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Alleau (2001) – processo analógico e processo tautológico

Eis porque, na presente obra, é a lógica da analogia, o próprio processo analógico, que considero como a base principal da simbólica geral e não o símbolo, da mesma forma que é a lógica da identidade, o processo tautológico em si mesmo e não o número, que constitui a base da matemática e da axiomática. «Enquanto o número foi considerado com um objeto ‘em si’ — lembra Leon Brunschvicg—, a filosofia da aritmética oscilava continuamente entre o primado do cardinal e o primado do ordinal, ao mesmo tempo que a filosofia da lógica era incapaz de pôr um fim à querela da compreensão e da extensão. Os obstáculos foram desaparecendo aqui e ali, quando o realismo estático do conceito deu lugar ao idealismo dinâmico do juízo. O número constitui-se através da inteligência da operação que faz corresponder a cada um dos atos sucessivos da seriação uma imagem nova e progressiva de coleção. Mas isto só foi clara e definitivamente reconhecido depois de Georg Cantor, à luz da sua teoria dos conjuntos.» ]

Trata-se pois, na perspectiva geral que proponho, de «dessubstantificar» o símbolo, de deixar de fazer dele um «substrato», uma realidade «em si», de não confundir um produto com o seu produtor, uma consequência com a sua causa, mas de restituir à dinâmica da vida da natureza e do espírito, da imaginação e da razão, a realidade dialéctica das suas operações. De resto, estas não se dividem entre duas lógicas absolutamente separadas uma da outra, a da analogia e a da identidade, pois qualquer número pode ser também símbolo e qualquer símbolo, número. Além disso, se a analogia não intervém nos métodos da ciência matemática enquanto instrumento de demonstração, o seu papel não é menos considerável enquanto instrumento de descoberta e a história fornece-nos numerosos exemplos disso.

Foi assim que Kepler pôde deduzir as leis dos movimentos dos planetas a partir das observações de Tycho-Brahe, relacionando-as analogicamente com as propriedades geométricas da elipse, estudadas pelos antigos matemáticos gregos. Da mesma forma, Henri Poincaré ligou a sua descoberta das «funções fuchsianas» à intuição analógica graças à qual, um dia, durante uma excursão, compreendeu que as transformações em que haviam culminado as suas investigações correspondiam exatamente às da geometria não-euelidiana.

Além disso, as noções matemáticas apresentam exemplos de todos os graus de analogia, desde a identidade literal de dois polinómios inteiros que não têm entre si nenhum caráter de dissemelhaça, ou a igualdade de duas figuras geométricas, diferentes entre si no que respeita à sua posição no plano ou no espaço, até à correspondência analógica íntima entre duas figuras tão diferentes na aparência como uma recta do espaço e a esfera associada a essa recta pela transformação de Sophus Lie. A exploração analógica, lembra Robert Deltheil, origina, de resto, em certos domínios, perspectivas de conjunto cuja harmonia constitui um elemento essencial da beleza das matemáticas ].

Como, por outro lado, a analogia é de origem experimental e concreta, ela não pode bastar para a demonstração abstrata que, na lógica axiomática e matemática, realiza antes de tudo uma economia de pensamento pelo processo tautológico, isto é, agindo sobre a coerência do mesmo e sobre as suas consequências não contraditórias, mais do que sobre as correspondências do semelhante que não conseguem chegar à determinação da identidade pura do objeto do pensamento ou da ideia. No entanto, as noções de isomorfismo das estruturas desempenham também um papel capital na axiomática e, sob este ponto de vista, poderíamos em certa medida comparar esta situação àquela que encontramos no domínio da simbólica geral no que se refere aos «esquemas» e aos «tipos».

Também aqui, no entanto, nos devemos prevenir contra uma «substantificação» dos «modelos». Quando a matemática surge como um imenso reservatório de estruturas abstratas, ou a simbólica como uma fonte inesgotável de estruturas analógicas e concretas, não devemos esquecer que essas formas não existem em si próprias nem por si mesmas independentemente da dinâmica do processo lógico que as constitui ma língua da matemática e na da simbólica, nem sem certos conteúdos experimentais e intuitivos iniciais.

