Arendt (VE) – intelecto
A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “intelecto” (e não “entendimento”, o que me parece uma tradução equivocada; Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus, e, embora Verstand seja o substantivo de verstehen, o “entendimento” das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen) é crucial para nossa empreitada. ArendtVE I O Pensar Introdução
Assim, a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo. ArendtVE I O Pensar Introdução
O grande obstáculo que a razão (Vernunft) põe em seu próprio caminho origina-se no intelecto (Verstand) e nos critérios, de resto inteiramente justificados, que ele estabeleceu para seus propósitos, ou seja, para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição. ArendtVE I O Pensar Introdução
Mas, se é verdade que o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do intelecto — e Kant fundou essa justificativa na afirmação de que os assuntos com que lidam, embora incognoscíveis, são do maior interesse existencial para o homem —, então o pressuposto deve ser: o pensamento e a razão não se ocupam daquilo de que se ocupa o intelecto. ArendtVE I O Pensar Introdução
As tentações para resolver a equação — que se reduzem à recusa de aceitar e pensar por meio da distinção que Kant faz entre razão e intelecto, entre a “necessidade urgente” de pensar e o “desejo de conhecer” — são muito fortes e não podem de modo algum ser unicamente tributadas ao peso da tradição. ArendtVE I O Pensar Introdução
Libertados por Kant da velha escola dogmática e de seus exercícios estéreis, os especialistas construíram não apenas novos sistemas, mas uma nova “ciência” — o título original da maior dentre as suas obras, a Fenomenologia do espírito, de Hegel, era “Ciência da Experiência da Consciência” —, empalidecendo precipitadamente a distinção que Kant fez entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do intelecto pela cognição. ArendtVE I O Pensar Introdução
Pensar Deus e especular sobre um além é, segundo Kant, inerente ao pensamento humano, uma vez que a razão, a capacidade especulativa do homem, transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto: somente o que aparece e, no modo do parece-me, é dado à experiência pode ser conhecido; mas os pensamentos também “são”, e algumas coisas-pensamento, a que Kant chama “ideias”, embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis, tais como Deus, a liberdade e a imortalidade, são para nós, no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensá-las e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito. ArendtVE I O Pensar 6
Entretanto, a faculdade de pensar — que Kant, como vimos, chamou Vernunft (razão), para distinguir de Verstand (intelecto), a faculdade de cognição — é de uma natureza inteiramente diversa. ArendtVE I O Pensar 8
A distinção, em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant, encontra-se no fato de que “os conceitos da razão nos servem para conceber , assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções” (“Vernunftbegriffe dienen zum Begreifen, wie Verstandesbegriffe zum Verstehen der Wahrnehmungen”). ArendtVE I O Pensar 8
Em outras palavras, o intelecto (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender seu significado. ArendtVE I O Pensar 8
Essa distinção entre verdade e significado parece-me não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano, mas parece ser também a consequência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e intelecto. ArendtVE I O Pensar 8
A fonte da verdade matemática é o cérebro humano; e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que o estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto. ArendtVE I O Pensar 8
O intelecto, o órgão do conhecimento e da cognição, ainda pertence a este mundo; nas palavras de Duns Scotus, ele está sob o domínio da natureza, cadit sub natura, e carrega consigo todas as necessidades a que está sujeito um ser vivo dotado de órgãos sensoriais e poder cerebral. ArendtVE I O Pensar 8
Nesse sentido, a razão é a condição a priori do intelecto e da cognição; e porque razão e intelecto estão assim conectados — apesar da completa diferença de disposição e propósito — é que os filósofos sentiram-se sempre tentados a aceitar o critério da verdade — tão válido para a ciência e para a vida cotidiana — como igualmente aplicável ao âmbito bastante extraordinário em que se movem. ArendtVE I O Pensar 8
