Arendt (VE) – ego pensante
O motivo por que nem Kant nem seus sucessores prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade e ainda menos às experiências do ego pensante é que, apesar de todas as distinções, eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência, que são os resultados e os critérios da cognição. ArendtVE I O Pensar Introdução
Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências, mas, ao contrário, da experiência não ordinária do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 6
O ego pensante é, pois, a “coisa-em-si” de Kant: ele não aparece para os demais e, diferentemente do eu da autoconsciência, ele não aparece para si mesmo. ArendtVE I O Pensar 6
O ego pensante é pura atividade e, portanto, não tem idade, sexo ou qualidades, e não tem uma história de vida. ArendtVE I O Pensar 6
Pois o ego pensante não é o eu. ArendtVE I O Pensar 6
Há uma observação incidental em Tomás de Aquino — uma das de que tanto dependemos em nossa pesquisa — que soa de forma misteriosa, a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o ego pensante e o eu: “Minha alma não sou eu; e se apenas as almas forem salvas, nem eu nem homem algum estará salvo”. ArendtVE I O Pensar 6
Mas faríamos melhor se nos voltássemos para os escritos pré-críticos, de maneira a encontrar uma descrição real das puras experiências do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 6
Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 6
E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. ArendtVE I O Pensar 6
Do ponto de vista do ego pensante, o corpo é apenas um obstáculo. ArendtVE I O Pensar 6
Parece muito apropriado que esta falácia, como a maioria das outras que afligiram a tradição filosófica, tenha tido origem nas experiências do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 6
Para o filósofo, falando a partir da experiência do ego pensante, o homem é muito naturalmente não apenas verbo, mas pensamento feito carne, a encarnação sempre misteriosa, nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento. ArendtVE I O Pensar 7
Seu interesse principal era encontrar algo — o ego pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à alma — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. ArendtVE I O Pensar 7
Além do mais, é precisamente a atividade do pensamento — as experiências do ego pensante — que gera dúvida sobre a realidade do mundo e de mim mesmo. ArendtVE I O Pensar 7
Para o ego pensante, essa suspensão é natural; não é, de modo algum, um método especial a ser ensinado e aprendido; nós o conhecemos sob o fenômeno muito comum do alheamento, que se observa nas pessoas absorvidas por qualquer tipo de pensamento. ArendtVE I O Pensar 7
Essa estranheza e esse alheamento não são mais perigosos — de tal forma que todos os “pensadores”, profissionais ou leigos, sobrevivem com facilidade à perda do sentido de realidade — porque o ego pensante se afirma apenas temporariamente. ArendtVE I O Pensar 7
Propriamente falando, elas nunca aparecem, embora se manifestem para o ego pensante, volitivo ou judicativo sabedor de estar ativo, embora lhes falte a habilidade ou a urgência para aparecer como tal. ArendtVE I O Pensar 9
As teorias dos dois mundos, quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos, surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 9
O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante. ArendtVE I O Pensar 10
Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. ArendtVE I O Pensar 10
O filósofo que vive na “terra do pensamento” (Kant) será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante, para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida. ArendtVE I O Pensar 10
Como não é idêntico ao eu real, o ego pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências. ArendtVE I O Pensar 10
Ele sabia que a intensidade das experiências do ego pensante deve-se ao fato de elas serem pura atividade: “A própria essência é ação. ArendtVE I O Pensar 10
Para Hegel, essa é a maneira pela qual a própria “vida da verdade” — verdade que se tornou viva no processo do pensamento — manifesta-se para o ego pensante. ArendtVE I O Pensar 10
Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências. ArendtVE I O Pensar 12
Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento — cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o mundo das aparências e o ego pensante —, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. ArendtVE I O Pensar 13
Em outras palavras, o prazer de que fala Aristóteles, apesar de manifesto para o ego pensante, é inefável por definição. ArendtVE I O Pensar 13
A simples experiência do ego pensante mostrou-se impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores, ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar, de que existe algo como a “cognição especulativa” de Hegel. ArendtVE I O Pensar 13
Ainda assim, tais metáforas, embora correspondam ao modo especulativo e não-cognitivo de pensar e permaneçam leais às experiências do ego pensante, uma vez que não se relacionam com qualquer capacidade cognitiva, permanecem singularmente vazias; e o próprio Aristóteles não as utilizou em lugar algum — a não ser quando afirma que estar vivo é energein, isto é, estar ativo para o seu próprio bem. ArendtVE I O Pensar 13
Essa fórmula é impressionante, e veremos, mais adiante, que ela sem dúvida corresponde a uma experiência altamente característica do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 14
Essa suspensão da realidade — esse desvencilhar-se da realidade, tratando-a como nada mais do que uma “impressão” — permaneceu uma das grandes tentações dos “pensadores profissionais”, até que um dos maiores dentre eles, Hegel, foi ainda adiante e construiu sua filosofia do Espírito do Mundo a partir de experiências do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 16
É essa impotência do ego pensante para explicar-se que fez dos filósofos, dos pensadores profissionais, uma tribo tão difícil de lidar. ArendtVE I O Pensar 17
Porque o problema é que o ego pensante, como vimos — à diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador —, não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências. ArendtVE I O Pensar 17
Em todo caso, visto a partir do mundo das aparências, da praça do mercado, o ego pensante vive escondido, lathé biósas. ArendtVE I O Pensar 17
Se o pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original, então o mesmo processo tem que dissolver tais conceitos “negativos” até a sua ausência de significado original, isto é, até o nada, do ponto de vista do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 17
Em outras palavras, é a experiência do ego pensante que está sendo transferida para as coisas. ArendtVE I O Pensar 18
A consciência não é o mesmo que o pensamento; os atos de consciência têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos “intencionais” e, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante não pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa; e este ato é dialético: ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. ArendtVE I O Pensar 18
Para o ego pensante e para sua experiência, a consciência moral que “deixa o homem cheio de embaraços” é um efeito colateral acessório. ArendtVE I O Pensar 18
Não importa em que séries de pensamentos o ego pensante se engage; para o eu que nós todos somos, importa cuidar de não fazer nada que torne impossível para os dois-em-um serem amigos e viverem em harmonia. ArendtVE I O Pensar 18
Em segundo lugar, as manifestações das experiências autênticas do ego pensante são múltiplas. ArendtVE I O Pensar 19
É bem verdade que o ego pensante, quaisquer que sejam as suas realizações, jamais poderá alcançar a realidade enquanto tal ou convencer a si mesmo de que algo realmente existe e de que a vida, a vida humana, é mais do que um sonho (A suspeita de que a vida seja apenas um sonho é, evidentemente, um dos traços mais característicos da filosofia asiática; inúmeros exemplos podem ser tirados da filosofia indiana. ArendtVE I O Pensar 19
Elas podem ser despojadas de seu peso e, deste modo, também do seu significado para o ego pensante. ArendtVE I O Pensar 19
O ego pensante, movendo-se entre universais e essências invisíveis, não se encontra, em sentido estrito, em lugar algum. ArendtVE I O Pensar 19
Em outras palavras, quando perguntávamos pelo lugar do ego pensante, podíamos bem estar colocando uma pergunta errada e imprópria. ArendtVE I O Pensar 19
O “em toda parte” do ego pensante — chamando à sua presença, de qualquer ponto do tempo ou do espaço, tudo o que lhe apraz, com velocidade maior do que a da luz —, considerado da perspectiva do mundo cotidiano das aparências, é um lugar nenhum. ArendtVE I O Pensar 19
