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Arendt (VE) – alma

Segundo as tradições da Era Cristã, quando a filosofia se tornou serva da teologia, o pensamento passou a ser meditação, e a meditação passou novamente a terminar na contemplação, uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava por conhecer a verdade, mas por antecipar um estado futuro, recebendo-o temporariamente na intuição (Descartes, de modo característico, ainda influenciado por essa tradição, chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations). ArendtVE I O Pensar Introdução

Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza e as leis da matemática”; ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. ArendtVE I O Pensar Introdução

E ele acreditava realmente que com esse tipo de pensamento — que Hobbes denominava “cálculo de consequências” — poderia produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus, da natureza da alma e de outros assuntos do gênero. ArendtVE I O Pensar Introdução

Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões, e embora Kant ainda acreditasse que “nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte”, ele também estava bastante consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento”. ArendtVE I O Pensar Introdução

Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e alma. ArendtVE I O Pensar 4

De fato, inclinamo-nos a concordar em que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente, por si mesma; mas, se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores, referimo-nos à vida da alma; a relação interior-exterior, verdadeira para nossos corpos, não é verdadeira para nossas almas, mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização “interna” a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais. ArendtVE I O Pensar 4

Locke apoia-se aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõem-se ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza. ArendtVE I O Pensar 4

Se olharmos mais de perto, entretanto, verificamos que o que é verdadeiro para o espírito, a saber, que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de “aparecer externamente para os sentidos” — mesmo essa atividade muda, que não aparece, já constitui uma espécie de discurso, o diálogo silencioso de mim comigo mesmo —, não é verdadeiro para a vida da alma. ArendtVE I O Pensar 4

O discurso metafórico conceitual é, de fato, adequado para a atividade do pensamento, para as operações do nosso espírito; mas a vida da alma, em sua enorme intensidade, é muito melhor expressa em um olhar, em um som, em um gesto, do que em um discurso. ArendtVE I O Pensar 4

É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do mundo das aparências, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da alma. ArendtVE I O Pensar 4

Mas as nossas experiências de alma são de tal modo corporalmente limitadas, que falar de uma “vida interna” da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores. ArendtVE I O Pensar 4

A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. ArendtVE I O Pensar 4

Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu “o espírito como o outro lado do corpo”, já que “há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles”. ArendtVE I O Pensar 4

Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma, e vice-versa. ArendtVE I O Pensar 4

A alma, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do corpo; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele”. ArendtVE I O Pensar 4

Discutindo tais temas de um modo incerto e peculiar, Aristóteles declara: “ parece que não há caso em que a alma possa atuar ou ser atuada sem o corpo; verifiquem-se os exemplos de cólera, coragem, apetite e sensação em geral. e a faculdade teórica, mas ele parece ser um tipo diferente de alma, e só esse tipo pode ser separado , como o eterno é separável do perecível”. ArendtVE I O Pensar 4

E em um dos tratados biológicos, sugere que a alma — sua parte vegetativa, bem como suas partes nutritiva e sensitiva — “veio a ser no embrião, não existindo previamente fora dele, mas o nous entrou na alma vindo de fora, garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do corpo”. ArendtVE I O Pensar 4

Em outras palavras, não há sensações que correspondam às atividades espirituais; e as sensações da psique, da alma, são realmente sentimentos que experimentamos como nossos órgãos corporais. ArendtVE I O Pensar 4

O que é proferido”, diz ele , “são símbolos de afecções da alma, e o que é escrito são símbolos de palavras faladas. ArendtVE I O Pensar 4

Entretanto aquilo de que estas são símbolos, as afecções da alma, são as mesmas para todos”. ArendtVE I O Pensar 4

Distinção e individuação ocorrem no discurso, no uso de verbos e substantivos, e esses não são produtos ou “símbolos” da alma, mas do espírito: “Os substantivos e os verbos assemelham-se aos pensamentos ”. ArendtVE I O Pensar 4

As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao corpo, mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos, com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizá-los. ArendtVE I O Pensar 4

O homem corajoso não é aquele cuja alma carece dessa emoção, ou que a pode superar de uma vez por todas; mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar. ArendtVE I O Pensar 4

Há uma observação incidental em Tomás de Aquino — uma das de que tanto dependemos em nossa pesquisa — que soa de forma misteriosa, a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o ego pensante e o eu: “Minha alma não sou eu; e se apenas as almas forem salvas, nem eu nem homem algum estará salvo”. ArendtVE I O Pensar 6

