Arendt (VE) – mundo das aparências
Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras, o medium no qual pensamos, e o mundo das aparências, o medium no qual vivemos, que conduziu, pela primeira vez, à filosofia e à metafísica? Com a ressalva de que no começo era o pensamento, na forma de logos ou de noesis, que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser, ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais. ArendtVE I O Pensar Introdução
Embora disponham de um importante argumento a seu favor, eles próprios raramente o invocam: de fato, é verdade que uma vez descartado o domínio suprassensível, fica também aniquilado o seu oposto, o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos. ArendtVE I O Pensar Introdução
O que permaneceu? Talvez o mundo das aparências? Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo das aparências”. ArendtVE I O Pensar Introdução
O filósofo, à medida que é um filósofo e não (o que naturalmente ele também é) “um homem como você e eu”, retira-se do mundo das aparências; a região em que se move tem sido descrita, desde o início da filosofia, como o mundo dos poucos. ArendtVE I O Pensar Introdução
Para descobrir o que realmente é, o filósofo deve deixar o mundo das aparências entre as quais ele natural e originalmente se encontra em casa — como fez Parmênides quando foi transportado, além dos umbrais da noite e do dia, para a estrada divina, “muito distante dos usuais caminhos humanos”, e como também fez Platão na alegoria da Caverna. ArendtVE I O Pensar 2
O mundo das aparências é anterior a qualquer região que o filósofo possa escolher como sua “verdadeira” morada, mas que, no entanto, não é o local onde ele nasceu. ArendtVE I O Pensar 2
Para dizer o mínimo, é altamente duvidoso que a ciência moderna, em sua incansável busca de uma verdade por trás das meras aparências, venha a ser capaz de resolver esse impasse; quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao mundo das aparências, embora sua perspectiva com relação a esse mundo possa diferir da perspectiva do senso comum. ArendtVE I O Pensar 3
Diversamente dos pensamentos e das ideias, os sentimentos, as paixões e as emoções têm a mesma dificuldade dos nossos órgãos interiores para se tornar parte essencial do mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 4
É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do mundo das aparências, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da alma. ArendtVE I O Pensar 4
O pensamento, e a linguagem conceitual que o acompanha, necessita — à medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências — de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio em que tais apreensões imediatas de evidência não podem existir. ArendtVE I O Pensar 4
Se confiarmos unicamente em nossas experiências com as coisas que aparecem e que não aparecem e começarmos a especular na mesma direção, podemos, da mesma maneira — e com razoabilidade muito maior —, concluir que talvez haja, de fato, uma base fundamental por trás do mundo das aparências; mas que o significado principal e talvez o único dessa base está nos seus efeitos, ou seja, no que ela faz aparecer, mais do que em sua pura criatividade. ArendtVE I O Pensar 6
Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências, mas, ao contrário, da experiência não ordinária do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 6
Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 6
Concluir, a partir dessa experiência, que existem “coisas-em-si”, as quais, em sua própria esfera inteligível, são como nós “somos” no mundo das aparências, é uma das falácias metafísicas; ou ainda, uma das semblâncias da razão, cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir, esclarecer e dirimir. ArendtVE I O Pensar 6
Assim, em nosso contexto, a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou não autênticas, se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários, simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa, ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, ainda que parta do mundo das aparências, tem uma faculdade — a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. ArendtVE I O Pensar 6
Mas o pensamento não pode provar nem destruir o sentimento de realidade que deriva do sexto sentido e que foi denominado pelos franceses, talvez por essa mesma razão, de le bon sens, o bom senso; quando o pensamento se retira do mundo das aparências, ele se retira do sensorialmente dado e, assim, também do sentimento de realidade dado pelo senso comum. ArendtVE I O Pensar 7
Além do mais, o fim é o conhecimento ou a cognição, que, uma vez obtidos, pertencem claramente ao mundo das aparências; uma vez estabelecidos como verdadeiros, tornam-se parte integrante do mundo. ArendtVE I O Pensar 8
A cognição e a sede de conhecimento nunca abandonam completamente o mundo das aparências; se o cientista se retira dele para “pensar”, é apenas com o intuito de encontrar abordagens do mundo melhores e mais promissoras, que se chamam métodos. ArendtVE I O Pensar 8
A cognição, cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é autoevidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. ArendtVE I O Pensar 8