Nestas condições, se quiséssemos admitir que todos os nossos conhecimentos assentam, em última análise, em duas lógicas e não numa só, na da analogia e na da identidade, compreenderíamos talvez, finalmente, a sua igual dignidade epistemológica. A civilização não pode edificar-se sobre uma coluna apenas nem com um único instrumento de saber. As civilizações antigas e medievais desenvolveram os poderes da simbólica e desprezaram abusivamente a ferramenta matemática. Por um excesso inverso, a civilização moderna, essencialmente matemática, científica e tecnológica, reduziu à insignificância o instrumento simbólico, condenando assim não só as religiões como as próprias artes a um desaparecimento inevitável. Um dos testemunhos mais evidentes deste desprezo não será o fato quase inacreditável de a «ciência dos símbolos», a «simbólica geral», tão necessária a tantas disciplinas, não constituir sequer matéria de ensino e não figurar no programa de nenhuma universidade?

Ela não está ainda verdadeiramente fundada, sem dúvida. No entanto, não basta uma obra individual para a constituir, devido à extensão imensa do seu domínio. Esta ciência nova, essencialmente interdisciplinar, ainda confusa e embrionária, tornar-se-á talvez na metaciência do próximo século, pois ela é capaz de evidenciar a estreita solidariedade de todas as hermenêuticas, na sua tarefa comum de interpretação da natureza, do homem e do universo.

O «não-humano» parece rodear-nos por todos os lados no cosmos e o «infra-humano» das nossas máquinas, capazes de nos opor as suas próprias determinações tecnológicas, tende a reduzir de forma sempre crescente a margem de liberdade das nossas escolhas e das nossas decisões. O nosso mundo foi profundamente transformado e, para o modificar, houve que eliminar em primeiro lugar interpretações que se tornaram caducas e estéreis. Trata-se agora, uma vez realizada a transformação, de o reinterpretar.

Os nossos conhecimentos novos podem esclarecer os que nos iluminaram outrora e estes são susceptíveis de aprofundar aqueles. Re-unificar o saber não é impossível se começarmos por o desejar verdadeiramente e se compreendermos que a tolerância é não só uma exigência moral, mas também e sobretudo uma necessidade epistemológica.

No domínio da simbólica geral, os conflitos ideológicos e religiosos processaram-se livremente e o tempo passado a justificar os seus argumentos perdeu-se em detrimento do progresso geral desta disciplina. Esqueceu-se, ao que parece, que todas as hermenêuticas são simultaneamente necessárias e insuficientes no seu conjunto tal como cada uma delas o é quando considerada isoladamente. Efetivamente, se o homem é, por excelência, um «animal simbolizante», isso sucede também porque o próprio caráter da função simbólica implica a impossibilidade de ele se satisfazer com um «sentido próprio» das coisas e dos seres, a capacidade de os dotar com o acréscimo dos outros sentidos que os transfiguram. Malebranche afirmou-o: «Temos sempre movimento para ir mais longe». E este acréscimo experimental, precisamente, ao chamar a si todas as hermenêuticas, condena-as a transformarem-se em estátuas de sal logo que elas, voltando-se para ele, pretendem pará-lo e defini-lo.

O livro selado do universo não pode ser lido em voz alta. A natureza foge da violação da evidência: confiou os seus mistérios aos murmúrios e à penumbra. As suas paisagens só revelam uma autêntica profundidade de madrugada ou ao crepúsculo, através dos vapores e das brumas. Saber não é conhecer: é saborear o que se entrevê a meio caminho. A realidade não exige que a reduzamos aos limites do nosso pensamento: convida-nos antes a fundir-nos na ausência dos seus. Assim, a palavra sempre velada do símbolo pode precaver-nos contra o erro mais grave de todos: o da descoberta dum sentido definitivo e último das coisas e dos seres. Efetivamente, ninguém se engana tanto como aquele que conhece todas as respostas, com exceção, talvez, daquele que apenas conhece uma.

(AlleauCS)

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