arendt:arendt-ve-metafora

Arendt (VE) – metáfora

Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do corpo, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. ArendtVE I O Pensar 1

Em outras palavras, quando Kant fala do tempo como a “forma da intuição interna”, ele fala, embora sem o saber, metaforicamente, e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores. ArendtVE I O Pensar 5

Mas a metáfora da morte, ou melhor, a inversão metafórica da vida e da morte — o que usualmente chamamos vida é morte; o que habitualmente chamamos morte é vida —, não é arbitrária, embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático. ArendtVE I O Pensar 10

Wittgenstein, ao que eu saiba, foi o único a conscientizar-se do fato de que a escrita hieroglífica correspondia à noção de verdade compreendida segundo a metáfora da visão. ArendtVE I O Pensar 12

Tal empréstimo, entretanto, jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico (como os símbolos matemáticos) ou emblemático; toda a linguagem filosófica, e a maior parte da linguagem poética, é metafórica; não no sentido simples do Dicionário Oxford, que define “Metáfora” como “a figura de linguagem na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um objeto diferente de, mas análogo a, aquele ao qual é adequadamente aplicável”. ArendtVE I O Pensar 12

Não há analogia entre, digamos, um pôr do sol e a velhice; e quando o poeta, em uma metáfora gasta, fala da velhice como o “poente da vida”, ele pensa que o poente se relaciona com o dia que o precede da mesma forma que a velhice se relaciona com a vida. ArendtVE I O Pensar 12

Toda metáfora descobre “uma percepção intuitiva de similaridades em dessemelhantes” e, segundo Aristóteles, é exatamente por isso que ela é um “sinal de gênio”, “de longe, a maior de todas as coisas”. ArendtVE I O Pensar 12

A metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências, cuja função é a de “estabelecer a realidade de nossos conceitos”, como desfazendo a retirada do mundo, precondição para as atividades do espírito. ArendtVE I O Pensar 12

A metáfora realiza a “transferência” — metapherein — de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos, a transição de um estado existencial, aquele do pensar, para outro, aquele do ser uma aparência entre aparências; e isso só pode ser feito através de analogias. ArendtVE I O Pensar 12

Kant dá como exemplo de metáfora bem-sucedida a descrição do estado despótico como uma simples máquina (como um moedor manual), porque é “governado por uma vontade individual absoluta . ArendtVE I O Pensar 12

A metáfora, servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e, consequentemente, à filosofia; mas a metáfora em si é, na origem, poética, e não filosófica. ArendtVE I O Pensar 12

Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Ernest Fenollosa, publicado por Ezra Pound e, ao que eu saiba, jamais mencionado na literatura sobre metáfora: “A metáfora é a própria substância da poesia”; sem ela, “não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê”. ArendtVE I O Pensar 12

A irreversibilidade da análise a distingue nitidamente do símbolo matemático utilizado por Aristóteles na tentativa de descrever a mecânica da metáfora. ArendtVE I O Pensar 12

Por mais feliz que seja o achado de uma metáfora na expressão de uma “semelhança perfeita” de relação entre duas “coisas completamente diferentes”, e por maior perfeição — uma vez que A não é obviamente o mesmo que C, e B não é o mesmo que D — que a fórmula B:A = O:C possa ter na expressão dessa semelhança, a equação de Aristóteles implica reversibilidade — se B:A = D:C, C:D = A:B. ArendtVE I O Pensar 12

O que se perde no cálculo matemático é a função real da metáfora, a volta ao mundo sensível que ela proporciona ao espírito com a finalidade de iluminar suas experiências não sensíveis, e para as quais não há palavras em qualquer língua (A fórmula aristotélica funcionou porque lidou apenas com coisas visíveis, e, na verdade, foi aplicada não à metáfora e a seu transporte de um domínio para outro, mas sim a emblemas, e os emblemas são já ilustrações visíveis de algo invisível — a taça de Dionísio, um ideograma da disposição festiva associada com o vinho; o escudo de Ares, um ideograma da fúria da guerra; a balança da justiça nas mãos da deusa cega, um ideograma da Justiça, pesando as ações sem considerar os agentes. ArendtVE I O Pensar 12

Homero nos dá outro tipo mais complexo de metáfora estendida ou símile, a qual, deslocando-se entre os visíveis, aponta para uma história oculta. ArendtVE I O Pensar 12

O invisível que se faz visível na metáfora é o longo inverno da ausência de Ulisses — a frigidez sem vida e a dureza oculta daqueles anos — que, agora, aos primeiros sinais de esperança por uma vida renovada, começam a abrandar-se. ArendtVE I O Pensar 12

As lágrimas em si expressam apenas o pesar; seu significado — os pensamentos que produziam essas lágrimas — manifesta-se na metáfora da neve derretendo e amaciando a terra antes da primavera. ArendtVE I O Pensar 12