Nesse contexto, ele distingue a “noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito , por meio de uma intuição imaterial, e a consciência por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. ArendtVE I O Pensar 6

E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. ArendtVE I O Pensar 6

Seu interesse principal era encontrar algo — o ego pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à alma — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. ArendtVE I O Pensar 7

Não obstante, algumas páginas depois, Kant irá admitir que o “interesse meramente especulativo da razão” com relação aos três objetos principais do pensamento — “a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus” — “é muito pequeno; e apenas por causa dele dificilmente nos daríamos ao trabalho das investigações transcendentais , já que quaisquer que fossem as descobertas sobre esses temas, não seria possível que delas extraíssemos alguma utilidade, algum uso in concreto”. ArendtVE I O Pensar 8

Denominei essas atividades espirituais de básicas porque elas são autônomas; cada uma delas obedece às leis inerentes à própria atividade, embora todas elas dependam de uma certa quietude das paixões que movem a alma, daquela “tranquilidade desapaixonada” (“leidenschaftslose Stille”) que Hegel atribuiu à “cognição meramente pensante”. ArendtVE I O Pensar 9

A incapacidade da razão para mobilizar a vontade, mais o fato de que o pensamento só pode “compreender” o que já é passado, sem removê-lo ou “rejuvenescê-lo” — “a coruja de Minerva só começa o seu voo quando cai o crepúsculo” —, deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional, em suma, deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual “a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões”; isto é, levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da alma. ArendtVE I O Pensar 9

Pois a “tranquilidade desapaixonada” da alma não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual, a premência de pensar, como também a “necessidade da razão”, na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. ArendtVE I O Pensar 9

Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti pantón kechórismenon). ArendtVE I O Pensar 9

Nesse e em outros aspectos, o espírito é decisivamente diferente da alma, o seu principal competidor ao cargo de legislador de nossa vida não-visível interior. ArendtVE I O Pensar 9

A alma, em que surgem nossas paixões, sentimentos e emoções, é um torvelinho de acontecimentos mais ou menos caóticos que não encenamos ativamente, mas que sofremos (paschein) e que, nos casos de grande intensidade, pode nos dominar, como a dor ou o prazer; sua invisibilidade assemelha-se à dos nossos órgãos internos, cujo funcionamento ou não-funcionamento também percebemos, sem controlar. ArendtVE I O Pensar 9

Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre alma, espírito e consciência, elementos frequentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos. ArendtVE I O Pensar 9

Desse modo, Platão concluiu que a alma é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis. ArendtVE I O Pensar 9

E mesmo Kant, o mais crítico dos filósofos em relação aos preconceitos metafísicos tradicionais, enumera ocasionalmente dois tipos de objetos: ‘‘‘Eu’, como pensamento, sou um objeto de sentido interno, e me chamam ‘alma’. ArendtVE I O Pensar 9

Faz-se uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos — de modo que um “sentido interno”, a saber, a intuição da introspecção, é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra “internamente” com a mesma segurança dos nossos sentidos externos ao lidarem com o mundo exterior. No que diz respeito à alma, a analogia não é totalmente ilusória. ArendtVE I O Pensar 9

Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados, mas são “paixões” provocadas por eventos externos que afetam a alma e produzem certas reações, a saber, as pathemata da alma — seus humores e estados passivos —, essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis, como observou Kant, “somente com base na suposição da experiência externa”. ArendtVE I O Pensar 9

Essa semblância produz, então, certas ilusões da introspecção, que, por sua vez, levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades, como também pode governar as paixões da alma — como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma. ArendtVE I O Pensar 9

Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estoicas do controle da dor e do prazer pelo espírito; sua falácia — de que é possível sentir-se feliz ao ser assado no Touro de Falera — repousa, em última instância, sobre a equação da alma com o espírito, isto é, reside em atribuir à alma e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito. ArendtVE I O Pensar 9

Mas a ideia de que essa interioridade, diferentemente da interioridade passiva da alma, só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, da Vontade e das experiências do ego volitivo. ArendtVE I O Pensar 9

Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo”. ArendtVE I O Pensar 10

Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a alma pode pensar sem o corpo, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao corpo, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais”. ArendtVE I O Pensar 10

