falar, bem como pensar, será autêntico se acompanhado pela evidência vista, apropriando-se dela e da verdade, traduzindo-a em palavras; no momento em que essa fala se afasta da evidência vista — como, por exemplo, quando se repetem as opiniões ou os pensamentos de outras pessoas, ela ganha a mesma inautenticidade que era, para Platão, característica da imagem quando comparada ao original. ArendtVE I O Pensar 13
Obviamente, tudo isso é apenas mais uma maneira de dizer que a verdade, na tradição metafísica, entendida nos termos da metáfora da visão, é inefável por definição. ArendtVE I O Pensar 13
Sabemos, pela tradição hebraica, o que acontece com a verdade quando a metáfora-guia não é a visão, mas a audição (em muitos aspectos, é mais parecida com o pensamento do que a visão, pela habilidade que tem de acompanhar sequências). ArendtVE I O Pensar 13
O Deus hebraico pode ser ouvido, mas não visto, e a verdade torna-se, portanto, invisível: . ArendtVE I O Pensar 13
A invisibilidade da verdade é, na religião hebraica, tão axiomática quanto sua inefabilidade na filosofia grega, da qual toda filosofia posterior derivou suas hipóteses axiomáticas. ArendtVE I O Pensar 13
E enquanto a verdade, entendida em termos de audição, exige obediência, a verdade em termos de visão apoia-se no mesmo tipo de autoevidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante de nossos olhos. ArendtVE I O Pensar 13
A metafísica, a “ciência assombrosa” que “contempla aquilo que é enquanto é” (epistémé hé theórei to on hé on), poderia descobrir uma verdade “que constrangesse os homens pela força da necessidade” (hyp’ autés tés alétheias anagkazomenoi), porque ela apoia-se na mesma impermeabilidade à contradição que conhecemos tão bem pelas experiências visuais. ArendtVE I O Pensar 13
Essa é uma perfeita adequatio rei et intellectus, o acordo entre o conhecimento e seu objeto, que até para Kant era ainda a definitiva definição de verdade. ArendtVE I O Pensar 13
A verdade como autoevidência não demanda um critério; ela é o critério, o árbitro final de tudo o que possa vir. ArendtVE I O Pensar 13
Mas a identificação da verdade com o significado foi feita, é claro, em momento ainda anterior. ArendtVE I O Pensar 13
Porque o conhecimento vem da busca daquilo que nos acostumamos a chamar de verdade; e a forma mais alta, mais definitiva da verdade cognitiva é a intuição. ArendtVE I O Pensar 13
Se o pensamento, guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função, espera “verdade” de sua atividade, tal verdade não é só inefável por definição. “ ArendtVE I O Pensar 13
Com essa mudança, o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto — a adequatio rei et intellectus, entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto — à simples forma do pensamento, cuja regra básica é o axioma da não-contradição, da consistência interna, isto é, passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples “pedra de toque negativa da verdade”. “ ArendtVE I O Pensar 13
Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais — por mais tênues e duvidosas que sejam —, para Heidegger e para Walter Benjamin, a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo, mas, por assim dizer, encolheu: em Benjamin, a verdade “passa despercebida” (huscht vorüber); em Heidegger, o momento de iluminação é concebido como “relâmpago” (Blitz), e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente, das Gelaüt der Stille, “o som ressonante do silêncio”. ArendtVE I O Pensar 13
E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta). ArendtVE I O Pensar 13
A simples experiência do ego pensante mostrou-se impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores, ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar, de que existe algo como a “cognição especulativa” de Hegel. ArendtVE I O Pensar 13
O critério para a faculdade da visão não é a “verdade”, como sugere o verbo aletheuein, derivado do termo homérico aléthes (verídico). ArendtVE I O Pensar 14