A busca de significado “não tem significado” para o senso comum e para o raciocínio do senso comum, pois é função do sexto sentido adequar-nos ao mundo das aparências e deixar-nos em casa no mundo dado por nossos cinco sentidos. ArendtVE I O Pensar 8
a razão, como faculdade do pensamento especulativo, não se move no mundo das aparências; dessa maneira, ela pode gerar absurdos e ausências de significado, mas não erros ou ilusões, que pertencem propriamente ao âmbito da percepção sensorial e do raciocínio do senso comum. ArendtVE I O Pensar 8
Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti panton kechorismenon). ArendtVE I O Pensar 9
Vista da perspectiva do mundo das aparências e das atividades por ele condicionadas, a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. ArendtVE I O Pensar 9
Em todas essas atividades reflexivas os homens movem-se fora do mundo das aparências e usam uma linguagem cheia de palavras abstratas que, é claro, são parte integrante da fala cotidiana bem antes de se tornarem moeda corrente da filosofia. ArendtVE I O Pensar 9
A retirada do mundo das aparências é então a única condição anterior essencial para o pensamento, embora não para a filosofia, tecnicamente falando. ArendtVE I O Pensar 9
E uma vez que qualquer coisa que impeça o pensar pertença ao mundo das aparências e às experiências do senso comum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade que tenho do meu próprio ser, é como se de fato o pensar me paralisasse, do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais, “l’accomplissement d’un acte qui doit être réflexe ou ne peut être”, como sentenciou Valéry. ArendtVE I O Pensar 9
Do ponto de vista do mundo das aparências — o mundo comum no qual aparecemos pelo nascimento e do qual desaparecemos pela morte —, é natural o desejo de conhecer nosso hábitat comum e de reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito. ArendtVE I O Pensar 10
Acabei de referir-me aos objetos sensíveis dessensorializados, isto é, aos invisíveis que, pertencendo ao mundo das aparências, desapareceriam temporariamente ou ainda não teriam alcançado nosso campo de percepção, e que são trazidos à nossa presença pela lembrança ou pela antecipação. ArendtVE I O Pensar 10
Visto de sua perspectiva, é como se o invisível viesse primeiro, como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências — que por sua própria presença distraem o espírito e impedem sua atividade — estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito. ArendtVE I O Pensar 10
Sua retirada do mundo das aparências, do mundo do senso comum; sua tendência autodestrutiva em relação a seus próprios resultados; sua reflexividade e a consciência da pura atividade que a acompanha. ArendtVE I O Pensar 10
Em contrapartida, nem a vontade nem o juízo, embora dependentes da reflexão preliminar que o pensamento faz sobre os seus objetos, ficam presos a essa reflexão; seus objetos são particulares, têm seu lar estabelecido no mundo das aparências, do qual o espírito volitivo ou judicante se retira apenas temporariamente e com a intenção de uma volta posterior. ArendtVE I O Pensar 11
Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem, os seres pensantes — ainda que pertencentes ao mundo das aparências, mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente — têm em si o ímpeto de falar, e, assim, tornar manifesto aquilo que, de outra forma, não poderia absolutamente pertencer ao mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 12
A metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências, cuja função é a de “estabelecer a realidade de nossos conceitos”, como desfazendo a retirada do mundo, precondição para as atividades do espírito. ArendtVE I O Pensar 12
A analogia subjacente à sua doutrina das ideias pode ser reconstruída de maneira semelhante; assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto, também a totalidade dos dados sensíveis e materiais no mundo das aparências relaciona-se com um padrão invisível situado no céu das ideias e é avaliada de acordo com ele. ArendtVE I O Pensar 12
A metáfora, servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e, consequentemente, à filosofia; mas a metáfora em si é, na origem, poética, e não filosófica. ArendtVE I O Pensar 12
Tentando agora examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o mundo das aparências, podemos oferecer, provisoriamente, a seguinte descrição geral: da sugestiva definição aristotélica da linguagem como “emissão sonora e significativa” de palavras que já em si são “sons com significado” que “se assemelham a pensamentos”, pode-se concluir que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem, sem qualquer esforço especial, já encontrou uma morada adequada, ainda que provisória, no mundo audível. ArendtVE I O Pensar 12
O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias — que o mundo das aparências nos lembra coisas não-aparentes — pode ser visto como uma espécie de “prova” de que corpo e espírito, pensamento e experiência sensível, visível e invisível se pertencem, são, por assim dizer, “feitos” um para o outro. ArendtVE I O Pensar 12
Há finalmente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora; ela indica, à sua maneira, a absoluta primazia do mundo das aparências, fornecendo, assim, mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem. ArendtVE I O Pensar 12