Supor que essas limitações pudessem servir para demarcar uma região onde o ego pensante pudesse ser localizado seria apenas dar uma outra variante para a teoria dos dois mundos. ArendtVE I O Pensar 19
A finitude manifesta-se como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está cônscio, mesmo quando o ego pensante retirou-se do mundo das aparências e perdeu o sentido de realidade inerente ao sensus communis que nos orienta nesse mundo. ArendtVE I O Pensar 19
Na esperança de descobrir onde o ego pensante está temporalmente situado e se a sua incansável atividade pode ser temporalmente determinada, recorrerei a uma parábola de Kafka que, em minha opinião, trata especificamente desse tema. ArendtVE I O Pensar 20
Para mim, essa parábola descreve a sensação temporal do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 20
Para voltar a Kafka, é preciso lembrar que nenhum desses exemplos tematiza uma doutrina ou teoria, mas pensamentos ligados às experiências do ego pensante. ArendtVE I O Pensar 20
Em outras palavras, o continuum do tempo depende da continuidade de nossa vida cotidiana; e o conjunto das ocupações que formam a vida cotidiana é sempre espacialmente condicionado e determinado, ao contrário da atividade do ego pensante, sempre independente das circunstâncias espaciais que o cercam. ArendtVE I O Pensar 20
A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas, mas apenas ao ego pensante, à medida que ele se retirou da rotina diária. ArendtVE I O Pensar 20
A dificuldade específica aqui é que o leitor tem que estar consciente de que o ego pensante não é o eu que aparece e se move no mundo, recordando o próprio passado biográfico como se “ele” estivesse à la recherche du temps perdu ou planejando o futuro. ArendtVE I O Pensar 20
Porque o ego pensante não tem idade nem localização, o passado e o futuro podem tornar-se, como tais, manifestos para ele, esvaziados, por assim dizer, de seu conteúdo concreto e liberados de todas as categorias espaciais. ArendtVE I O Pensar 20
O que o ego pensante vê como os “seus” dois antagonistas são o próprio tempo e a mudança constante que ele implica, o movimento inexorável que transforma todo Ser em Devir, em vez de deixá-lo ser, destruindo assim, incessantemente, seu estar presente. ArendtVE I O Pensar 20
Como tal, o tempo é o maior inimigo do ego pensante, porque o tempo — pela encarnação do espírito em um corpo cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados — regula e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo, sem nada fazer. ArendtVE I O Pensar 20
Em outras palavras, a localização do ego pensante no tempo seria o intervalo entre passado e futuro, ou seja, o presente, agora misterioso e fugidio, uma mera lacuna no tempo em direção ao qual, não obstante, passado e futuro se dirigem, à medida que indicam o que não é mais e o que ainda não é. ArendtVE I O Pensar 20
É por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente, no mundo das aparências, o mais transitório dos tempos, tornou-se quase um alvo dogmático da especulação filosófica. ArendtVE I O Pensar 20
O juízo lida com particulares, e quando o ego pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares, o espírito necessita de um novo “dom” para lidar com elas. ArendtVE I O Pensar 21
Faz parte da natureza de todo exame crítico da faculdade da Vontade ser empreendido por “pensadores profissionais” (os Denker von Gewerbe de Kant); isso levanta a suspeita de que as denúncias da Vontade como uma mera ilusão da consciência e as refutações da existência da faculdade — que vemos sustentadas por argumentos quase idênticos em filósofos que partem de pressupostos bastante diferentes — podem dever-se a um conflito básico entre as experiências do ego pensante e as do ego volitivo. ArendtVE II O Querer Introdução
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. ArendtVE II O Querer Introdução
Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. ArendtVE II O Querer 1
E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. ArendtVE II O Querer 1
Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do ego pensante, deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada. ArendtVE II O Querer 1