Por fim, o juízo, a misteriosa capacidade do espírito pela qual são reunidos o geral, sempre uma construção espiritual, e o particular, sempre dado à experiência sensível, é uma “faculdade peculiar” e de modo algum inerente ao intelecto, nem mesmo no caso dos “juízos determinantes” — em que os particulares são subordinados a regras gerais sob a forma de um silogismo —, porque não dispomos de nenhuma regra para as aplicações da regra. ArendtVE I O Pensar 9
E acrescenta: “Esse esquematismo de nosso intelecto é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte, que eles se desvelem ao nosso olhar”. ArendtVE I O Pensar 12
Ao que podemos acrescentar breves observações de Wittgenstein, cujas investigações filosóficas centram-se no inefável, em um esforço incansável para dizer o que “pode ser”: “Os resultados da filosofia são a descoberta de galos que o intelecto ganhou quando bateu com a cabeça nos limites da linguagem”. ArendtVE I O Pensar 13
E para o jovem Schelling essa questão última (“por que não há o nada, por que há algo?”) — colocada pelo intelecto tomado de vertigem, à beira do abismo — é para sempre suprimida pela percepção de que “o Ser é necessário, ele é, pela afirmação absoluta do Ser na cognição”. ArendtVE I O Pensar 15
É o que Kant chama de “terra do puro intelecto” (Land des reinen Verstandes), “uma ilha, encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza” e “rodeada por um vasto e tempestuoso oceano”, o mar da vida cotidiana. ArendtVE I O Pensar 20
A decisão a que chega a vontade não poderá jamais ser derivada da mecânica do desejo ou das deliberações do intelecto que podem vir a precedê-la. ArendtVE I O Pensar 21
De qualquer forma, o fato é que, antes do surgimento do cristianismo, jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à “ideia” de Liberdade, assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade, e a faculdade da Razão, a coisas que estão além do conhecimento humano ou, como dissemos aqui, ao Significado. ArendtVE II O Querer Introdução
A constituição de um “presente que dura” é “o ato habitual, normal, banal do nosso intelecto”, realizado em qualquer tipo de reflexão, seja quando ela tem como objeto as ocorrências comuns do dia a dia, seja quando a atenção se concentra em coisas eternamente invisíveis, que ficam de fora da esfera do poder humano. ArendtVE II O Querer 1
Trata-se de Duns Scotus, o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e — mais que isso — do fator contingência em tudo o que é. ArendtVE II O Querer 4
Se a contingência — que, para a filosofia clássica, era o máximo da falta de sentido — irrompeu como realidade nos primeiros séculos da Era Cristã por causa da doutrina bíblica — que “opunha a contingência à necessidade, a particularidade à universalidade, a vontade ao intelecto”, assegurando assim “um lugar para ‘o contingente’ dentro da filosofia contra a tendenciosidade original desta última” —, ou se as abaladoras experiências políticas dos primeiros séculos daquela Era deixaram à mostra os truísmos e as plausibilidades do pensamento antigo, essa é uma questão que pode ficar em aberto. ArendtVE II O Querer 4
Não restam dúvidas, porém, de que a inclinação original contra a contingência, a particularidade e a Vontade — e a predominância correspondente da necessidade, da universalidade e do Intelecto — sobreviveu profundamente ao desafio até a Era Moderna. ArendtVE II O Querer 4
Ou nega-se que o mal é verdadeiramente real (ele existe apenas como modalidade deficiente do bem), ou se descarta o mal, com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica (o problema está em nosso intelecto limitado, que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria) — tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que “somente o todo é na verdade real” (“nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeit”), nas palavras de Hegel. ArendtVE II O Querer 4
Os apetites surgem automaticamente em meu corpo, e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim; posso dizer “Não” a eles, aconselhado pela razão ou pela lei de Deus, mas a razão em si não me leva à resistência (Duns Scotus, muito influenciado por Agostinho, elabora mais tarde esse argumento — Sem dúvida o homem carnal, no sentido em que Paulo o entendia, não pode ser livre; mas o homem espiritual tampouco é livre — Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar; o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitar-se a ele, mas deve também querer fazê-lo). ArendtVE II O Querer 10
