Arendt (VE) – mal
Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento — literário, teológico ou filosófico — sobre o fenômeno do mal. ArendtVE I O Pensar Introdução
Aprendemos que o mal é algo demoníaco; sua encarnação é Satã, “um raio caído do céu” (Lucas 10:18), ou Lúcifer, o anjo decaído (“O demônio também é um anjo”, Unamuno), cujo pecado é o orgulho (“orgulhoso como Lúcifer”), isto é, aquela superbia de que só os melhores são capazes: eles não querem servir a Deus, mas ser como Ele. ArendtVE I O Pensar Introdução
Ou ainda, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade (“Odeio o Mouro: o que me move é o coração”, de Iago; o ódio de Claggart pela “bárbara” inocência de Billy Budd, um ódio que Melville considerou “uma depravação com relação à natureza humana”); ou pela cobiça, “a raiz de todo o mal” (Radix omnium malorum cupiditas). ArendtVE I O Pensar Introdução
O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis mais profundos. ArendtVE I O Pensar Introdução
Será o fazer-o-mal (pecados por ação e omissão) possível não apenas na ausência de “motivos torpes” (como a lei os denomina), mas de quaisquer outros motivos, na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição? Será que a maldade — como quer que se defina esse estar “determinado a ser vilão” — não é uma condição necessária para o fazer-o-mal? Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar? Por certo, não, no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a “virtude pudesse ser ensinada” e aprendida — somente hábitos e costumes podem ser ensinados, e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento (O fato de que habitualmente se trata de assuntos ligados ao problema do bem e do mal em cursos de “moral” ou de “ética” pode indicar quão pouco sabemos sobre eles, pois moral deriva de mores, e ética, de ethos, respectivamente os termos latino e grego para designar os costumes e os hábitos — estando a palavra latina associada a regras de comportamento e a grega sendo derivada de habitação, como a nossa palavra “hábitos”). ArendtVE I O Pensar Introdução
A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal — o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico — estivesse entre as condições que levam os homens a abster-se de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os “condicione” contra ele? (A própria palavra “consciência”, em todo o caso, aponta nessa direção, uma vez que significa “saber comigo e por mim mesmo”, um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento). ArendtVE I O Pensar Introdução
E não estará essa hipótese reforçada por tudo o que sabemos sobre a consciência, isto é, que uma “boa consciência” em geral só é apreciada na condição de regra por pessoas realmente más, criminosas e tais, ao passo que somente “pessoas boas” são capazes de ter uma má consciência? Dizendo de outra maneira e utilizando uma linguagem kantiana: tendo sido aturdida por um fato que, queira eu ou não, “me pôs na posse de um conceito” (a banalidade do mal), não me era possível deixar de levantar a quaestio juris e me perguntar “com que direito eu o possuía e utilizava”. ArendtVE I O Pensar Introdução
Mas, além disso, também essas questões morais que têm origem na experiência real e se chocam com a sabedoria de todas as épocas — não só com as várias respostas tradicionais que a “ética”, um ramo da filosofia, ofereceu para o problema do mal, mas também com as respostas muito mais amplas que a filosofia tem, prontas, para a questão menos urgente “O que é o pensar?” — renovaram em mim certas dúvidas. ArendtVE I O Pensar Introdução
Certamente não é que Deus esteja morto, algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus (tão pequeno, de fato, que mesmo a palavra “existência” está mal empregada); mas que a maneira como Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente; se algo está morto, só pode ser o pensamento tradicional sobre Deus. ArendtVE I O Pensar Introdução
Em agudo contraste com todas essas teorias, formuladas como um tipo de apologia do pensamento especulativo, encontra-se a famosa, estranhamente desconhecida e sempre mal traduzida observação que está no mesmo prefácio à Fenomenologia, e que expressa diretamente, de modo não sistemático, as experiências originais de Hegel com o pensamento especulativo: “O verdadeiro é sempre a festa báquica, onde nenhum participante deixa de estar bêbado; e já que cada participante não se separa sem se dissolver imediatamente, a festa é, por isto mesmo, um estado de quietude transparente e inquebrantável”. ArendtVE I O Pensar 10
Se o pensamento, guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função, espera “verdade” de sua atividade, tal verdade não é só inefável por definição. “ ArendtVE I O Pensar 13
O espanto admirativo concebido como ponto de partida da filosofia não deixa lugar para a existência factual da desarmonia, da feiura e, enfim, do mal. ArendtVE I O Pensar 15