A verdade permanece como critério da fala, embora mude de caráter à medida que ela tem que se assimilar e seguir as indicações da visão do nous. ArendtVE I O Pensar 14
Uma pessoa que se agarre à noção de que “não há verdade” jamais se deixará dissuadir, mesmo quando lhe for demonstrado que a proposição se destrói a si mesma. ArendtVE I O Pensar 15
De qualquer forma, o fato é que, antes do surgimento do cristianismo, jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à “ideia” de Liberdade, assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade, e a faculdade da Razão, a coisas que estão além do conhecimento humano ou, como dissemos aqui, ao Significado. ArendtVE II O Querer Introdução
Para Jaspers, a liberdade humana é assegurada por não termos a verdade; a verdade compele, e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais: “Preciso querer porque não sei. ArendtVE II O Querer 2
É como se, no final das contas, os pensadores da Era Moderna escapassem para uma “terra do pensamento” (Kant) na qual as suas próprias preocupações especificamente modernas — com o futuro, com a Vontade como seu órgão espiritual para o futuro e com a liberdade como um problema — não existissem; na qual, em outras palavras, não houvesse qualquer noção de uma faculdade do espírito que pudesse corresponder à liberdade do mesmo modo que a faculdade do pensamento correspondeu à verdade. ArendtVE II O Querer 2
Em Platão, a razão podia assumir essa função por causa do pressuposto de que a razão diz respeito à verdade, e a verdade de fato compele. ArendtVE II O Querer 7
Mas a razão em si, à medida que leva à verdade, é persuasiva, e não imperativa, no diálogo sem som do pensamento de mim comigo mesmo; somente aqueles que não são capazes de pensar precisam ser constrangidos. ArendtVE II O Querer 7
Somente o eu tem interesse, e o soberano indisputável do eu é a razão argumentativa; não o velho nous, o órgão interno para a verdade, o olho invisível do espírito dirigido para o que é invisível no mundo visível, mas sim uma dynamis logiké, cuja maior distinção é “tomar conhecimento de si mesma e de todas as outras coisas”, e que tem o poder de aprovar ou desaprovar sua própria ação. ArendtVE II O Querer 9
Vês que nessa esfera tua faculdade está livre de qualquer empecilho e limite ou coerção?” Faz parte da natureza da verdade “compelir”, isto é um insight antigo: “hósper hip’ autés tés alétheias anagkasthentes”, “compelidas pela própria verdade”, como diz Aristóteles, quando fala das teorias autoevidentes que não exigem qualquer raciocínio especial. ArendtVE II O Querer 9
Mas em Epiteto esta verdade e sua dynamis logié não têm absolutamente nada a ver com o conhecimento ou com a cognição, para os quais os processos da lógica são infrutíferos — não prestam literalmente para nada (akarpa). ArendtVE II O Querer 9
O mais recente biógrafo de Agostinho, Peter Brown, expressa isso de maneira um pouco simplista, dizendo que “ele definitivamente não era um type croyant, como era comum entre os homens instruídos no mundo latino antes de seu tempo”; para Agostinho, não se tratava de abandonar as incertezas da filosofia em favor da Verdade revelada, mas de descobrir as implicações filosóficas de sua nova fé. ArendtVE II O Querer 10
Jamais utiliza retórica ou qualquer tipo de persuasão; o leitor é compelido, como só a verdade pode compelir. ArendtVE II O Querer 11
A verdade compele; ela não ordena, como a vontade ordena e não coage. ArendtVE II O Querer 11
O intelecto e a razão lidam com a verdade. ArendtVE II O Querer 11
O intelecto, também chamado de “razão universal”, lida com a verdade matemática ou autoevidente, com os primeiros princípios que dispensam demonstração para ser admitidos, enquanto a razão, ou razão particular, é a faculdade por meio da qual retiramos conclusões particulares de proposições universais, como nos silogismos. ArendtVE II O Querer 11
A distinção seria que a verdade, percebida apenas pelo intelecto, revela-se ao espírito e a ele se impõe sem que haja qualquer atividade da parte do espírito, enquanto, no processo do raciocínio discursivo, o espírito compele a si mesmo. ArendtVE II O Querer 11