Ou, para antecipar uma última sugestão de Heidegger, já que a Vontade se experimenta como causadora do acontecimento de coisas que, de outra forma, não teriam acontecido, não poderia ocorrer que aquilo que se esconde por trás da nossa busca de causas não é nem o intelecto nem nossa sede de saber (que poderia ser saciada com a informação direta), mas precisamente a Vontade — como se por trás de cada “por que” existisse um desejo latente, não só de aprender e de conhecer, mas também de saber-como? Finalmente, ainda no rastro das dificuldades descritas porém não explicadas na Epístola aos Romanos, Agostinho vem a interpretar o lado escandaloso da doutrina da graça de Paulo: “Veio a Lei para que crescesse a perdição; mas onde o pecado cresceu, a graça abundou ainda mais”. ArendtVE II O Querer 10
Em Sobre a Trindade, a mais importante tríade do espírito é Memória, Intelecto e Vontade. ArendtVE II O Querer 10
Referem-se mutuamente , sendo que cada uma é compreendida pelas” outras duas, e que também mantêm relação consigo mesmas: “Lembro-me de que tenho memória, intelecto e vontade; entendo que entendo, quero e me lembro; e quero querer, lembrar-me e entender”. ArendtVE II O Querer 10
A Vontade diz à Memória o que reter e o que esquecer; diz ao Intelecto o que escolher para o entendimento. ArendtVE II O Querer 10
A Memória e o Intelecto são contemplativos e, sendo assim, são passivos; é a Vontade que os faz trabalhar e que, ao final, os “reúne”. ArendtVE II O Querer 10
Além disso, ao fixarmos nosso espírito no que vemos ou ouvimos, estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado, e ao nosso intelecto, o que é para ser entendido, que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento. ArendtVE II O Querer 10
A memória e o intelecto retiraram-se das aparências exteriores, e não é com essas aparências em si (a árvore real) que lidam, mas com imagens (a árvore vista) que estão claramente dentro de nós. ArendtVE II O Querer 10
Esse poder do espírito deve-se não ao Intelecto, tampouco à Memória, mas somente à Vontade, que une a interioridade do espírito ao mundo exterior. ArendtVE II O Querer 10
Essa Vontade poderia ser entendida como “a fonte da ação”; ao orientar a atenção dos sentidos, controlando as imagens impressas na memória e fornecendo ao intelecto o material para a compreensão, a Vontade prepara o terreno no qual a ação se pode dar. ArendtVE II O Querer 10
E assim como no homem e na mulher há uma só carne de dois, também a natureza única do espírito abarca nosso intelecto e nossa ação, ou nosso conselho e nossa execução assim como foi dito daqueles: ‘Devem ser dois em uma só carne’, pode-se também dizer desses : ‘Dois em um só espírito.’” ArendtVE II O Querer 10
A vontade decide como usar a memória e o intelecto, isto é, “remete essas faculdades a alguma outra coisa”, mas não sabe como usá-las com “o júbilo, não da esperança, mas do que é realmente o melhor”. ArendtVE II O Querer 10
Para resumir: a Vontade de Agostinho, que não é concebida como uma faculdade isolada, mas em sua função dentro do espírito como um todo, em que todas as faculdades individuais — memória, intelecto e vontade — “referem-se mutuamente”, encontra redenção ao transformar-se em Amor. ArendtVE II O Querer 10
Referiu-se à fides quaerens intellectum, a “fé pedindo auxílio ao intelecto”, de Anselmo, fazendo assim da filosofia ancilla theologiae, a serva da fé. ArendtVE II O Querer 11
Esta ordem esquemática jamais se altera, e o leitor com paciência suficiente para seguir a longa sequência de questões e de respostas, levando em conta cada objeção e cada posição contrária, ficará fascinado com a imensidão de um intelecto que parece tudo saber. ArendtVE II O Querer 11
Com clareza insuperável, Tomás estabelece a distinção entre duas faculdades de “apreensão”: o intelecto e a razão; as duas têm suas correspondentes faculdades intelectualmente apetitivas, vontade e liberum arbitrium ou livre escolha. ArendtVE II O Querer 11
O intelecto e a razão lidam com a verdade. ArendtVE II O Querer 11
O intelecto, também chamado de “razão universal”, lida com a verdade matemática ou autoevidente, com os primeiros princípios que dispensam demonstração para ser admitidos, enquanto a razão, ou razão particular, é a faculdade por meio da qual retiramos conclusões particulares de proposições universais, como nos silogismos. ArendtVE II O Querer 11