Nenhum diálogo de Platão trata da questão do mal; apenas no Parmênides ele demonstra um real interesse pelas consequências da inegável existência das coisas hediondas e dos atos vis sobre a doutrina das Ideias. ArendtVE I O Pensar 15
Nesse caso, pergunta Parmênides, o que dizer a respeito dos “objetos corriqueiros e baixos”, como o “cabelo, a lama e a sujeira”, que jamais despertaram admiração em ninguém? Platão, falando por meio da figura de Sócrates, não usa a justificativa comum, surgida mais tarde, do mal e da feiura como partes necessárias do todo, que, apenas da perspectiva limitada do homem, aparecem como mal e como feio. ArendtVE I O Pensar 15
É a seguinte: Deus é a causa final de tudo o que é; Deus, como “bem supremo”, não pode ser a causa do mal; tudo o que é tem que ter uma causa; uma vez que há apenas causas aparentes do mal, mas não uma causa última, o mal não existe. ArendtVE I O Pensar 16
A consequência é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corrosivo sobre todos os critérios estabelecidos, valores, padrões para o bem e para o mal, em suma, sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e ética. ArendtVE I O Pensar 17
O mal e a feiura quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento. ArendtVE I O Pensar 17
Eles podem apresentar-se como deficiências, consistindo a feiura na ausência da beleza, e o mal, kakia, na ausência de bem. ArendtVE I O Pensar 17
Eis por que Sócrates acreditava que ninguém pudesse fazer o mal voluntariamente — o mal, como diríamos nós, não tem estatuto ontológico: ele consiste em uma ausência, um algo que não é. ArendtVE I O Pensar 17
Demócrito, que compreendia o logos, a palavra, como acompanhamento da ação — da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais, distinguindo-as assim da mera semblância —, por isso mesmo desaconselhava a que se falasse dos maus atos: ao ignorarmos o mal, privando-o de qualquer manifestação na fala, ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra. ArendtVE I O Pensar 17
Quando abordamos o espanto admirativo e afirmativo de Platão, encontramos a mesma exclusão do mal tal como ele se desdobra em pensamento; e a encontramos em quase todos os filósofos ocidentais. ArendtVE I O Pensar 17
Ao que parece, a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, “fazem filosofia” são incapazes de fazer o mal. ArendtVE I O Pensar 17
Aonde chegamos em relação a um dos nossos principais problemas — a saber, em relação à possível conexão entre a ausência de pensamento e o mal? Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socrático, o amor da sabedoria, da beleza e da justiça, são capazes de pensamento e dignas de confiança. ArendtVE I O Pensar 18
Em outras palavras, chegamos às “naturezas nobres” de Platão, as poucas a respeito das quais se pode dizer que “não fazem o mal voluntariamente”. ArendtVE I O Pensar 18
No entanto, nem mesmo em seu caso é verdadeira a conclusão implícita e perigosa de que “todo mundo quer fazer o bem” (A triste verdade é que na maioria dos casos o mal é praticado por pessoas que jamais se decidiram a fazer o bem ou o mal). ArendtVE I O Pensar 18
Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazerem o mal, esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade, independentemente dos seus objetos. ArendtVE I O Pensar 18
Podemos não saber se Sócrates acreditava realmente que a ignorância causasse o mal, ou que a virtude pudesse ser ensinada; no entanto é certo que Platão achava mais prudente fiar-se em ameaças. ArendtVE I O Pensar 18
As duas sentenças afirmativas de Sócrates são as seguintes: a primeira, “é melhor sofrer o mal do que o cometer”. ArendtVE I O Pensar 18
Ao que Cálicles, o interlocutor no diálogo, responde o que todo grego teria respondido: “Sofrer o mal não é digno de um homem, mas de um escravo, para quem é melhor morrer do que viver, para quem não é capaz de socorrer nem a si mesmo nem àqueles que para ele são importantes”. ArendtVE I O Pensar 18
A primeira é uma afirmação subjetiva que significa: é melhor para mim sofrer o mal do que o cometer. ArendtVE I O Pensar 18
Mas se, por outro lado, encaramos essa proposição do ponto de vista do mundo, que é distinto daquele dos dois falantes, teríamos que dizer: o que conta é que o mal foi feito; e aí é irrelevante saber quem se saiu melhor — o autor ou a vítima. ArendtVE I O Pensar 18
Na qualidade de cidadãos, nós devemos evitar que o mal seja cometido, porque está em jogo o mundo em que todos nós — o malfeitor, a vítima e o espectador — vivemos. ArendtVE I O Pensar 18
Poderíamos quase definir um crime como aquela transgressão da lei que exige punição, não importando quem foi injuriado; a vítima pode estar disposta a perdoar e a esquecer, e, se houver a suspeita de que o malfeitor certamente não voltará a fazer o mal, pode não haver perigo para as outras pessoas. ArendtVE I O Pensar 18
