Arendt (VE) – querer
Pensar, querer e julgar são as três atividades espirituais básicas. ArendtVE I O Pensar 9
É certo que os objetos do meu pensar, querer ou julgar, aquilo de que o espírito se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. ArendtVE I O Pensar 9
Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. ArendtVE I O Pensar 9
Assim, para querer, o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que, sem refletir e sem reflexividade, estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado; pois a vontade não se ocupa de objetos, mas de projetos, como, por exemplo, com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente. ArendtVE I O Pensar 9
Se o poder da representação e o esforço para dirigir a atenção do espírito para o que escapa da atenção da percepção sensível não se antecipassem e preparassem o espírito para refletir, assim como para querer e para julgar, seria impossível pensar como exerceríamos o querer e o julgar, isto é, como poderíamos lidar com coisas que ainda não são, ou que já não são mais. ArendtVE I O Pensar 9
Nossos códigos legais levam isso em consideração, ao distinguir crimes em que a acusação é obrigatória e transgressões que pertencem ao domínio privado dos indivíduos, que podem querer ou não mover uma ação. ArendtVE I O Pensar 18
Sócrates afirma ser um e, por isso mesmo, não querer correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo. ArendtVE I O Pensar 18
Subjacente ao imperativo “aja apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” está a ordem: “Não se contradiga”. ArendtVE I O Pensar 18
Um assassino ou um ladrão não pode querer que mandamentos como “tu matarás” ou “tu roubarás” se tornem leis válidas para todos, já que ele teme, evidentemente, pela própria vida ou pela propriedade. ArendtVE I O Pensar 18
Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. ArendtVE II O Querer Introdução
A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. ArendtVE II O Querer Introdução
Nosso Testamento, nossa Última Vontade, preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão, a saber, nossa própria morte, mostra que a necessidade da Vontade de querer não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar; em ambos os casos, o espírito transcende suas próprias limitações naturais, seja por fazer perguntas irrespondíveis, seja por projetar-se em um futuro que, para o sujeito volitivo, jamais será. ArendtVE II O Querer 1
Isso coincidiu com a última era de autêntico pensamento metafísico; na virada do século XIX, ainda no estilo da metafísica que começou com o equacionamento de Parmênides entre Ser e Pensar (to gar auto esti noein te kai einai), de repente, logo depois de Kant, passou a ser comum equacionar Querer e Ser. ArendtVE II O Querer 2
Para Jaspers, a liberdade humana é assegurada por não termos a verdade; a verdade compele, e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais: “Preciso querer porque não sei. ArendtVE II O Querer 2
Não-saber é a raiz de ter que querer”. ArendtVE II O Querer 2
É certo que, em sua filosofia inicial, Heidegger não compartilhou da crença moderna no Progresso; e que sua proposição “querer-não-querer” nada tem a ver com a superação nietzschiana da Vontade através de sua restrição ao querer que tudo que aconteça continue acontecendo repetidas vezes. ArendtVE II O Querer 2
Há em primeiro lugar a descrença sempre recorrente na própria existência da faculdade de querer. ArendtVE II O Querer 3
Hobbes e Espinosa admitem a existência da Vontade como uma faculdade sentida subjetivamente, negando somente sua liberdade: “Reconheço essa liberdade de que posso fazer se quiser; mas tomo como um discurso absurdo dizer que posso querer se quiser”. ArendtVE II O Querer 3
O que impressiona nessas objeções contra a própria existência da faculdade de querer é, em primeiro lugar, o fato de que elas são levantadas invariavelmente nos termos da ideia moderna de consciência — uma noção tão ignorada pela filosofia antiga quanto a noção de Vontade. ArendtVE II O Querer 3
O fato perturbador de que, entre os filósofos, até mesmo os chamados voluntaristas — aqueles inteiramente convencidos, como Hobbes, do poder da vontade — pudessem resvalar tão facilmente para a dúvida quanto à própria existência da faculdade de querer pode ser de certa forma esclarecido examinando-se a segunda de nossas dificuldades sempre recorrentes. ArendtVE II O Querer 3