Mas a interioridade, como já indicamos, tem seus próprios problemas, mesmo quando concordamos que a alma e o espírito não são a mesma coisa. ArendtVE I O Pensar 11

A linguagem dos animais — sons, sinais, gestos — serviria bastante bem para as nossas necessidades imediatas, não só de autopreservação e preservação da espécie, como também para tornar evidentes as disposições da alma. ArendtVE I O Pensar 12

Não é nossa alma, mas nosso espírito que exige o discurso. ArendtVE I O Pensar 12

Referi-me a Aristóteles quando estabeleci uma distinção entre espírito e alma, os pensamentos de nossa razão e as paixões de nosso aparato emocional, e chamei a atenção sobre como é reforçada essa distinção-chave em De anima por uma passagem na introdução do pequeno tratado sobre a linguagem, De interpretatione. ArendtVE I O Pensar 12

E acrescenta: “Esse esquematismo de nosso intelecto é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte, que eles se desvelem ao nosso olhar”. ArendtVE I O Pensar 12

Quando Platão introduziu as palavras cotidianas “alma” e “ideia” na linguagem filosófica — conectando um órgão invisível no homem, a alma, com algo invisível no mundo dos invisíveis, as ideias —, ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e pré-filosófica; Psyche é o “sopro da vida” que os moribundos expiram, e ideia, ou eidos, é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho — uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado, adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das ideias. ArendtVE I O Pensar 12

A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve-se da seguinte maneira: assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona, isto é, ao cadáver, a alma, daí em diante, está em princípio relacionada com o corpo que vive. ArendtVE I O Pensar 12

Kurt Riezler, o primeiro a associar “o símile homérico com o início da filosofia”, insiste na tertium comparationis necessária a qualquer comparação, que permite “ao poeta perceber e tornar conhecida a alma como mundo e o mundo como alma”. ArendtVE I O Pensar 12

Por trás da oposição entre mundo e alma, deve haver uma unidade que torne possível a correspondência, uma “lei ignorada”, como diz Riezler, citando Goethe, presente tanto no mundo dos sentidos quanto no domínio da alma. ArendtVE I O Pensar 12

Mas se quando pensamos levamos a cabo esse diálogo interior, é como se estivéssemos “escrevendo palavras em nossas almas”; em momentos como esses, “nossa alma é como um livro”, mas um livro que já não contém mais palavras. ArendtVE I O Pensar 13

Depois do escritor, um segundo artesão intervém quando pensamos: trata-se de um “pintor”, que pinta em nossa alma aquelas imagens correspondentes às palavras escritas. “ ArendtVE I O Pensar 13

Na Sétima carta, Platão nos diz brevemente como essa dupla transformação pode chegar a acontecer, como é que se pode falar sobre nossa percepção sensível e como esse falar sobre (dialegesthai) é, em seguida, transformado em uma imagem visível somente para a alma. ArendtVE I O Pensar 13

O conhecimento e o espírito (nous) apreendem o círculo essencial, isto é, aquilo que todos os círculos têm em comum, algo que “não reside nem nos sons nem nas formas dos corpos, mas na alma”, e tal círculo é claramente “diferente do círculo real”, percebido primeiramente na natureza pelos olhos do corpo, e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal. ArendtVE I O Pensar 13

Esse círculo na alma é percebido pelo espírito (nous), que está mais próximo dele por afinidade e semelhança. ArendtVE I O Pensar 13

Essa própria verdade está além das palavras; os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis — “nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas, e as retas, de redondas” —, e as palavras, o discurso argumentado da fala que busca explicar, são “débeis”: não oferecem mais do que uma “pequena orientação” para reavivar a luz na alma, como a de uma centelha tremulante, a qual, uma vez gerada, se torna autossustentável. ArendtVE I O Pensar 13

A referência ao puro desespero que surge do próprio pensamento aparece nos escritos tardios de Schelling; e isso é significativo porque o mesmo pensamento já o havia assombrado antes, em sua juventude, quando ele ainda acreditava que, para banir o nada, bastava a “afirmação absoluta”, que ele chamava “a essência da nossa alma”. ArendtVE I O Pensar 15

O estoicismo, o epicurismo e o ceticismo embora… opostos um ao outro, tinham o mesmo propósito, a saber, tornar a alma absolutamente indiferente a tudo o que o mundo real tinha a oferecer”. ArendtVE I O Pensar 16

