Arendt (VE) – sentidos e mundo
Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras, o medium no qual pensamos, e o mundo das aparências, o medium no qual vivemos, que conduziu, pela primeira vez, à filosofia e à metafísica? Com a ressalva de que no começo era o pensamento, na forma de logos ou de noesis, que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser, ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais. ArendtVE I O Pensar Introdução
O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o suprassensorial, juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides de que o que quer que não seja dado aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros Princípios e Causas (archai), ou as Ideias — é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. ArendtVE I O Pensar Introdução
De Parmênides até o fim da filosofia, todos os pensadores concordaram em que, para lidar com esses assuntos, o homem precisa separar seu espírito dos seus sentidos, isolando-o tanto do mundo tal como é dado por esses sentidos quanto das sensações — ou paixões — despertadas por objetos sensíveis. ArendtVE I O Pensar Introdução
Nas notas de suas lições sobre a metafísica, escreveu: “O propósito da metafísica é estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos; isto é, eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria”. ArendtVE I O Pensar Introdução
Em outras palavras, quando o filósofo se retira do mundo dado aos nossos sentidos e faz meia-volta (a periagoge de Platão) em direção à vida do espírito, ele se orienta por este em busca de algo que lhe seria revelado e que explicaria sua verdade subjacente. ArendtVE I O Pensar 2
As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos, de cuja experiência elas são, então, como registrou Locke, “transferidas” — metapherein, transportadas — “para significações mais abstrusas, passando a representar ideias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos”. ArendtVE I O Pensar 4
O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar. ArendtVE I O Pensar 5
A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. ArendtVE I O Pensar 7
Esse mesmo sentido, um “sexto sentido” misterioso, porque não pode ser localizado como um órgão corporal, vai adequar as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados — tão privados que as sensações, em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais, são incomunicáveis — a um mundo comum compartilhado pelos outros. ArendtVE I O Pensar 7
Em um mundo de aparências, cheio de erros e semblâncias, a realidade é garantida por esta tríplice comunhão: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, têm em comum o mesmo objeto; membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico; e todos os outros seres sensorialmente dotados, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. ArendtVE I O Pensar 7
A cada um de nossos cinco sentidos corresponde uma propriedade do mundo específica e sensorialmente perceptível. ArendtVE I O Pensar 7
Mesmo a inexorabilidade do Progresso da ciência moderna — que constantemente se corrige a si própria descartando respostas e reformulando questões — não contradiz o objetivo básico da ciência — ver e conhecer o mundo tal como ele é dado aos sentidos —, e seu conceito de verdade é derivado da experiência que o senso comum faz da evidência irrefutável, que dissipa o erro e a ilusão. ArendtVE I O Pensar 8
A busca de significado “não tem significado” para o senso comum e para o raciocínio do senso comum, pois é função do sexto sentido adequar-nos ao mundo das aparências e deixar-nos em casa no mundo dado por nossos cinco sentidos. ArendtVE I O Pensar 8
A fonte da verdade matemática é o cérebro humano; e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que o estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto. ArendtVE I O Pensar 8
Não são apenas as coisas transcendentes do outro mundo que elas nunca atingem; a realidade, dada pela ação conjunta dos sentidos coordenados pelo senso comum e garantida pela pluralidade, também se encontra além do alcance daquelas ideias. ArendtVE I O Pensar 8
Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti pantón kechórismenon). ArendtVE I O Pensar 9
Faz-se uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos — de modo que um “sentido interno”, a saber, a intuição da introspecção, é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra “internamente” com a mesma segurança dos nossos sentidos externos ao lidarem com o mundo exterior. ArendtVE I O Pensar 9
Trata-se não tanto de uma retirada do mundo — somente o pensamento, por sua tendência a generalizar, isto é, por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular, tende a retirar-se completamente do mundo —, mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos. ArendtVE I O Pensar 9
Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. ArendtVE I O Pensar 10
Kant suspeitava que a familiaridade com outro mundo podia ser “obtida, aqui, somente privando-se de algum dos sentidos necessários no mundo presente”. ArendtVE I O Pensar 10
Do ponto de vista da natureza imediata da vida e do mundo dado aos sentidos, o pensamento é, como Platão indicou, uma morte em vida. ArendtVE I O Pensar 10
Por trás da oposição entre mundo e alma, deve haver uma unidade que torne possível a correspondência, uma “lei ignorada”, como diz Riezler, citando Goethe, presente tanto no mundo dos sentidos quanto no domínio da alma. ArendtVE I O Pensar 12
Pelo contrário, quando levamos em conta como é fácil para a visão — diferentemente dos outros sentidos — deixar de fora o mundo exterior, e quando examinamos a antiga noção de bardo cego, cujas histórias são ouvidas, podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento. ArendtVE I O Pensar 13
Mencionei anteriormente que a linguagem, o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um mundo de aparências, não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível. ArendtVE I O Pensar 13
Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades, pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos; portanto, concebidas como atividades, essas metáforas têm uma finalidade exterior; elas não são energeia, um fim em si mesmas, mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo. ArendtVE I O Pensar 13
A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido, algo externo a mim; a árvore percebida está dentro de mim, invisível ao mundo exterior, como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos. ArendtVE I O Pensar 16
Foi uma tentativa de esclarecer uma questão bastante antiga, suscitada primeiramente por Platão, sem jamais ter sido por ele respondida: onde fica o topos noetos, a região do espírito na qual habita o filósofo? Reformulei a questão no decorrer da investigação: “Onde estamos quando pensamos?” Para o que nos retiramos, quando nos retiramos do mundo das aparências, interrompemos todas as atividades habituais e iniciamos aquilo a que Parmênides, no começo de nossa tradição filosófica, nos encorajou tão enfaticamente: “Olha para aquilo que, embora ausente , está tão firmemente presente em nosso espírito”. ArendtVE II O Querer 1
Em outras palavras, a Vontade, por meio da atenção, primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa; e então arrasta esse mundo exterior para dentro de nós, preparando-o para operações posteriores do espírito: para ser lembrado, para ser entendido, para ser afirmado ou negado. ArendtVE II O Querer 10
O homem é capaz de transcender o mundo do Ser junto com o qual foi criado e que permanece sendo seu hábitat até a morte; ainda assim, mesmo as atividades do seu espírito nunca deixam de relacionar-se ao mundo dado aos sentidos. ArendtVE II O Querer 12
Foi a certeza do eu-sou que Descartes descobriu em seu cogito me cogitare; isto é, em uma experiência do espírito para a qual nenhum dos sentidos que nos dão nossa realidade e a de um mundo exterior é necessário. ArendtVE II O Querer 13
De nossos cinco sentidos, três nos dão claramente objetos do mundo exterior e são portanto facilmente comunicáveis. ArendtVE Apêndice O Julgar