Repetindo: a noção de uma vontade não-livre é uma contradição em termos: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade? Nossa vontade não seria vontade se não estivesse em nosso poder. ArendtVE II O Querer 3
Para citar Descartes, que se pode contar entre os voluntaristas: “Ninguém, levando em consideração somente a si mesmo, deixa de experimentar o fato de que querer e ter liberdade são a mesma coisa”. ArendtVE II O Querer 3
O caráter tranquilizador da formulação vem do que Hegel chamou de “a calma do passado” (“die Ruhe der Vergangenheit”), uma calma assegurada pelo fato de que o que passou não pode ser desfeito e que a Vontade “não pode querer retroativamente”. ArendtVE II O Querer 5
Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. ArendtVE II O Querer 5
Qualquer volição não só envolve particulares como também — e isso é de grande importância — anseia por seu próprio fim, o momento em que o querer algo terá se transformado no fazê-lo. ArendtVE II O Querer 5
A tensão daí resultante, em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas, causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão, uma mistura de medo e esperança que se torna insuportável quando se descobre que, na formulação de Agostinho, querer e ser capaz de realizar, velle e posse, não são a mesma coisa. ArendtVE II O Querer 5
A tensão pode ser superada somente pelo fazer, isto é, pela desistência da atividade espiritual como um todo; uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade, exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento. ArendtVE II O Querer 5
Desse ângulo, a única tarefa que resta à Vontade é, na verdade, “querer não querer”, uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na “harmonia universal” do mundo, em que “tudo o que é, visto da perspectiva do Todo, é o melhor”. ArendtVE II O Querer 5
O próprio Hegel não menciona a Vontade nesse contexto, nem tampouco Koyré; mas parece óbvio que a faculdade que está por trás do espírito que nega não é o pensar, mas o querer, e que a descrição de Hegel do tempo experimentado humanamente relaciona-se à sequência de tempo adequada ao ego volitivo. ArendtVE II O Querer 6
E, em ambos os casos, o verdadeiro preenchimento do tempo é a eternidade, ou, em termos seculares, existencialmente falando, a mudança do espírito do querer para o pensar. ArendtVE II O Querer 6
O fracasso final de Hegel em conciliar as duas atividades do espírito, pensar e querer, com os seus conceitos de tempo opostos, parece-me evidente, mas ele próprio teria discordado: o pensamento especulativo é precisamente “a unidade de pensamento e tempo”; não lida com o Ser, mas com o Devir, e “o objeto do espírito pensante não é o Ser mas um Devir intuído”. ArendtVE II O Querer 6
Encontramos uma solução semelhante em Heidegger, cujos insights sobre a natureza da vontade são incomparavelmente mais profundos, e cuja antipatia por essa faculdade é ostensiva e constitui a verdadeira reviravolta (Kehre) do último Heidegger: “não é a vontade humana a origem da vontade de querer”; mas “a Vontade quer que o homem queira sem experimentar o que a Vontade é”. ArendtVE II O Querer 6
Isolada, a Vontade do homem “preferiria querer o Nada a não querer”, como observou Nietzsche; e a noção de um progresso infinito implicitamente nega todo objetivo e admite fins somente como meios para burlar-se a si mesma. ArendtVE II O Querer 6
Ele não teria ido tão longe quanto Eckhart, mais de mil anos depois, afirmando que ter vontade de fazer era suficiente para “herdar a vida eterna”, pois, “diante de Deus, querer fazer conforme minha capacidade e ter feito são a mesma coisa”. ArendtVE II O Querer 8
Realiza-se por um imperativo que não diz simplesmente “tu deves” — como no caso em que o espírito fala ao corpo, conforme colocou Agostinho mais tarde, e o corpo imediata e, por assim dizer, impensadamente obedece —, mas diz também “tu deves querer”, o que já implica que, seja o que for que eu acabe fazendo de fato, eu posso responder: quero ou não quero. ArendtVE II O Querer 8
A vontade sempre se dirige a si mesma; quando a lei diz: “tu deves”, a vontade responde “tu deves querer o que diz a ordem” — e não a executar inadvertidamente. ArendtVE II O Querer 8
Na luta entre o “querer” e o “não-querer”, o resultado só pode depender em um ato — se ações não contam mais, a Vontade nada pode. ArendtVE II O Querer 8
Mas não se trata mais de volições, já que a misericórdia não pode ser almejada; a salvação “não depende do querer ou do esforço do homem, mas da misericórdia de Deus”, e Ele “usa de misericórdia com quem quer, e endurece o coração de quem quer” (Romanos 9:16, 18). ArendtVE II O Querer 8
Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um; mas, ao contrário da multidão “vulgar” dos outros espectadores, ele está ali “interessado” somente em si mesmo e em sua própria “felicidade”; força-se portanto a “querer que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha”. ArendtVE II O Querer 9
Pois “se todo homem deseja de fato ser feliz, deve necessariamente também querer ser imortal. ArendtVE II O Querer 9
Há, em primeiro lugar, a questão de por que deveria ser necessário um querer com a finalidade de não querer; por que não seria possível simplesmente perder a faculdade sob o domínio dos insights superiores do raciocínio correto. ArendtVE II O Querer 9
Pode-se argumentar que é mais difícil quebrar o hábito que os homens têm de querer o que está fora de seu poder do que quebrar o hábito de pensar; mas para um homem suficientemente “treinado”, não deve ser necessário ficar repetindo mil vezes o não querer — já que o mé thele, o “não querer”, em que não se pode evitar, é no mínimo tão importante para esse aprendizado quanto o simples apelo à força de vontade. ArendtVE II O Querer 9
Muito relacionado com o que foi dito anteriormente, e ainda mais enigmático, é o fato de que Epiteto não fica absolutamente satisfeito com o poder da vontade de deixar de querer. ArendtVE II O Querer 9
Já citei a parábola do jogo na qual o homem cujo único interesse é o bem-estar do eu é exortado a querer “que aconteça somente o que acontece e que ganhe somente quem ganha”. ArendtVE II O Querer 9
Somente quando o poder da vontade chega a esse ponto de clímax, em que consegue querer o que é, nunca estando, portanto, “em desavença com as coisas exteriores”, é que ele se pode dizer onipotente. ArendtVE II O Querer 9
Nas Confissões, bem como nas duas seções finais de O livre-arbítrio, tira conclusões filosóficas e enuncia as consequências do estranho fenômeno (o de que é possível querer e, na ausência de qualquer empecilho externo, ser, ainda assim, incapaz de realizar) que Paulo descrevera em termos de leis antagônicas. ArendtVE II O Querer 10
Para ele, agora há somente uma lei, e o primeiro insight, portanto, é o mais óbvio e também o mais surpreendente: “Non hoc vele quod posse” — “Querer e poder não são o mesmo”. ArendtVE II O Querer 10
O que surpreende é estarem as duas faculdades, querer e poder realizar, tão intimamente ligadas: “A vontade deve estar presente para que o poder seja produtivo”; e nem é preciso dizer que o poder deve estar presente para que a vontade possa dele fazer uso. “ ArendtVE II O Querer 10
A faculdade da Escolha, tão decisiva para o liberum arbitrium, aplica-se aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim, mas principalmente — e, em Agostinho, exclusivamente —, à escolha entre velle e nolle, entre querer e não-querer. ArendtVE II O Querer 10
O que é então que faz a vontade querer? O que põe a vontade em movimento? A questão é inevitável, mas a resposta acaba levando a um regresso ao infinito. ArendtVE II O Querer 10
O verdadeiramente escandaloso na doutrina não era que o homem pudesse querer dizer “Não” à realidade, mas que esse “Não” fosse insuficiente; diziam ao homem que para ele encontrar a tranquilidade, deveria treinar sua vontade a dizer “Sim” e a “deixar sua vontade ser a de que os eventos aconteçam como acontecem”. ArendtVE II O Querer 10
Embora, em sua visão, a todo velle corresponda um nolle, a liberdade da faculdade é limitada porque nenhum ser criado pode querer contra a criação, pois isso seria — mesmo no caso do suicídio — um querer dirigido não só contra uma contravontade, mas também contra o próprio sujeito que quer e que não-quer. ArendtVE II O Querer 10
Todos os homens temem a morte, e esse sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião que nos leve a “pensar que deveríamos querer não existir”, pois o fato é que “começar a existir é o mesmo que caminhar para a não-existência”. ArendtVE II O Querer 10
Em suma, “todas as coisas, pelo simples fato de que são, são boas”, inclusive o mal e o pecado; e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus-Criador, mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a não-existência absoluta. ArendtVE II O Querer 10