A verdade compele. ArendtVE II O Querer 11
O que distingue, em Tomás, esse poder de compelir da coerção da alétheia grega não é o fato de que a revelação decisiva venha de fora, mas sim de que “à verdade que a revelação promulgava de fora, correspondia de dentro a luz da razão. ArendtVE II O Querer 11
Do ponto de vista das faculdades da apreensão, o Ser aparece sob o aspecto de verdade; do ponto de vista da Vontade, em que o fim é o bem, aparece “sob o aspecto de algo desejável, que o Ser não expressa”. ArendtVE II O Querer 11
Tal é a “inclinação natural” da Vontade, cujo objetivo final é para ela tão “necessário” quanto a verdade é coercitiva para o Intelecto. ArendtVE II O Querer 11
Em Schopenhauer, ela é enunciada de forma explícita: e na vontade de potência de Nietzsche, a própria verdade é entendida como uma função do processo vital: o que nós chamamos verdade são aquelas proposições sem as quais não poderíamos continuar vivendo. ArendtVE II O Querer 11
Não é a razão, mas a nossa vontade de viver o que torna forçosa a verdade. ArendtVE II O Querer 11
Para ele, a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos — a Verdade sobre o Bem —, mas sim no modo como as duas faculdades “concorrem” dentro do espírito humano: “todo movimento da vontade é precedido de uma compreensão” — ninguém pode querer o que não conhece — “enquanto a compreensão não é precedida de um ato da vontade” (Aqui naturalmente ele se afasta de Agostinho, que sustentava a primazia da Vontade como atenção, mesmo para atos de percepção sensorial). ArendtVE II O Querer 11
Somente quando a ciência provou não só que os sentidos humanos estavam sujeitos ao engano — que poderia ser corrigido à luz de uma nova evidência para que fosse revelada a “Verdade” —, mas também que seu aparato sensorial ficara para sempre incapaz de certezas autoevidentes, foi que o espírito humano, agora totalmente lançado de volta a si mesmo, começou, com Descartes, a procurar uma “certeza” que fosse um dado puro da consciência. ArendtVE II O Querer 13
Mesmo essa descrição não especulativa, estritamente fenomenológica, está claramente em desacordo com o ensinamento habitual que Heidegger transmite de uma diferença ontológica segundo a qual a-létheia, verdade entendida como não-velamento ou desocultamento, está sempre do lado do Ser; no mundo das aparências, o Ser revela-se somente na resposta do pensamento do homem em termos de linguagem. ArendtVE II O Querer 15
É através da retirada que o “Ser sustenta sua verdade” e a protege; protege-a do “brilho dos seres que ofusca a luz do Ser”, ainda que, originalmente, o Ser tenha concedido este brilho. ArendtVE II O Querer 15
Entretanto, exatamente porque o contínuo de tempo fragmenta-se no campo histórico em diferentes eras, o lançamento dos seres a esmo também se dá nas épocas, e no esquema de Heidegger parece haver um momento privilegiado, o momento de transição de uma época para outra, de destino para destino, quando o Ser como Verdade interrompe a continuidade do erro, quando “a essência epocal do Ser chama a si a natureza extática do Da-sein”. ArendtVE II O Querer 15
Sua chance de alcançar isso está em conseguir aproveitar-se do momento epocal na transição entre períodos, em que os destinos históricos mudam e a verdade que subjaz à próxima época de errância torna-se evidente ao pensamento. ArendtVE II O Querer 15
Do ponto de vista da verdade científica, as especulações idealistas eram pseudocientíficas; agora, no polo oposto do eixo, algo semelhante parece estar acontecendo. ArendtVE II O Querer 16
Jamais pode, porém, alcançar o nós, o verdadeiro plural da ação (Um erro bastante frequente entre filósofos modernos que insistem na importância da comunicação como garantia da verdade — em especial Karl Jaspers e Martin Buber, com sua filosofia do Eu-Tu — é acreditar que a intimidade do diálogo, a “ação interna” na qual “apelo” a mim mesmo ou ao “outro eu”, o amigo em Aristóteles, o amado em Jaspers, o Tu em Buber, possa estender-se e tornar-se paradigmática para a esfera política). ArendtVE II O Querer 16