A região temporal em que se dá esse salvamento é o Presente do ego pensante, uma espécie de “hoje” duradouro (hodiernos, “do dia de hoje”, era como Agostinho chamava a eternidade de Deus), o “agora permanente” da meditação medieval, um presente que dura ou “a lacuna entre o passado e o futuro”, conforme a designação que demos ao explicarmos a parábola kafkiana do tempo. ArendtVE II O Querer 1
Desse ângulo, o presente que dura se parece com um “agora” prolongado — uma contradição em termos —, como se o ego pensante fosse capaz de esticar o momento, produzindo, assim, uma espécie de hábitat espacial para si. ArendtVE II O Querer 1
A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia: para nossas atividades cotidianas no mundo, sobre as quais o ego pensante pode refletir, mas nas quais ele não está envolvido, precisamos de medidas de tempo: e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais. ArendtVE II O Querer 1
O propósito dessas observações preliminares é facilitar nossa abordagem das complexidades do ego volitivo; em nossa preocupação metodológica, dificilmente podemos nos permitir desconsiderar o fato simples de que toda filosofia da Vontade é produto do ego pensante, e não do ego volitivo. ArendtVE II O Querer 3
Embora, é claro, seja sempre o mesmo espírito que pensa e quer, vimos que não se pode confiar em que a avaliação das outras faculdades do espírito pelo ego pensante permaneça imparcial; com certeza ficamos desconfiados quando encontramos pensadores com filosofias gerais bastante diferentes levantando argumentos idênticos contra a Vontade. ArendtVE II O Querer 3
Este, em seus primeiros experimentos de pensamento, sustentava que o ego pensante (o que ele chamava de vorstellendes Subjekt, derivando sua teoria de Schopenhauer) poderia “em última instância ser mera superstição”, provavelmente “uma ilusão vazia, mas o sujeito volitivo existe”. ArendtVE II O Querer 3
Aos olhos dos filósofos que advogaram o ego pensante, foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica. ArendtVE II O Querer 3
Uma vez que se complete esta história — e Hegel parece ter acreditado que o início do fim da história era contemporâneo à Revolução Francesa —, o olhar retrospectivo do filósofo, pelo puro esforço do ego pensante, pode internalizar e relembrar (ex-innern) a falta de sentido e a necessidade do movimento que se desenrola, de modo que possa novamente lidar com o que é e não pode não-ser. ArendtVE II O Querer 3
O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o “volo me velle” — mesmo em Descartes, que era um “voluntarista”? Será que “aprazia” menos aos pensadores profissionais, ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante, a liberdade do que a necessidade? Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas, teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade “dentro de nós”, ou enfraquecer a liberdade, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente “especulativas”, já que não podem apelar para qualquer experiência. ArendtVE II O Querer 4
O corpo, como enfatiza corretamente Platão, sempre “quer ser cuidado”; e até mesmo nas melhores condições — saúde e prazer, por um lado, e uma comunidade equilibrada, por outro —, ele interromperá, com suas repetidas exigências, as atividades do ego pensante; nos termos da alegoria da Caverna, o corpo forçará o filósofo a retornar do céu das ideias para a Caverna dos assuntos humanos (É comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão em relação à carne. ArendtVE II O Querer 5
É claro que o antagonismo do ego pensante em relação à Vontade é de uma espécie bem diferente. ArendtVE II O Querer 5
Em Hegel e Marx, o poder da negação, cujo motor faz avançar a História, deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto: o projeto nega o agora e o passado, ameaçando, assim, o presente duradouro do ego pensante. ArendtVE II O Querer 5
Mas o nunc stans, a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante, embora possa absorver aquilo que não é mais, sem qualquer perturbação do mundo exterior, já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro. ArendtVE II O Querer 5