Eis por que Aristóteles, em sua primeira formulação do famoso princípio da não-contradição, afirma explicitamente que ele é um axioma: “Temos que acreditar nele porque ele não se dirige à palavra externa logos, isto é, à palavra falada e endereçada a outra pessoa, amiga ou adversária], mas ao discurso interno à alma; e embora possamos sempre levantar objeções contra a palavra externa, nem sempre podemos fazê-lo contra o discurso interior”, porque o parceiro é a própria pessoa, e é impossível que eu queira tornar-me meu próprio adversário (Podemos observar, neste caso, como um insight, feito a partir da experiência factual do ego pensante, perde-se quando é generalizado em uma doutrina filosófica — como “A não pode ser B e A sob as mesmas condições e ao mesmo tempo” —, uma transformação realizada pelo próprio Aristóteles quando discute o mesmo assunto em sua Metafísica). ArendtVE I O Pensar 18

É característico das “pessoas moralmente baixas” estarem “em discordância consigo mesmas” (diapherontai heautois) e dos homens maus evitar a própria companhia; sua alma se rebela contra si mesma (stasiazei). ArendtVE I O Pensar 18

Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a alma não está em harmonia, mas em guerra consigo mesma? É este o diálogo que se subentende quando Ricardo III, de Shakespeare, está só… . ArendtVE I O Pensar 18

Ryle não ignora o “fato de que Platão e Aristóteles nunca mencionaram em suas frequentes e elaboradas discussões acerca da natureza da alma e das origens da conduta”, porque não estavam familiarizados com a “hipótese especial cuja aceitação baseia-se não na descoberta, mas na postulação de verdades fantasmagóricas”. ArendtVE II O Querer Introdução

Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. ArendtVE II O Querer Introdução

Mas antes irei tratar, de maneira breve, de Aristóteles, em parte pela influência decisiva que “O filósofo” exerceu sobre o pensamento medieval, em parte porque sua noção de proairesis, em minha opinião uma espécie de precursora da Vontade, pode servir como exemplo paradigmático de como certas questões da alma foram levantadas e respondidas antes da descoberta da Vontade. ArendtVE II O Querer Introdução

É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega — “o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado em suas frequentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta” e, portanto, de que não é possível “sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tornado objeto de debate na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles” — está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antiguidade, que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra: a recorrente transformação de dia e noite, verão e inverno, a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte. ArendtVE II O Querer 1

Na era da filosofia cristã, havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades, mas também o pensamento consolador da divina Providência, conjugado à expectativa de uma vida após a morte, quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro, a alma vendo “cara a cara”, em vez de “por espelho, obscuramente”, não mais conhecendo só “em parte” — pois ela “conhecerá tanto quanto conhecida”. ArendtVE II O Querer 3

Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga, como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais, a ressurreição da carne, diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da alma, manteve-se em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica). ArendtVE II O Querer 5

Nosso aparato psíquico — a alma em contraposição ao espírito — está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa, cujas modalidades principais são esperança e medo. ArendtVE II O Querer 5

O que a alma exige do espírito, nessa situação desconfortável, não é tanto um dom profético para prever o futuro, e, assim, confirmar a esperança ou o medo. ArendtVE II O Querer 5

Em outras palavras, o humor habitual do ego volitivo é a impaciência, a inquietude e a preocupação (Sorge), não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo, mas também porque o projeto da vontade pressupõe um “eu-posso” que não está absolutamente garantido. ArendtVE II O Querer 5

A lembrança pode afetar a alma com um anseio pelo passado; mas essa nostalgia, embora possa conter dor e pesar, não perturba a serenidade do espírito, pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar. ArendtVE II O Querer 5

A tensão daí resultante, em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas, causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão, uma mistura de medo e esperança que se torna insuportável quando se descobre que, na formulação de Agostinho, querer e ser capaz de realizar, velle e posse, não são a mesma coisa. ArendtVE II O Querer 5

Para falar em termos de tonalidade — isto é, em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores, independentemente dos acontecimentos externos, criando assim uma espécie de vida do espírito —, o humor predominante do ego pensante é a serenidade, o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria. ArendtVE II O Querer 5

Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. ArendtVE II O Querer 6

Para simplificar ao máximo: se existe algo como a vida do espírito, isso se deve ao órgão do espírito próprio para o futuro e à “inquietude” daí resultante; se existe algo como a vida do espírito, isso se deve à morte que, prevista como um fim absoluto, paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado; os projetos da vontade em objetos de pensamento; a expectativa da alma em uma lembrança antecipada. ArendtVE II O Querer 6