Nesse contexto, é importante observar que Agostinho (embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis) em nenhum lugar exige, como Eckhart fez mais tarde, que “um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina, de modo a querer aquilo que Deus quer: portanto, se Deus quis que eu pecasse, não devo querer não ter cometido meu pecado; é este o meu verdadeiro arrependimento”. ArendtVE II O Querer 10
Pois embora Agostinho comece por conceituar a posição de Paulo, ele vai muito além, além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais — de que “querer e estar apto a executar não são a mesma coisa”, de que “a lei não poderia mandar se não houvesse vontade, nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente”, de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos, o dia tornando-se noite e a noite tornando-se dia, e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça, sobre a coragem somente por meio da covardia, e assim por diante. ArendtVE II O Querer 10
Isso comprova-se pelo simples fato de que a Vontade fala sempre no modo imperativo: “Tu Deves Querer”, diz a Vontade a si mesma. ArendtVE II O Querer 10
Por essa razão, são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade; “não é, portanto, monstruoso querer em parte e em parte não-querer” (“Et ideo sunt duae voluntates. ArendtVE II O Querer 10
Não era um querer total nem tampouco um não-querer completo” — e isso não significa que eu tivesse “dois espíritos, um bom e o outro mau”, mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito “dilacerava-me”. ArendtVE II O Querer 10
Insta o leitor a “considerar essas três coisas que existem em si mesmas são bem diferentes da Trindade , as três coisas de que falo são: Ser, Conhecer e Querer. , sendo que cada uma é compreendida pelas” outras duas, e que também mantêm relação consigo mesmas: “Lembro-me de que tenho memória, intelecto e vontade; entendo que entendo, quero e me lembro; e quero querer, lembrar-me e entender”. ArendtVE II O Querer 10
Em outras palavras, a Vontade é redimida, cessando de querer e começando a agir, e a interrupção não pode se originar de um ato de querer-não-querer, pois isso já seria uma nova volição. ArendtVE II O Querer 10
O que a vontade não é capaz de realizar é esse desfrutar imóvel; a vontade é dada como uma faculdade do espírito, porque o espírito não “se basta”, e, “em virtude de sua necessidade e do seu querer, torna-se excessivamente atento às suas próprias ações”. ArendtVE II O Querer 10
É como se “alguém fosse querer apreender passando por intervalos de tempo, enquanto ela está à parte do tempo, em uma espécie de silêncio secreto e sublime”; sem a memória para registrar a sequência de sons não seria possível sequer “conceber a melodia, ainda que se pudesse ouvir o canto”). ArendtVE II O Querer 10
Com o homem criado à imagem do próprio Deus veio ao mundo um ser que, por ser um começo correndo para um fim, pôde ser dotado da capacidade de querer ou não querer. ArendtVE II O Querer 10
Todo homem, sendo criado no singular, é um novo começo em virtude de ter nascido; se Agostinho tivesse levado essas especulações às suas consequências, teria definido os homens não à maneira dos gregos, como mortais, mas como “natais”, e teria definido a liberdade da Vontade não como o liberum arbitrium, a escolha livre entre querer e não querer, mas como a liberdade sobre a qual fala Kant na Crítica da razão pura. ArendtVE II O Querer 10
E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do mal; nem mesmo Kant, que inventou o conceito de “mal radical”, acreditava que alguém que “não possa demonstrar-se um amante” deva, por isso, estar “fadado a demonstrar-se um vilão”, que, usando a linguagem de Agostinho, velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre querer e não-querer. ArendtVE II O Querer 11
Para ele, a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos — a Verdade sobre o Bem —, mas sim no modo como as duas faculdades “concorrem” dentro do espírito humano: “todo movimento da vontade é precedido de uma compreensão” — ninguém pode querer o que não conhece — “enquanto a compreensão não é precedida de um ato da vontade” (Aqui naturalmente ele se afasta de Agostinho, que sustentava a primazia da Vontade como atenção, mesmo para atos de percepção sensorial). ArendtVE II O Querer 11
Pois a Vontade, entendida basicamente como desejo, termina quando se toma posse do objeto desejado, e a noção de que “a Vontade é exaltada quando está de posse daquilo que quer” é simplesmente uma inverdade — este é precisamente o momento em que a Vontade deixa de querer. ArendtVE II O Querer 11
Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou não-querer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo: “In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle, quae sunt contraria, respectu unius obiecti” (“Está em poder de nossa vontade querer e não-querer, que são contrários, com relação ao mesmo objeto”). ArendtVE II O Querer 12
Ao dizer isso, Scotus não está negando, é claro, que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto; mas sustenta, sim, que o ego volitivo, ao realizar uma delas, sabe ser livre para realizar também o seu contrário: “A característica essencial de nossos atos volitivos é o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha, uma vez que tenha sido feita. ArendtVE II O Querer 12
Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores, também ele nega que o homem possa querer o mal como mal, “mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta”. ArendtVE II O Querer 12
A vontade não é, de modo algum, onipotente em sua efetividade real: sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer. ArendtVE II O Querer 12
Enquanto o homem está caindo necessariamente, compelido pela lei da gravidade, permanece livre para continuar a “querer cair”, e pode também, é claro, mudar de ideia, caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade. ArendtVE II O Querer 12
Já mencionei alguns dos notáveis insights: primeiro, sua objeção ao velho clichê de que “todos os homens querem ser felizes” (do qual só sobrou que “nenhum homem pode querer ser infeliz”); segundo, sua não menos surpreendente prova da existência da contingência (“Que todos aqueles que negam a contingência sejam torturados até que admitam que seria possível não serem torturados”) devem ser açoitados ou queimados até que admitam que não é a mesma coisa ser queimado ou chicoteado e não ser queimado ou chicoteado”. ArendtVE II O Querer 12
Afinal, fora o Filósofo que definira o contingente e o acidental (to symbébekos) como “aquilo que poderia também não ser” (endechomenon mé einai); e de que o ego volitivo tinha mais ciência em cada volição do que o fato de que poderia também não querer (experitur enim qui vult se posse non velle)? Como o homem poderia chegar a ser capaz de distinguir um ato livre de vontade de um desejo irresistível sem aquele teste interno infalível? O que aparentemente ia contra a liberdade da Vontade de querer ou não querer era a lei da causalidade, que Scotus também conhecia na versão aristotélica: uma cadeia causal que tornasse o movimento inteligível e levasse finalmente a uma fonte imóvel, de todo o movimento, “o motor imóvel”, uma causa que não é ela mesma causada. ArendtVE II O Querer 12
Mas, no seu modo de pensar, não era preciso haver tal conciliação, pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito; se é que havia conflito, ele corresponderia a um conflito intramuros, entre os egos pensante e volitivo, um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte: “Por quê?” A razão para isso é simples: a Vontade, como Nietzsche descobriria mais tarde, é incapaz de “querer retroativamente”; logo, deixe-se para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado. ArendtVE II O Querer 12
É esse aspecto da Vontade que enfatizamos quando dizemos que “a Vontade é a fonte da ação” ou, na linguagem escolástica, que “nossa vontade é produtora de atos, e é o que permite a seu possuidor operar explicitamente no querer”. ArendtVE II O Querer 12
Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não querer”. ArendtVE II O Querer 12
Em outras palavras, a vontade humana é indeterminada, aberta a contrários e, portanto, fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições; no momento em que para de querer e começa a agir conforme uma das proposições da vontade, ela perde sua liberdade — e o homem, o possuidor do ego volitivo, fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno, decidindo seguir seu instinto: parar de escolher e começar a comer. ArendtVE II O Querer 12
As atividades do espírito, tais como pensar ou querer, são atividades da primeira espécie, e estas, pensava Scotus, embora não tenham qualquer resultado no mundo real, são de uma “perfeição” maior, porque essencialmente não são transitórias. ArendtVE II O Querer 12
A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma: logo, a bem-aventurança futura, a beatitude que se goza na vida eterna, não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação. ArendtVE II O Querer 12