E é nesse contexto que a linguagem do espírito, através da metáfora, retorna ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto, mas que pode ser dito. ArendtVE I O Pensar 12

Em outras palavras, se a rocha no mar, que “resiste à rota veloz dos ventos que silvam, às ondas que se elevam e nela rebentam”, pode tornar-se uma metáfora para resistência em combate, então “não é correto dizer que a rocha é vista antropomorficamente, a não ser que acrescentemos que nossa compreensão da rocha é antropomórfica pela mesma razão que essa compreensão pode permitir que nos vejamos petromorficamente”. ArendtVE I O Pensar 12

Há finalmente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora; ela indica, à sua maneira, a absoluta primazia do mundo das aparências, fornecendo, assim, mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem. ArendtVE I O Pensar 12

Não há dois mundos, pois a metáfora os une. ArendtVE I O Pensar 12

Pelo contrário, quando levamos em conta como é fácil para a visão — diferentemente dos outros sentidos — deixar de fora o mundo exterior, e quando examinamos a antiga noção de bardo cego, cujas histórias são ouvidas, podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento. ArendtVE I O Pensar 13

Sugeri que a metáfora pode, a seu modo, curar o defeito. ArendtVE I O Pensar 13

O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece, apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível. ArendtVE I O Pensar 13

Hans Blumenberg, em seu Paradigemen zu einer Metaphorologie, investigou certas figuras de retórica bastante comuns, tais como a metáfora do iceberg, ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental; e então, quase por acidente, descobriu em que medida as pseudociências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora, que substitui a falta de evidência dos dados. ArendtVE I O Pensar 13

Ainda assim, a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração; o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido — do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus. ArendtVE I O Pensar 13

Obviamente, tudo isso é apenas mais uma maneira de dizer que a verdade, na tradição metafísica, entendida nos termos da metáfora da visão, é inefável por definição. ArendtVE I O Pensar 13

Se o pensamento, guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função, espera “verdade” de sua atividade, tal verdade não é só inefável por definição. “ ArendtVE I O Pensar 13

Desde Bergson, o uso da metáfora da visão na filosofia vem, não sem surpresa, diminuindo, à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala, de nous para logos. ArendtVE I O Pensar 13

Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais — por mais tênues e duvidosas que sejam —, para Heidegger e para Walter Benjamin, a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo, mas, por assim dizer, encolheu: em Benjamin, a verdade “passa despercebida” (huscht vorüber); em Heidegger, o momento de iluminação é concebido como “relâmpago” (Blitz), e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente, das Gelaüt der Stille, “o som ressonante do silêncio”. ArendtVE I O Pensar 13

Em matéria de tradição, esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva. ArendtVE I O Pensar 13

Pois, embora a metáfora seja agora, no fim e no ápice do processo de pensamento, extraída do sentido da audição, ela não corresponde em nada à escuta de uma sequência articulada de sons, como uma melodia, mas, novamente, a um estado mental imóvel de pura receptividade. ArendtVE I O Pensar 13

E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta). ArendtVE I O Pensar 13

Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento — cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o mundo das aparências e o ego pensante —, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. ArendtVE I O Pensar 13

A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo. ArendtVE I O Pensar 13

De fato, é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica: “A atividade do pensamento é vida”. ArendtVE I O Pensar 13

O movimento circular aristotélico, tomado em conjunto com a metáfora da vida, sugere uma busca do significado que, para o homem, enquanto ser pensante, acompanha a vida e termina somente com a morte. ArendtVE I O Pensar 13

O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital, o qual, embora indo do nascimento à morte, também gira em círculos enquanto o homem vive. ArendtVE I O Pensar 13

Além disso, a metáfora obviamente se nega a responder à questão inevitável, “Por que pensamos?”, uma vez que não existe resposta para a questão: “Por que vivemos?” Nas Investigações filosóficas de Wittgenstein (escritas depois de ter ele se convencido da insustentabilidade de sua tentativa anterior, no Tractatus, de compreender a linguagem e, portanto, o pensamento como uma “figuração da realidade” — “Uma proposição é uma figuração da realidade. ArendtVE I O Pensar 13

Sócrates mesmo, consciente de que estava lidando com invisíveis em sua investigação, usou uma metáfora para explicar a atividade de pensar — a metáfora do vento: “Os ventos são eles mesmos invisíveis, mas o que eles fazem mostra-se a nós e, de certa maneira, sentimos quando eles se aproximam”. ArendtVE I O Pensar 17

Encontramos a mesma metáfora em Sófocles, que (na Antígona) relaciona o “pensamento rápido como o vento” dentre as coisas dúbias, “assombrosas” (deina) com que os homens são abençoados ou amaldiçoados. ArendtVE I O Pensar 17