Também ele sustenta que o espírito humano, a alma humana (psyche), é que dá origem ao tempo. ArendtVE II O Querer 6

O tempo é gerado pela natureza “hiperativa” da alma (polypragmon, um termo que sugere intensa atividade corporal); ansiando por sua própria imortalidade futura, a alma “busca algo além do seu estado presente”, e, assim, move-se sempre para um “próximo” e um “depois”, e para algo que não é o mesmo, mas é outra coisa, e depois outra, mais uma vez. ArendtVE II O Querer 6

Assim, “o tempo é a vida da alma”; uma vez que “a propagação da vida envolve o tempo”, a alma “produz a sucessão juntamente com sua atividade”, na forma de um “pensamento discursivo”, cuja discursividade corresponde ao “movimento que a alma faz ao passar de um modo de ser para outro”; consequentemente, o tempo é “não um acompanhamento da alma mas algo que está nela e com ela”. ArendtVE II O Querer 6

Há, em primeiro lugar, o simples fato histórico da influência decisiva que a análise aristotélica da alma exerceu sobre todas as filosofias da Vontade — exceto no caso de Paulo, que, como veremos, contentava-se com simples descrições e recusava-se a “filosofar” sobre suas experiências. ArendtVE II O Querer 7

A questão, portanto, que orienta sua investigação é a seguinte: “O que é que, na alma, origina o movimento?” Aristóteles admite a noção platônica de que a razão dá ordens (keleuei) porque sabe o que se deve buscar e o que se deve evitar, mas nega que essas ordens sejam necessariamente obedecidas. ArendtVE II O Querer 7

No primeiro Protreptikos, Aristóteles dera a seguinte interpretação: “Uma parte da alma é a Razão. ArendtVE II O Querer 7

Dentro da alma humana, a razão só se torna um princípio “governante” e comandante por causa dos desejos que são cegos e destituídos de razão, e a que devem supostamente, portanto, obedecer cegamente. ArendtVE II O Querer 7

Não têm nenhuma amizade por si mesmos sua alma é dividida por forças contrárias uma parte arrasta-os para um lado, a outra, para outro, como se quisessem esquartejar o indivíduo . ArendtVE II O Querer 7

Não explica a ação, o tópico da ética aristotélica, pois a ação não é a simples execução das ordens da razão; ela é em si uma atividade da razão, embora não seja uma atividade da “razão teórica”, mas daquilo que, no tratado Sobre a alma, se chama “nous praktikos”, razão prática. ArendtVE II O Querer 7

Todas elas relacionam-se com uma disposição da alma que é melhor descrita em termos negativos (como ataraxia) e que consiste em algo totalmente negativo: ser “feliz” agora significava fundamentalmente “não ser desgraçado”. ArendtVE II O Querer 9

Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado, na morada da alma, por um medo avassalador de ter medo; ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança — a “impressão” de Epiteto; basta isso para compreendermos o valor psicológico terra-a-terra dessas teorias aparentemente improváveis). ArendtVE II O Querer 9

E Epiteto acrescenta: “Queira aparecer nobre diante do deus” (Theléson kalos phanénai tó Theó”), sendo que o adendo é, na verdade, redundante, já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente, mas sustenta que a alma é semelhante a Deus e que o deus está “dentro de ti, tu és um fragmento dele”. ArendtVE II O Querer 9

Agostinho, porém, não fala de duas leis, mas de “duas vontades, uma nova e a outra antiga, uma carnal e a outra espiritual”, e descreve em detalhe, assim como Paulo, a maneira como essas vontades lutaram “dentro” dele e como “a discórdia entre elas dilacerou a alma”. ArendtVE II O Querer 10

São essas as duas vontades cuja discórdia Agostinho disse que “ dilacerou a alma”. ArendtVE II O Querer 10

Sua resposta, nas Confissões, aponta para os estranhos caminhos da alma até mesmo na falta de qualquer experiência especificamente religiosa. ArendtVE II O Querer 10

A alma “deleita-se mais com encontrar ou reaver as coisas que ama do que se as tivesse possuído sempre. ArendtVE II O Querer 10

Pois “meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma, movendo seus membros a um mínimo sinal, do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada”. ArendtVE II O Querer 10