É como se ele dissesse a Cálicles: se você estivesse, como eu, apaixonado pela sabedoria, e se sentisse a necessidade de pensar sobre tudo e examinar tudo, você saberia que é melhor sofrer o mal do que o praticar, caso não haja alternativa, caso o mundo seja como você o descreve, dividido entre fortes e fracos, onde “os fortes fazem o que está em seu poder, e os fracos sofrem o que têm que sofrer” (Tucídides). ArendtVE I O Pensar 18
Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do ego pensante, deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada. ArendtVE II O Querer 1
Para nós, que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo, com sua ênfase na unicidade do “momento histórico”, a exaltação grega pré-filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida — “seja para o mal ou para o bem” (Tucídides), para além de todas as considerações morais, ele merece ser salvo do esquecimento, primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores — parecem incompatíveis com o conceito cíclico de tempo dos antigos. ArendtVE II O Querer 1
E foi uma história da máxima importância para os cristãos, embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares: ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem, como no passado. ArendtVE II O Querer 1
A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal. ArendtVE II O Querer 4
Desse modo, Agostinho inicia seu tratado De libero arbitrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade) com a seguinte questão: “Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do mal?” Trata-se de uma questão primeiramente proposta em toda a sua complexidade por Paulo (na Epístola aos romanos) e em seguida generalizada para “qual é a causa do mal?”, com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem. ArendtVE II O Querer 4
Ou nega-se que o mal é verdadeiramente real (ele existe apenas como modalidade deficiente do bem), ou se descarta o mal, com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica (o problema está em nosso intelecto limitado, que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria) — tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que “somente o todo é na verdade real” (“nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeit”), nas palavras de Hegel. ArendtVE II O Querer 4
O mal, não sendo, nisso, diferente da liberdade, parece pertencer àquelas “coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada”. ArendtVE II O Querer 4
A distinção vem a tornar-se a pedra angular da ética kantiana, mas aparece primeiramente na filosofia medieval — por exemplo, na distinção de Mestre Eckhart entre “a inclinação para pecar e a vontade de pecar, não sendo a inclinação um pecado”, o que deixa a própria questão dos atos maus completamente sem explicação: “Se nunca fiz o mal, mas apenas tive a vontade do mal trata-se de um pecado tão grande quanto matar todos os homens, embora eu não tenha feito nada”. ArendtVE II O Querer 7
Precisamente quando ele “quer fazer o correto (to kalon)” descobre que “o mal está ali à mão” (7:21), pois ele “não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: ‘Não cobiçarás”.’ ArendtVE II O Querer 8
Quanto ao fenômeno em si, “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse eu faço” (Romanos 7:19), ele não é obviamente uma novidade. ArendtVE II O Querer 8
Encontramos quase as mesmas palavras em Ovídio: “Vejo o que é melhor e aprovo; sigo o que é pior”, e esta é provavelmente uma tradução da famosa passagem da Medeia, de Eurípides (linhas 1078-80): “Sei muito bem o mal que desejo fazer; mais forte porém do que minhas deliberações é o meu thymos , a causa dos maiores males entre os mortais”. ArendtVE II O Querer 8
Paulo sabia como seria fácil deduzir de suas indicações que devemos “permanecer no pecado para que haja abundância de graça” (Romanos 6:1) (“Por que então não praticamos o mal do qual vem o bem — como alguns injuriosamente dizem que ensinamos?” ), embora dificilmente pudesse prever quanta disciplina e rigidez de dogma seriam necessárias para proteger a Igreja contra o pecca fortiter. ArendtVE II O Querer 8
Onde está o mal? Na vontade. ArendtVE II O Querer 9
A princípio, parece que temos aí a antiga doutrina estoica, só que sem qualquer dos suportes filosóficos do estoicismo antigo; não ouvimos de Epiteto nada sobre a bondade intrínseca da natureza, de acordo com a qual (kata physin) o homem deve viver e pensar — isto é, tirar do pensamento todo o mal aparente, entendendo-o como um componente necessário de um bem completo. ArendtVE II O Querer 9
A única coisa certa a se temer é, portanto, o próprio medo; e se os homens não podem escapar à dor ou à morte, podem por outro lado dissuadir-se do medo dentro de si, eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos: “Se guardamos nosso medo, não para a morte ou para o exílio, mas para o próprio medo, então deveríamos treinar para evitar o que pensamos de mal”. ( ArendtVE II O Querer 9