Veremos, quando examinarmos a história da Vontade, que nunca um teólogo ou filósofo exaltou a “doçura” da experiência do ego volitivo, doçura que os filósofos costumavam exaltar na experiência do ego pensante (Há duas exceções importantes: Duns Scotus e Nietzsche, que entendiam a Vontade como uma espécie de poder — “voluntas est potentia quia ipsa aliquid potest”. ArendtVE II O Querer 5
A tensão pode ser superada somente pelo fazer, isto é, pela desistência da atividade espiritual como um todo; uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade, exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento. ArendtVE II O Querer 5
Para falar em termos de tonalidade — isto é, em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores, independentemente dos acontecimentos externos, criando assim uma espécie de vida do espírito —, o humor predominante do ego pensante é a serenidade, o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria. ArendtVE II O Querer 5
Podemos nos permitir conjecturar que esta rejeição surpreendente do arrependimento por parte de dois pensadores cristãos, em Eckhart foi motivada por uma superabundância de fé que exigia, à maneira de Jesus, que o pecador perdoasse a si mesmo assim como se esperava que perdoasse aos outros, “sete vezes ao dia”, porque a alternativa seria declarar que teria sido melhor — não só para ele como também para toda a Criação — nunca ter nascido (“Que uma mó fosse pendurada em seu pescoço, e que fosse lançado ao mar”); enquanto, em Leibniz, podemos vê-la como uma vitória final do ego pensante sobre o ego volitivo, porque a vã tentativa que este último faz de querer retroativamente, quando bem-sucedida, poderia apenas resultar na aniquilação de tudo o que é. ArendtVE II O Querer 5
Nenhum filósofo descreveu o ego volitivo em seu confronto com o ego pensante com maior simpatia, insight e significação para a história do pensamento do que Hegel. ArendtVE II O Querer 6
Pois Hegel é acima de tudo o primeiro pensador a conceber uma filosofia da história, isto é, do passado: reunido pelo olhar retrospectivo do ego pensante e rememorativo, ele é “internalizado” (er-innert), torna-se parte inseparável do espírito através do “esforço do conceito” (“die Anstrengung des Begriffs”), e, desta maneira internalizadora, alcança a “reconciliação” entre Espírito e Mundo. ArendtVE II O Querer 6
Já houve maior triunfo do ego pensante do que o representado neste panorama? Nessa retirada do mundo das aparências, o ego pensante não tem mais que pagar o preço da “falta de atenção” e da alienação do mundo. ArendtVE II O Querer 6
Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. ArendtVE II O Querer 6
Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. ArendtVE II O Querer 6
Em outras palavras, o passado começa com o desaparecimento do futuro; em tal tranquilidade, o ego pensante afirma-se. ArendtVE II O Querer 6
É nesse ponto máximo da antecipação feita pelo ego volitivo que o ego pensante se constitui. ArendtVE II O Querer 6
Para usar as palavras de Koyré: no momento em que o espírito se depara com o próprio fim, “o movimento incessante da dialética temporal é interrompido e o tempo ‘se preenche’; este tempo ‘preenchido’ cai natural e inteiramente no passado”, o que significa que o “futuro perdeu seu poder sobre ele” e ficou pronto para o presente permanente do ego pensante. ArendtVE II O Querer 6
E uma vez que, para Hegel, a filosofia diz respeito ao “que é verdadeiro eternamente, nem o Ontem nem o Amanhã, mas o Presente enquanto tal, o ‘Agora’ no sentido de uma presença absoluta”; uma vez que o espírito, assim como é percebido pelo ego pensante, é “o Agora enquanto tal”, a filosofia tem que apaziguar o conflito entre o ego pensante e o ego volitivo. ArendtVE II O Querer 6
Este exige que o tempo nunca termine enquanto houver o homem sobre a Terra; ao passo que a filosofia no sentido hegeliano — a coruja de Minerva que inicia seu voo no crepúsculo — exige uma interrupção no tempo real, e não simplesmente a suspensão do tempo durante a atividade do ego pensante. ArendtVE II O Querer 6
Tal movimento, no qual as noções retilínea e cíclica de tempo são conciliadas ou unidas, formando uma Espiral, não se baseia nem nas experiências do ego pensante nem nas do ego volitivo; é o movimento não experienciado do Espírito do Mundo que constitui o Geisterreich, “o domínio dos espíritos , assumindo forma definida na existência uma sequência em que um se desprende do outro, soltando-o, e em que cada um toma de seu predecessor o império do mundo espiritual”. ArendtVE II O Querer 6