A distinção seria que a verdade, percebida apenas pelo intelecto, revela-se ao espírito e a ele se impõe sem que haja qualquer atividade da parte do espírito, enquanto, no processo do raciocínio discursivo, o espírito compele a si mesmo. ArendtVE II O Querer 11
O processo de raciocínio argumentativo é ativado pela fé de uma criatura racional cujo intelecto volta-se naturalmente para o Criador, em busca de ajuda para atingir “um tal conhecimento do ser verdadeiro”, que é Ele “tal como pode ser encontrado dentro dos limites da razão natural”. ArendtVE II O Querer 11
A mudança mais impressionante que se observa quando se passa de Agostinho para Tomás e Duns Scotus é que nenhum dos dois últimos está interessado na problemática da estrutura da Vontade, vista como faculdade isolada; o que está em jogo para eles é a relação entre a Vontade e a Razão, ou o Intelecto, e a questão dominante é qual dessas faculdades é a mais “nobre”, e, portanto, qual delas tem o direito de primazia sobre a outra. ArendtVE II O Querer 11
Mais significativo ainda, especialmente em vista da enorme influência de Agostinho sobre os dois pensadores, pode ser o fato de que, das três faculdades de Agostinho — Memória, Intelecto e Vontade —, uma delas tenha se perdido, a saber, a Memória, a faculdade mais especificamente romana, a que liga o homem ao passado. ArendtVE II O Querer 11
Tal perda acabou sendo definitiva; nunca mais se vê, em nossa tradição filosófica, a Memória na mesma posição do Intelecto e da Vontade. ArendtVE II O Querer 11
O Intelecto, que, em Agostinho, se relacionava com tudo o que estivesse presente no espírito, em Tomás volta a relacionar-se com os primeiros princípios, isto é, com o que é logicamente anterior a qualquer outra coisa: é a partir deles que tem início o processo de raciocínio que lida com particulares. ArendtVE II O Querer 11
No que diz respeito à Vontade, Tomás, seguindo de perto a Ética a Nicômaco, insiste principalmente na categoria meios-fim; e, como em Aristóteles, o fim, embora seja objeto da Vontade, é dado à Vontade pelas faculdades de apreensão, isto é, pelo Intelecto. ArendtVE II O Querer 11
Todas as coisas criadas, cuja distinção maior é a de que são, aspiram a “Ser do seu próprio modo”, mas somente o Intelecto tem “conhecimento” do Ser como um todo; os sentidos “não conhecem o Ser, exceto sob as circunstâncias do aqui e do agora”. ArendtVE II O Querer 11
O Intelecto “apreende o Ser absolutamente e para todo o sempre”, e o homem, dotado desta faculdade, só pode desejar “sempre existir”. ArendtVE II O Querer 11
Tal é a “inclinação natural” da Vontade, cujo objetivo final é para ela tão “necessário” quanto a verdade é coercitiva para o Intelecto. ArendtVE II O Querer 11
O objetivo final, o desejo que o Intelecto tem de existir para sempre, mantém os apetites sob controle, de modo que a distinção concreta entre os homens e os animais manifeste-se no fato de que o homem “não é movido de imediato mas aguarda a ordem da Vontade, que é o apetite superior e, assim, o apetite inferior não basta para causar movimento a não ser que o apetite mais alto consinta”. ArendtVE II O Querer 11
À primeira vista, a questão não parece fazer muito sentido, já que o objeto final é o mesmo; é o Ser que aparece como bom e desejável para a vontade e verdadeiro para o intelecto. ArendtVE II O Querer 11
E Tomás concorda: esses dois poderes “estão incluídos um no outro em seus atos, porque o Intelecto entende que a Vontade quer, e a Vontade quer que o Intelecto entenda”. ArendtVE II O Querer 11
Assim como o Intelecto “apreende o ser universal e a verdade”, também a Vontade “deseja o bem universal”; e assim como o Intelecto tem o raciocínio como seu poder subordinado para lidar com os particulares, também a Vontade tem como subordinada a faculdade da livre escolha (liberum arbitrium), um auxiliar subserviente na escolha dos meios particulares adequados para se alcançar um fim universal. ArendtVE II O Querer 11
Voltando a Tomás, ele insiste: “Se Intelecto e Vontade forem comparados de acordo com a universalidade de seus respectivos objetos, então o Intelecto é absolutamente mais alto e mais nobre do que a Vontade”. ArendtVE II O Querer 11