O Amor é o “peso da alma”, sua lei da gravidade, aquilo que leva o movimento da alma ao repouso. ArendtVE II O Querer 10

Um tanto influenciado pela física aristotélica, Agostinho sustenta que o fim de todo movimento é o repouso, compreendendo agora as emoções — movimentos da alma — em analogia com os movimentos do mundo físico. ArendtVE II O Querer 10

Pois “os corpos nada mais desejam por seu peso do que a alma deseja por seu amor”. ArendtVE II O Querer 10

A gravidade da alma, a essência de quem é alguém, e o que, como tal, é impenetrável aos olhos humanos, manifesta-se nesse amor. ArendtVE II O Querer 10

Se é esse o modo como a vontade funciona, como é que ela pode chegar a nos fazer agir — a preferir, por exemplo, o roubo ao adultério? Pois as “flutuações da alma” de Agostinho, flutuações entre muitos fins igualmente desejáveis, são muito diferentes das deliberações de Aristóteles, que envolvem não os fins, mas os meios para um fim que é dado pela natureza humana. ArendtVE II O Querer 10

Nas principais análises de Agostinho, semelhante árbitro final nunca aparece, a não ser no término das Confissões, quando ele subitamente começa a falar da Vontade como uma espécie de Amor, “o peso de nossa alma”, sem dar, entretanto, qualquer explicação para essa estranha identificação. ArendtVE II O Querer 10

O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre “iguais”; portanto, não se pode aplicá-la à relação entre o corpo e a alma, entre o homem carnal e o espiritual, embora eles sempre apareçam juntos — porque aqui a alma é obviamente o princípio governante. ArendtVE II O Querer 10

O Amor de Agostinho exerce sua influência pelo “peso” — “a vontade assemelha-se a um peso” —, junta-se à alma, interrompendo assim suas flutuações. ArendtVE II O Querer 10

O amor é a gravidade da alma, ou o contrário: “gravidade específica dos corpos é, por assim dizer, seu amor”. ArendtVE II O Querer 10

Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos, ambos “com temperamentos semelhantes do corpo e da alma”. ArendtVE II O Querer 10

O último autor que ainda escreveu claramente sobre as perturbações de sua alma ou espírito, totalmente alheio a interesses livrescos, foi Anselmo, e isso duzentos anos antes de Tomás. ArendtVE II O Querer 11

Pois “àqueles que não têm fé, a razão correta, como parece a si mesma, mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em corpo quanto em alma”. ArendtVE II O Querer 12

E, neste aspecto, o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma: uma criatura dotada de um corpo e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece. ArendtVE II O Querer 12

As “provas” dos filósofos para a imortalidade da alma, mesmo quando logicamente corretas, seriam irrelevantes. ArendtVE II O Querer 12

Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma, ainda assim é amor concupiscentiae, amor desejoso. ArendtVE II O Querer 12

A Vontade nesse querer não significa aqui uma capacidade da alma humana, entretanto; a palavra ‘querer’ designa aqui o Ser dos seres como um todo”. ArendtVE II O Querer 13

E agora volta, um pouco mais lentamente, mas ainda branca de emoção; estará desapontada? Terá encontrado aquilo que procurava? Estará fingindo estar desapontada? — Mas já se aproxima outra onda, ainda mais ávida e selvagem do que a primeira, e sua alma também parece estar cheia de segredos e de gana para desenterrar tesouros. ArendtVE II O Querer 14

A relação entre as ondas e o mar, do qual elas se erguem sem intenção ou meta, criando uma euforia enorme e sem propósito, assemelha-se e, portanto, ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da alma — parecendo estar sempre em busca de algo, até que se acalma, ainda que sem se extinguir, sempre pronta para um novo levante. ArendtVE II O Querer 14

O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos “objetos” que confrontam a vida humana, mas sim por uma adesão sectária ao aparato da alma humana, cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia. ArendtVE II O Querer 14

Assim como cada “eu-quero” em sua identificação com a parte que comanda no dois-em-um antecipa triunfalmente um “eu-posso”, também a expectativa, a disposição com a qual a Vontade afeta a alma, contém em si a melancolia de um e-isto-também terá-sido, a previsão do passado do futuro que reafirma o Passado como a forma verbal dominante do Tempo. ArendtVE II O Querer 14

E não só aquilo que terminologicamente chamamos de juízo; preso a isto está… todo o aparato da alma, por assim dizer. ArendtVE Apêndice O Julgar

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