E citando essa passagem em What is called thinking? Heidegger logo acrescenta: “Os predicados, pois, que o pensamento metafísico atribuiu desde a Antiguidade ao Ser, Schelling encontra-os em sua forma final e mais alta no querer. ArendtVE II O Querer 13
A Vontade nesse querer não significa aqui uma capacidade da alma humana, entretanto; a palavra ‘querer’ designa aqui o Ser dos seres como um todo”. ArendtVE II O Querer 13
Nietzsche sabia que “Schopenhauer falou sobre a ‘vontade’; mas não há nada mais característico de sua filosofia do que a ausência de uma vontade genuína”, e viu corretamente que a razão para isso reside em um “equívoco básico na compreensão da vontade (como se o anseio, o instinto, o ímpeto fossem a essência da vontade)”, ao passo que “o querer é precisamente um senhor dos anseios, aquilo que estipula para eles o seu modo e a sua medida”. ArendtVE II O Querer 14
Pois “querer não é o mesmo que desejar, esforçar-se por algo ou ter necessidade de algo: distingue-se de tudo isso através do elemento do Comando . ArendtVE II O Querer 14
Que se comande algo, isto é inerente ao querer”. ArendtVE II O Querer 14
Heidegger comenta: “Não há expressão mais característica em Nietzsche do que querer é comandar; inerente ao querer está o pensamento que comanda”. ArendtVE II O Querer 14
O aspecto mais estranho deste fenômeno múltiplo a que chamamos de “Vontade” é que só tenhamos uma palavra para ele, e, em especial, que tenhamos só uma palavra para o fato de que somos, em cada caso particular, ao mesmo tempo quem dá as ordens e quem lhes obedece; ao obedecermos, experimentamos os sentimentos de coerção, ânsia, pressão, resistência, que normalmente começaram a se manifestar imediatamente após o ato de querer; por estarmos, entretanto, no comando experimentamos uma sensação de prazer, e isso ainda mais intensamente porque estamos habituados a superar a dicotomia pela noção do Eu, o Ego, e isso de um modo que tomamos como certa em nós a obediência, e que identificamos querer e executar, querer e agir. ArendtVE II O Querer 14
O prazer, diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus, é claramente o júbilo antecipado do “eu-posso” inerente ao próprio ato de querer, independente da performance, do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem, independente de exaltação ou de plateia. ArendtVE II O Querer 14
A Vontade nietzschiana, entretanto, não se limita por seu próprio “eu-posso” inerente; por exemplo, ela pode querer a eternidade, e Nietzsche anseia por um futuro que produzirá o “super-homem”, isto é, uma nova espécie humana forte o suficiente para viver no pensamento de um “eterno retorno”. “ ArendtVE II O Querer 14
Mas a identificação da vontade com a vida, a ideia de que nosso ímpeto de viver e nossa vontade de querer são, ao final, a mesma coisa tem outras consequências, talvez mais sérias para o conceito nietzschiano de poder. ArendtVE II O Querer 14
A Vontade aprecia o querer assim como o oceano aprecia as ondas, pois “a não querer, o homem prefere ainda querer o nada”. ArendtVE II O Querer 14
Há, em primeiro lugar — o que parece óbvio, mas que nunca foi apontado antes —, o fato de que “a Vontade não pode querer retroativamente; não pode parar a roda do tempo”. ArendtVE II O Querer 14
Esta é a versão de Nietzsche para o “eu-quero-e-não-posso”, pois é precisamente este querer retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar. ArendtVE II O Querer 14
Em segundo lugar, o conceito de “vontade-de-potência” é redundante: a Vontade gera poder para o querer; logo, a vontade que tem como objetivo a humildade não é menos poderosa do que aquela cujo objetivo é mandar nos outros. ArendtVE II O Querer 14
Se há uma contradição simples nos experimentos de pensamento de Nietzsche, é a contradição entre a impotência factual da Vontade — ela quer, mas não pode querer retroativamente — e este sentimento de força. ArendtVE II O Querer 14
Se Nietzsche tivesse desenvolvido esses pensamentos em uma filosofia sistemática, teria criado uma espécie de doutrina epitetiana amplamente enriquecida, ensinando mais uma vez “a arte de viver a própria vida”, cujo truque psicológico poderoso consiste em querer que aconteça o que de qualquer modo acontece. ArendtVE II O Querer 14