Para ele, a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos — a Verdade sobre o Bem —, mas sim no modo como as duas faculdades “concorrem” dentro do espírito humano: “todo movimento da vontade é precedido de uma compreensão” — ninguém pode querer o que não conhece — “enquanto a compreensão não é precedida de um ato da vontade” (Aqui naturalmente ele se afasta de Agostinho, que sustentava a primazia da Vontade como atenção, mesmo para atos de percepção sensorial). ArendtVE II O Querer 11
Quem poderia negar que ninguém pode querer o que não conhece de alguma forma, ou, ao contrário, que alguma volição precede e decide a direção que queremos dar a nosso conhecimento ou à nossa busca de conhecimento? A verdadeira razão de Tomás para sustentar a primazia do Intelecto — assim como a razão final de Agostinho para decidir sobre o primado da Vontade — está na resposta indemonstrável para a questão decisiva de todos os pensadores medievais: em que “consiste o fim e a felicidade última do homem”? Sabemos que a resposta de Agostinho foi amor; ele pretendia passar sua vida eterna em uma união livre de desejos e inseparável da criatura com seu criador. ArendtVE II O Querer 11
Para ele, um amor sem desejo é impensável, e, portanto, a resposta é categórica: “A felicidade última do homem é essencialmente conhecer Deus pelo Intelecto; não é um ato da Vontade”. ArendtVE II O Querer 11
Aqui Tomás segue seu mestre, Alberto Magno, que declarou que “o júbilo supremo se dá quando o Intelecto encontra-se em estado de contemplação”. ArendtVE II O Querer 11
O Intelecto, que segundo Tomás é um “poder passivo”, tem garantida a primazia sobre a Vontade não só porque “apresenta um objeto ao apetite”, sendo assim anterior a ele, mas também porque sobrevive à Vontade, que se extingue, de certo modo, quando se alcança o objeto. ArendtVE II O Querer 11
Logo, a Vontade move o Intelecto para que ele seja ativo, do mesmo modo que se diz que um agente move; mas “o Intelecto move a Vontade do modo como o fim move” — isto é, do modo como o “motor imóvel” de Aristóteles devia mover-se; e como poderia mover-se senão em virtude de “ser amado”, assim como o amante é movido pelo amado? Aquilo que em Aristóteles era o “mais contínuo dos prazeres” é agora esperado como ventura eterna, não um prazer que possa atender às volições, mas um deleite que põe em repouso a vontade, de modo que o fim último da Vontade, visto em referência a si mesmo, seja deixar de querer — atingir, em suma, o seu próprio não-ser. ArendtVE II O Querer 11
Poderia o “prazer” de amar alguém, indaga ele, significar que o “fim” último da Vontade foi posto no homem? A resposta é “não”, pois, segundo Tomás, o que Paulo disse na verdade foi que “gostava de seu irmão como um meio para gostar de Deus” — e Deus, como vimos, não pode ser alcançado pela Vontade ou pelo Amor do Homem, mas somente por seu Intelecto. ArendtVE II O Querer 11
Sem dúvida, à primeira vista, a impressão é de que o único ponto de diferença em relação ao escolasticismo tomista é a questão da primazia da vontade, a qual é “provada” por Scotus com tanta plausibilidade argumentativa quanto a que Tomás desenvolveu para provar a primazia do Intelecto, e com quase o mesmo número de citações de Aristóteles. ArendtVE II O Querer 12
Pondo em poucas palavras os argumentos opostos, temos o seguinte: se Tomás argumentara que a Vontade é um órgão executivo, necessário para executar os insights do Intelecto, uma faculdade meramente “subserviente”, Duns Scotus sustenta que “Intellectus est causa subserviens voluntatis”. ArendtVE II O Querer 12
O Intelecto serve à Vontade, fornecendo a ela seus objetos, bem como o conhecimento necessário; ou seja, o Intelecto torna-se, por sua vez, uma faculdade meramente subserviente. ArendtVE II O Querer 12
Sem esta confirmação, o Intelecto deixa de funcionar. ArendtVE II O Querer 12
Essa finitude do intelecto humano — bastante semelhante àquela do homo temporalis de Agostinho — deve-se ao simples fato de que o homem enquanto homem não criou a si mesmo, embora seja capaz de multiplicar-se como outras espécies de animais. ArendtVE II O Querer 12
Por que motivo ao intelecto não repugna a noção de algo infinito?” Dito de outra forma: o que há no espírito humano que faz com que seja capaz de transcender suas próprias limitações, sua finitude absoluta? Em Scotus, a resposta para esta questão, diferentemente de Tomás, é a Vontade. ArendtVE II O Querer 12