Em nossos dias, Heidegger às vezes fala do “tufão do pensamento” e usa explicitamente a metáfora no único lugar de sua obra em que fala diretamente de Sócrates: Durante toda a sua vida e até a hora da morte, Sócrates não fez mais do que se colocar no meio desta correnteza, desta ventania , e nela manter-se. ArendtVE I O Pensar 17

No contexto em que Xenofonte — sempre ansioso por defender seu mestre com seus próprios argumentos vulgares contra acusações igualmente vulgares — menciona a metáfora, ela não faz muito sentido. ArendtVE I O Pensar 17

Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. ArendtVE I O Pensar 18

Chamei atenção para a passagem do Hípias Maior, em sua absoluta simplicidade, porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar — sob o risco de simplificar em demasia — assuntos difíceis, e que portanto sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados. ArendtVE I O Pensar 18

Se o pensamento é uma atividade que tem seu fim em si mesma, e se a única metáfora da nossa experiência sensorial comum que a ele vai se adequar é a sensação de estar vivo, disso resulta que todas as perguntas sobre o objetivo ou propósito do pensamento são tão irrespondíveis quanto as perguntas sobre o objetivo ou propósito da vida. ArendtVE I O Pensar 19

Assim, o não-mais do passado é transformado, graças à metáfora espacial, em algo que se encontra atrás de nós, e o ainda-não do futuro, em algo que se aproxima pela frente (a palavra alemã Zukunft bem como a francesa avenir significam, literalmente, “o que vem”). ArendtVE I O Pensar 20

Esse campo de batalha é, para Kafka, uma metáfora do lar do homem sobre a Terra. ArendtVE I O Pensar 20

O problema com a metáfora de Kafka é que, ao pular fora da linha de combate, “ele” pula totalmente fora deste mundo e o julga de fora, embora não necessariamente do alto. ArendtVE I O Pensar 20

Essa força diagonal, cuja origem é conhecida e cuja direção é determinada pelo passado e pelo futuro, mas que se exerce na direção de um fim indeterminado, como se pudesse estender-se ao infinito, parece-me uma metáfora perfeita para a atividade do pensamento. ArendtVE I O Pensar 20

Para mudar a metáfora, ela é a calmaria que reina no centro do furacão, que ainda pertence a ele, embora dele seja totalmente diferente. ArendtVE I O Pensar 20

Embora tenhamos ouvido falar dessa lacuna pela primeira vez como um nunc stans, o “agora permanente” da filosofia medieval, tornada modelo e metáfora para a eternidade divina sob a forma do nunc aeternitatis, ela não é historicamente datável, mas parece ser contemporânea à própria existência do homem sobre a Terra. ArendtVE I O Pensar 20

Usando uma metáfora diferente, podemos chamá-la a região do espírito, mas talvez ela seja muito mais a trilha aberta pelo pensamento, a pequena e inconspícua trilha de não-tempo traçada pela atividade de pensar no espaço-tempo concedido a homens que nascem e morrem. ArendtVE I O Pensar 20

A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia: para nossas atividades cotidianas no mundo, sobre as quais o ego pensante pode refletir, mas nas quais ele não está envolvido, precisamos de medidas de tempo: e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais. ArendtVE II O Querer 1

A despeito de sua origem espiritual, a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência; e a “carne”, no raciocínio de Paulo (mesmo posteriormente, quando é disfarçada em “inclinação”), torna-se a metáfora para a resistência interna. ArendtVE II O Querer 8

Assim, “felicidade” muda de significado; não é mais entendida como eudaimonia, a atividade de eu zén, viver bem, mas como euroia biou, uma metáfora estoica indicativa de uma vida que flui livremente, sem perturbar-se com os vendavais, as tempestades ou os obstáculos. ArendtVE II O Querer 9

Esse conceito não era uma metáfora propriamente dita; era uma completa personificação, do tipo das que encontramos nas alegorias das narrativas da Renascença. ArendtVE II O Querer 13

Aqui, a princípio, é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita, uma “semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes”. ArendtVE II O Querer 14

Em um exame mais detido, entretanto, parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica. ArendtVE II O Querer 14

Na metáfora nietzschiana, as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham; para Nietzsche, elas são idênticas; e o “segredo” do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento dessa identidade. ArendtVE II O Querer 14

Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências, entra em colapso. ArendtVE II O Querer 14

Passemos agora à nossa segunda história, que não é na verdade uma metáfora ou um símbolo, mas uma parábola, a história de um experimento de pensamento que Nietzsche intitulou “Das grösste Schwergewicht”, o pensamento que mais pesaria sobre nós. ArendtVE II O Querer 14

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/arendt/arendt-ve-metafora.txt · Last modified: by 127.0.0.1