Portanto, a posição de Heidegger sobre a faculdade da Vontade, que culmina com sua insistência passional em querer “não querer” — que, é claro, nada tem a ver com a oscilação da Vontade entre velle e nolle, querer e não-querer — surge diretamente de sua investigação extremamente cuidadosa da obra de Nietzsche, a que ele volta, depois de 1940, repetidas vezes. ArendtVE II O Querer 15
Mas, ao querer e também ao não-querer, fazemos exatamente isso; aparecemos em uma luz que é em si iluminada por um ato de vontade. ArendtVE II O Querer 15
Querer sempre significa: trazer-se a si mesmo . ArendtVE II O Querer 15
Logo, “querer é essencialmente querer o próprio eu, mas não um eu dado que é aquilo que é, mas o eu que quer tornar-se aquilo que é . ArendtVE II O Querer 15
A Vontade de fugir do próprio eu é, na verdade, um ato de não querer”. ArendtVE II O Querer 15
A Vontade é querer ser o senhor . , é a extinção da Vontade no deixar de querer . ArendtVE II O Querer 15
Logo , nossa “vontade prefere querer o nada a não querer ”. “ ArendtVE II O Querer 15
Querer o nada”, aqui, significa querer a negação, a destruição, a devastação. ArendtVE II O Querer 15
Para que possa querer o futuro, no sentido de ser senhor do futuro, o homem deve esquecer e finalmente destruir o passado. ArendtVE II O Querer 15
Da descoberta de Nietzsche de que a Vontade não pode “querer retroativamente”, segue-se não só a frustração e o ressentimento, mas também a vontade positiva e ativa de aniquilar o que foi. ArendtVE II O Querer 15
Heidegger sintetiza isso em What is Called Thinking?: Diante daquilo que ‘foi’, a vontade não tem mais nada a dizer , o “foi” resiste ao querer da Vontade o ‘foi’ reage e é contrário à Vontade. ArendtVE II O Querer 15
A reação da Vontade contra todo “foi-se” mostra-se como a vontade de fazer com que tudo passe, de querer, portanto, que tudo mereça passar. ArendtVE II O Querer 15
Seguindo essa interpretação, a própria natureza da tecnologia é a vontade de querer, ou seja, de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo, cujo fim natural só pode ser a destruição total. ArendtVE II O Querer 15
A disposição que permeia o deixar-ser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer; mais tarde, em sua reinterpretação da “reviravolta”, Heidegger a chama de “Gelassenheit”, uma serenidade que corresponde ao deixar — ser e que “nos prepara” para “um pensamento que não é uma vontade”. ArendtVE II O Querer 15
O insight segundo o qual pensar e querer não são somente duas faculdades do ser enigmático chamado “homem”, mas são também opostos, ocorreu tanto a Nietzsche quanto a Heidegger. ArendtVE II O Querer 15
A diferença entre a posição de Heidegger e a de seus predecessores reside no seguinte: o espírito do homem, chamado pelo Ser para transpor para a linguagem a verdade do Ser, está sujeito a uma História do Ser (Seinsgeschichte), e essa História determina se os homens respondem ao Ser em termos de querer ou em termos de pensar. ArendtVE II O Querer 15
A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes, como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial, seja na forma de causas externas ou de motivos internos: “Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser real?” Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve, no volume I de Nietzsche (isto é, antes da “reviravolta”): “Querer sempre significa: trazer-se a si mesmo . ArendtVE II O Querer 15
Esse Alguém, o pensador que se desabituou de querer, passando a “deixar-ser”, é, na verdade, o “autêntico Eu” de Ser e Tempo, que agora ouve o chamado do Ser, em lugar do chamado da Consciência. ArendtVE II O Querer 15
O “Eles” reaparece aqui, mas sua principal característica não é mais o “palavrório” (Gerede); é a destrutividade inerente ao querer. ArendtVE II O Querer 15
O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e querer (a ser resolvida pelo “querer-não-querer”) quanto do conceito personificado, que apareceu em sua forma mais articulada no “Espírito do Mundo” de Hegel, aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é factualmente, ainda que de um modo sem sentido e contingente. ArendtVE II O Querer 15
Os princípios que inspiram as ações dos cidadãos variam de acordo com as diferentes formas de governo, mas são todos, como Jefferson os designou corretamente, “princípios energéticos”; e a liberdade política “ne peut consister qu’à pouvoir faire ce que l’on doit vouloir et à n’être point contraint de faire ce que l‘on ne doit pas vouloir” — “só pode consistir no poder de fazer aquilo que devemos querer e em não sermos forçados a fazer o que não devemos querer”. ArendtVE II O Querer 16