Se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, o mundo das aparências insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. ArendtVE I O Pensar 12
Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 12
Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento — cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o mundo das aparências e o ego pensante —, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. ArendtVE I O Pensar 13
A fala toma a forma de louvor, de glorificação, não de uma aparência particularmente surpreendente, nem da soma total das coisas no mundo, mas da ordem harmoniosa por trás delas, que em si mesma é invisível, e da qual, não obstante, o mundo das aparências oferece um vislumbre. “ ArendtVE I O Pensar 15
Descreveu-se com grande precisão, milhares de anos depois de ter sido pela primeira vez descoberto pela filosofia grega, aquilo que ocorre a um homem normal que subitamente interrompe seu caminho natural quando se dá conta da presença absolutamente penetrante do Ser no mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 15
Aqui, pensar significa seguir uma sequência de raciocínio que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida. ArendtVE I O Pensar 16
Em todo caso, visto a partir do mundo das aparências, da praça do mercado, o ego pensante vive escondido, lathe biosas. ArendtVE I O Pensar 17
Essa união não deve ser entendida como a ânsia de aplicar seus pensamentos ou estabelecer padrões teóricos para a ação, mas tem o sentido muito mais relevante do estar à vontade nas duas esferas e ser capaz de passar de uma à outra aparentemente com a maior facilidade, do mesmo modo como nós avançamos e recuamos constantemente entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir sobre ele. ArendtVE I O Pensar 17
Quando o pensador é chamado de volta ao mundo das aparências, onde ele sempre é Um, é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse, violentamente, voltando de novo à unidade. ArendtVE I O Pensar 18
Em poucas palavras, a realização, especificamente humana, da consciência no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade, características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem, seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas, são também as mesmas condições da existência do ego mental do homem, já que ele só existe na dualidade. ArendtVE I O Pensar 18
Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. ArendtVE I O Pensar 18
Se o pensamento — o dois-em-um do diálogo sem som — realiza a diferença inerente à nossa identidade, tal como é dada à consciência, resultando, assim, na consciência moral como seu derivado, então o juízo, o derivado do efeito liberador do pensamento, realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das aparências, onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar. ArendtVE I O Pensar 18
A finitude manifesta-se como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está cônscio, mesmo quando o ego pensante retirou-se do mundo das aparências e perdeu o sentido de realidade inerente ao sensus communis que nos orienta nesse mundo. ArendtVE I O Pensar 19
É por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente, no mundo das aparências, o mais transitório dos tempos, tornou-se quase um alvo dogmático da especulação filosófica. ArendtVE I O Pensar 20
Vistas da perspectiva dessas especulações temporais, elas dizem respeito às coisas que estão ausentes, seja porque ainda não existem, seja porque já não existem mais; distintamente da atividade do pensamento, no entanto, que lida com os invisíveis em toda experiência e tende sempre a generalizar, essas atividades lidam sempre com particulares e, sob esse aspecto, estão bem mais próximo do mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 21
Iremos ao mesmo tempo acompanhar um desenvolvimento paralelo na história da Vontade segundo o qual a volição é a capacidade interna pela qual os homens decidem sempre “quem” eles vão ser, sob que forma desejam se mostrar no mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 21
O juízo lida com particulares, e quando o ego pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares, o espírito necessita de um novo “dom” para lidar com elas. ArendtVE I O Pensar 21
A questão é como essa faculdade de ser capaz de ocasionar algo novo e, assim, “mudar o mundo”, pode funcionar no mundo das aparências, isto é, em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recém-chegados no “foi” dos fatos — fieri; factus sum. ArendtVE II O Querer Introdução
Foi uma tentativa de esclarecer uma questão bastante antiga, suscitada primeiramente por Platão, sem jamais ter sido por ele respondida: onde fica o topos noetos, a região do espírito na qual habita o filósofo? Reformulei a questão no decorrer da investigação: “Onde estamos quando pensamos?” Para o que nos retiramos, quando nos retiramos do mundo das aparências, interrompemos todas as atividades habituais e iniciamos aquilo a que Parmênides, no começo de nossa tradição filosófica, nos encorajou tão enfaticamente: “Olha para aquilo que, embora ausente , está tão firmemente presente em nosso espírito”. ArendtVE II O Querer 1
Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. ArendtVE II O Querer 1
Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. ArendtVE II O Querer 1
Disse anteriormente que as atividades do espírito e especialmente a atividade do pensamento sempre estão “fora de ordem” quando vistas da perspectiva da continuidade incólume de nossos negócios no mundo das aparências. ArendtVE II O Querer 1
A não plausibilidade do pressuposto ou Postulado da Liberdade deve-se às nossas experiências externas no mundo das aparências, onde, na verdade, a despeito do que disse Kant, raramente começamos uma nova série. ArendtVE II O Querer 4
Quando produzimos uma volição, isto é, quando nos concentramos em um projeto futuro, não nos retiramos menos do mundo das aparências do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento. ArendtVE II O Querer 5
Uma vez que o espírito, retirado do mundo das aparências, traz para sua própria presença aquilo que está ausente — o que já não é mais, assim como o que não é ainda —, é como se o passado e o futuro pudessem unir-se em um denominador comum, podendo assim ser salvos, juntos, do fluxo do tempo. ArendtVE II O Querer 5
Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. ArendtVE II O Querer 5
Já houve maior triunfo do ego pensante do que o representado neste panorama? Nessa retirada do mundo das aparências, o ego pensante não tem mais que pagar o preço da “falta de atenção” e da alienação do mundo. ArendtVE II O Querer 6
Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. ArendtVE II O Querer 6
Em vez disso, procurei demonstrar sua autenticidade, derivando-as das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o mundo das aparências. ArendtVE II O Querer 7
A Liberdade torna-se um problema, e a Vontade como faculdade autônoma é descoberta somente quando os homens começam a duvidar da coincidência entre o “tu-deves” e o “eu-posso”, quando surge a questão: As coisas que só a mim dizem respeito estão em meu poder? A primeira e mais fundamental resposta para a questão que levantei no início deste capítulo — “que experiências fizeram com que o homem tomasse consciência de sua capacidade de constituir volições?” — é que essas experiências, hebraicas na origem, não foram políticas e não se relacionaram com o mundo — seja com o mundo das aparências e a posição que nele o homem ocupa, seja com o campo dos assuntos humanos, cuja existência depende de feitos e ações, mas localizaram-se exclusivamente dentro do próprio homem. ArendtVE II O Querer 8
Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estar-só, em uma retirada do mundo das aparências em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos, bem como para os outros. ArendtVE II O Querer 8
Assim, quando se trata de Paulo, a ênfase muda inteiramente do fazer para o crer, do homem exterior que vive no mundo das aparências (ele mesmo uma aparência entre aparências, sujeito, portanto, à semblância e à ilusão) para uma interioridade que, por definição, jamais se manifesta inequivocamente e que só pode ser examinada por um Deus que também jamais se mostra de maneira inequívoca. ArendtVE II O Querer 8
Nos termos da parábola do jogo, é como se esses espectadores, olhando com olhos que não veem, fossem meras aparições fantasmagóricas no mundo das aparências. ArendtVE II O Querer 9
Tudo o que parece ser real, o mundo das aparências, precisa na verdade de meu consentimento para poder ser real para mim. ArendtVE II O Querer 9
Não quis atravessar a “ponte arco-íris de conceitos” talvez porque não seja suficientemente nostálgica; em todo caso, porque não acredito em um mundo, quer seja um mundo passado ou um futuro, em que o espírito humano, equipado para retirar-se do mundo das aparências, poderia ou deveria chegar a sentir-se confortavelmente em casa. ArendtVE II O Querer 13
Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências, entra em colapso. ArendtVE II O Querer 14
Segundo, os entes em que o mundo das aparências se dá para o homem distraem o homem do Ser, que se esconde por trás deles — assim como as árvores escondem a floresta que, no entanto, vista de fora, é constituída por elas. ArendtVE II O Querer 15
Em Heidegger, este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador, que age sem nada fazer, sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como “Pensador” — coisa que, entretanto, não significa seu retorno ao mundo das aparências. ArendtVE II O Querer 15
Vivendo em um mundo das aparências, tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é “um movimento que deixa todo ser que emerge abandonar o ocultamento e ir em direção ao desocultamento”, demorando-se ali por um tempo até que, “por sua vez, abandone o desocultamento, partindo e retirando-se para o ocultamento”. ArendtVE II O Querer 15
Mesmo essa descrição não especulativa, estritamente fenomenológica, está claramente em desacordo com o ensinamento habitual que Heidegger transmite de uma diferença ontológica segundo a qual a-letheia, verdade entendida como não-velamento ou desocultamento, está sempre do lado do Ser; no mundo das aparências, o Ser revela-se somente na resposta do pensamento do homem em termos de linguagem. ArendtVE II O Querer 15
O mesmo eu que a atividade pensante desconsidera em sua retirada do mundo das aparências é afirmado e assegurado pela reflexividade da Vontade. ArendtVE II O Querer 16