Seu Intelecto está em sintonia com este Ser e seus órgãos sensoriais são talhados para a percepção de aparências; seu Intelecto é “natural”, “cadit sub natura”; o homem é forçado a aceitar, compelido pela evidência do objeto, qualquer coisa que o Intelecto lhe proponha: “Non habet in potestate sua intelligere et non inelligere”. ArendtVE II O Querer 12
É a possibilidade de resistência às necessidade do desejo, por um lado, e aos ditames do intelecto e da razão, por outro, que constituem a liberdade humana. ArendtVE II O Querer 12
É esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada, e nem o desejo nem o intelecto podem equiparar-se a ela: um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir, e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada. ArendtVE II O Querer 12
Para ficar com o presente exemplo: nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior; nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é, real e necessariamente, conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto. ArendtVE II O Querer 12
Não será suficiente evitar o clichê do “oponente sistemático de Tomás”, presente nos manuais; e, em sua insistência na Vontade como a faculdade mais nobre em comparação com o Intelecto, ele teve muitos predecessores dentre os escolásticos — o mais importante foi Petrus Johannis Olivi. ArendtVE II O Querer 12
A primazia do Intelecto sobre a Vontade deve ser rejeitada “porque ela não pode salvar a liberdade de forma alguma” — “quia hoc nullo modo salvat libertatem”. ArendtVE II O Querer 12
Os homens são parte inseparável dessa Criação, e todas as suas capacidades naturais, inclusive seu intelecto, seguem naturalmente as leis estabelecidas pelo Fiat divino. ArendtVE II O Querer 12
Mas, no seu modo de pensar, não era preciso haver tal conciliação, pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito; se é que havia conflito, ele corresponderia a um conflito intramuros, entre os egos pensante e volitivo, um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte: “Por quê?” A razão para isso é simples: a Vontade, como Nietzsche descobriria mais tarde, é incapaz de “querer retroativamente”; logo, deixe-se para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado. ArendtVE II O Querer 12
O intelecto, tentando fornecer à vontade uma causa explanatória que lhe abrande a indignação quanto à própria fraqueza, fabricará uma história que faça com que os dados se encaixem. ArendtVE II O Querer 12
Assim como o Intelecto, a Vontade se inclina naturalmente para a necessidade, só que a Vontade, ao contrário do Intelecto, pode conseguir resistir à inclinação. ArendtVE II O Querer 12
Assim, o intelecto está “preso aos sentidos”, e “sua função inata é entender os dados sensoriais”; de maneira semelhante, “a Vontade está presa ao apetite sensorial” e sua função inata é “desfrutar de si mesma”. “ ArendtVE II O Querer 12
Um prazer inerente à vontade em si mesma é tão natural para a vontade quanto entender e conhecer o são para o intelecto, e ele pode ser detectado até mesmo no ódio; mas sua perfeição inata, a paz final entre o dois-em-um, pode se dar somente quando a vontade é transformada em amor. ArendtVE II O Querer 12
A contemplação do summum bonum, da “coisa” mais alta, portanto, Deus, seria o ideal do intelecto, que sempre se baseia na intuição, a apreensão de uma coisa em seu “ser-isto” , haecceitas, que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado, mas também porque a intuição do “ser-isto” é imperfeita: o “intelecto recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade”. ArendtVE II O Querer 12
A beatitude é, portanto, o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama, satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele”. ArendtVE II O Querer 12
Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade, mas não mais como uma atividade do espírito, uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto. ArendtVE II O Querer 12
Nada parecido perturba nosso intelecto, a capacidade que o espírito tem de cognição e sua confiança na verdade. ArendtVE II O Querer 16
Falei da orgia de pensamento especulativo que se seguiu à liberação kantiana da necessidade da razão de pensar além da capacidade cognitiva do intelecto, os jogos que os idealistas alemães fizeram com os conceitos personificados e as alegações feitas para a validade científica — algo que muito se distancia da “crítica” de Kant. ArendtVE II O Querer 16
