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Libera (LEST) – Tauler, fundo da alma e nascimento do Verbo

LEST

não se pode compreender Tauler ignorando que a tese central de Dietrich residia numa assimilação do intelecto agente de Aristóteles e dos filósofos com o “fundo secreto da alma”, o abditum mentis de Agostinho (o selengrunt de Mestre Eckhart). Essa equação era então explicada com a ajuda da noção procliana de “autoconstituição”. O próprio Berthold modificara num ponto capital a tese de Dietrich: introduzindo a noção procliana do “uno da alma” (unum animae) ou do “Uno em nós” (unum in nobis), fazendo do uno o fundamento do pensamento (cogitation) e identificando-o não apenas ao intelecto agente de Aristóteles e ao abditum mentis de Agostinho, mas à “união que ultrapassa a natureza do espírito”, a unitio excedens mentis naturam do pseudo-Dionísio. Ao identificar explicitamente o fundo da alma e a união dionisiana, sob o patrocínio do unum animae de Proclo, Berthold deslocou a equação que, em Dietrich, tinha seu ponto de equilíbrio do lado do intelecto agente de Aristóteles. É desse deslocamento que Tauler herdou.

O fundo da alma e o nascimento do Verbo

O “tema principal da pregação de Tauler é o do nascimento do Filho ou Verbo de Deus na alma do crente”. Já em seu sermão 1, o estrasburguês explica que “Deus nasce espiritualmente pela graça e pelo amor, a cada instante e sem cessar em nós”. A ideia da vinda do Espírito no homem, que prepara o nascimento e a habitação do Verbo, é um poderoso eco do ensino de Eckhart. Ela dá lugar ao mesmo tipo de afirmações sobre a condição da alma assim “divinizada”: nela, “Deus se ama, se conhece e se deleita a si mesmo”; ela mesma é “plenamente semelhante a Deus, igual a Deus, divina”; ela “se torna por graça o que Deus é por natureza”; ela é “elevada em Deus acima de si mesma”; em suma, “ela tem tão bem a aparência de Deus que, se se visse, se tomaria por Deus mesmo” ]. Essa “divinização”, que Tauler descreve como “a divina e sobrenatural unidade de união pela qual o espírito é atraído e absorvido no abismo de seu princípio” (sermão 70, § 6), é descrita em termos de graça, no duplo registro da “conversão” ou do “retorno”, operados no desapego em relação ao criado, e da “passividade”, que preside à vinda correlativa do Verbo e do Espírito incriados na alma — um duplo registro ou, antes, as duas faces, não se ousa dizer os dois tempos, de um mesmo processo, pois “o homem que volta à sua origem”, que “volta ao seu estado incriado” no qual esteve “de toda a eternidade”, “se mantém ali sem imagens nem formas particulares, numa perfeita passividade” pode voltar à sua origem e ao estado incriado no qual esteve de toda a eternidade, e ele se mantém ali numa perfeita passividade.“]]. Esse lugar do retorno, onde nasce o Verbo, é o lugar onde a alma acede, ao “perfurar” em si mesma, através de toda imagem ou operação, o da interioridade absoluta onde reside o mistério do Uno, o deserto onde, segundo a palavra de Oséias 2, 16, Deus fala “ao coração” do homem.

A prática ascética do desapego, que conduz ao deserto onde brota a Palavra, é, em Tauler, apresentada como um verdadeiro itinerário, como um processo reclamando tempo, esforço e progresso. O “aniquilamento”, que é o outro nome da gelâzenheit e o fruto do desapego, não se atinge de imediato. Como Suso, Tauler distingue os três estados do “principiante”, do “progrediente” e do “perfeito”, e, como ele, situa aos quarenta anos (ou mesmo aos cinquenta) a idade do verdadeiro progresso (sermão 19, § 6).

“Deixai todas as coisas para que todas as coisas vos sejam restituídas” (Marcos 10, 28). Essa palavra de ordem do abandono, cujo eco se encontra tanto em Suso quanto nos Ditos de Mestre Eckhart, é proclamada no sermão 16 (§ 6). É sempre a ideia de um movimento recíproco de Deus na alma e da alma em Deus — a “abertura” (durchbruch) eckhartiana — que Tauler desenvolve na reciprocidade do êxtase da alma, pelo qual “o espírito mergulha plenamente no mais íntimo de Deus” ali é “recriado e renovado” (sermão 70, § 6), e da “reentrada em si mesmo”, pela qual o homem, que “reentra em seu próprio fundo, no mais íntimo de si mesmo”, encontra Deus, pois esse fundo da alma é, de fato, sempre já descentrado, de Deus para a alma, da alma para Deus, de modo que ele é menos o fundo da alma ou o fundo de Deus que o fundo do homem em Deus ou o fundo de Deus na alma, “o fundo mais íntimo, onde Deus está o mais perto da alma e lhe é mais intimamente presente do que ela o é a si mesma” (sermão 37, § 3).

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