Mas tal solução é alcançada com prejuízo de ambos — da experiência do ego pensante de um presente duradouro e da insistência do ego volitivo na primazia do futuro. ArendtVE II O Querer 6
Em vez disso, procurei demonstrar sua autenticidade, derivando-as das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o mundo das aparências. ArendtVE II O Querer 7
Como vimos, o ego pensante retira-se temporariamente deste mundo, sem nunca chegar a deixá-lo de todo, porque está incorporado a um eu corpóreo, a uma aparência entre aparências. ArendtVE II O Querer 7
Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito, pois os dois-em-um são amigos e parceiros, e manter essa “harmonia” intacta está acima de tudo para o ego pensante. ArendtVE II O Querer 8
Como o pensamento, a vontade dividiu o um em dois-em-um, só que, no caso do ego pensante, “curar-se” da divisão seria a pior coisa que poderia acontecer; poria fim completo ao pensamento. ArendtVE II O Querer 8
Vimos que, do ponto de vista do ego pensante, era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo. ArendtVE II O Querer 8
Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela — em contraste com a retirada do ego pensante para o estar-só do diálogo sem som de mim comigo mesmo, em que todo pensamento é um re-pensar por definição — tem consequências muito importantes. ArendtVE II O Querer 9
O preço pago pela onipotência da Vontade é muito alto; o pior que poderia acontecer ao dois-em-um, do ponto de vista do ego pensante, a saber, “estar em desacordo consigo mesmo”, torna-se parte inseparável da condição humana. ArendtVE II O Querer 9
Essa é a condição necessária da presença existencial do ego pensante ponderando sobre o significado daquilo que veio-a-ser e que agora é. ArendtVE II O Querer 12
O resultado foi que “a ideia de fazer da liberdade a parte essencial da filosofia emancipou o espírito humano em todas as suas relações”, emancipou o ego pensante para a especulação livre nas cadeias de pensamento cujo fim último era “provar que não só o Ego é tudo, mas também, ao contrário, tudo é Ego”. ArendtVE II O Querer 13
Uma vez que é o próprio conceito personificado que deve supostamente agir, é como se (nas palavras de Schelling) a filosofia “se erguesse a um ponto de vista mais alto”, a um “maior realismo” em que as simples coisas-pensamento — os noumena de Kant, produtos desmaterializados da reflexão do ego pensante sobre dados reais (dados históricos em Hegel e mitológicos ou religiosos em Schelling) — dessem início à sua curiosa dança incorpórea e espectral, cujos passos e ritmos não se regulam nem se limitam por qualquer ideia da razão. ArendtVE II O Querer 13
Além disso, pelo menos nos casos de Nietzsche e de Heidegger, foi precisamente um confronto com a Vontade como faculdade humana, e não como categoria ontológica, que os instou originalmente a repudiar a faculdade e, então, a se converter e depositar sua confiança nessa casa fantasmagórica de conceitos personificados que foi tão obviamente “construída” e decorada pelo ego pensante, em oposição ao volitivo. ArendtVE II O Querer 13
Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências, entra em colapso. ArendtVE II O Querer 14
Heidegger agora não se satisfaz mais em eliminar o ego volitivo em favor do ego pensante — sustentando, por exemplo, como faz ainda em Nietzsche, que a insistência da Vontade no futuro força o homem ao esquecimento do passado, que rouba do pensamento a sua atividade mais importante, que é an-denken, lembrança: “A Vontade nunca possuiu o começo, ela o deixou e o abandonou essencialmente através do esquecimento”. ArendtVE II O Querer 15
É a História do Ser, funcionando por trás dos homens de ação, que, como o Espírito do Mundo de Hegel, determina os destinos humanos e revela-se ao ego pensante caso este último consiga superar a vontade e realizar o deixar-ser. ArendtVE II O Querer 15
São reflexões inspiradas por uma busca de significado e, portanto, não são menos especulativas do que outros produtos do ego pensante. ArendtVE II O Querer 16
Aqui podemos quase observar o modo como o ego pensante interfere na atividade cognitiva, interrompe-a e paralisa-a com suas reflexões. ArendtVE II O Querer 16