À primeira vista, essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença (apatheia) — como se proteger da realidade, como perder sua habilidade de ser por ela afetado, para o bem ou para o mal, na alegria ou na tristeza — parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental. ArendtVE II O Querer 9
Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente “luta” (agon), uma competição olímpica que exige uma suspeita sempre alerta de mim para comigo: “Em uma palavra: mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo , quando está à sua espera”. ArendtVE II O Querer 9
A questão principal aí é uma investigação sobre a causa do mal: “pois sem alguma causa ele não poderia existir”, e Deus não pode ser a causa do mal porque “Deus é bom”. ArendtVE II O Querer 10
Partindo-se daí, fica difícil não chegar à seguinte conclusão: “Façamos o mal para que o bem frutifique”. ArendtVE II O Querer 10
Em suma, “todas as coisas, pelo simples fato de que são, são boas”, inclusive o mal e o pecado; e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus-Criador, mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a não-existência absoluta. ArendtVE II O Querer 10
Pois encontramos o mesmo conflito de vontades onde nenhuma escolha entre o bem e o mal está em jogo, onde ambas as vontades devem ser ditas más ou ambas ditas boas. ArendtVE II O Querer 10
Em contrapartida, as reflexões de Agostinho estiveram intimamente relacionadas com suas experiências; foi importante para ele descrevê-las em detalhe; e mesmo quando tratava de assuntos especulativos tais como a origem do mal (no diálogo O livre-arbítrio da vontade, da fase inicial), nem sequer lhe ocorreu citar as opiniões de um sem-número de homens eruditos e conceituados no assunto. ArendtVE II O Querer 11
O fundamento conceitual de todas essas distinções é que “o bem e o Ser diferem somente em pensamento: são a mesma realiter”, e isso a ponto de se poder dizer que são “conversíveis”: “ tem de bondade tanto quanto tem de Ser, e faltando-lhe plenitude de Ser, falta-lhe bondade, o que é chamado de mal”. ArendtVE II O Querer 11
O mal não é um princípio, porque é pura ausência, e a ausência pode ser enunciada “em um sentido privativo e em um sentido negativo. ArendtVE II O Querer 11
A ausência do bem, tomada negativamente, não é o mal como, por exemplo, no caso de faltar a um homem a rapidez do cavalo; o mal é uma ausência em que uma coisa é privada de um bem que a ela pertence de forma essencial — por exemplo, o homem cego, privado da visão”. ArendtVE II O Querer 11
Por esse caráter de privação, o mal radical ou absoluto não pode existir. ArendtVE II O Querer 11
Não há mal em que se possa detectar “a ausência total do bem”. ArendtVE II O Querer 11
Pois “se pudesse haver o mal pleno, ele destruiria a si mesmo”. ArendtVE II O Querer 11
Tomás não foi o primeiro a considerar o mal como nada mais do que “privação”, uma espécie de ilusão de ótica causada quando o todo, do qual o mal é apenas uma parte, não é levado em conta. ArendtVE II O Querer 11
Já Aristóteles tivera a noção de um Universo “no qual toda parte tem seu lugar perfeitamente ordenado”, de modo que o bem inerente ao fogo “causa mal à água” por acidente. ArendtVE II O Querer 11
E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do mal; nem mesmo Kant, que inventou o conceito de “mal radical”, acreditava que alguém que “não possa demonstrar-se um amante” deva, por isso, estar “fadado a demonstrar-se um vilão”, que, usando a linguagem de Agostinho, velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre querer e não-querer. ArendtVE II O Querer 11
No contexto de sua filosofia, “dizer que Deus criou não só o mundo mas também nele o mal seria dizer que Deus criou o nada”, como apontou Gilson. ArendtVE II O Querer 11
Scotus evita dar uma resposta clara à questão de se o ódio a Deus é possível ou não pela relação íntima que existe entre essa questão e a questão do mal. ArendtVE II O Querer 12
Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores, também ele nega que o homem possa querer o mal como mal, “mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta”. ArendtVE II O Querer 12
Concorda com quase todos os outros filósofos que está na natureza humana inclinar-se para o bem, explicando o mal como fraqueza humana, a marca de uma criatura que veio do nada (“creatio ex nihilo”) e que, portanto, tem uma certa tendência para mergulhar de volta no nada (“omnis creatura potest tendere in nihil et in non esse, eo quod de nihilo est”). ArendtVE II O Querer 12
Há, em primeiro lugar — o que parece óbvio, mas que nunca foi apontado antes —, o fato de que “a Vontade não pode querer retroativamente; não pode parar a roda do tempo”. Esta é a versão de Nietzsche para o “eu-quero-e-não-posso”, pois é precisamente este querer retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar. Dessa impotência Nietzsche retira todo o mal humano — o rancor, a sede de vingança (castigamos porque não podemos desfazer o que foi feito), a sede de poder para dominar os outros. ArendtVE II O Querer 14
