User Tools

Site Tools


alain_de_libera:libera-lest-tauler-critica-as-teses-do-livre-espirito

Libera (LEST) – Tauler, crítica às teses do Livre Espírito

LEST Durante a vida de Eckhart, assim como após sua morte, as teses heréticas do Livre Espírito circularam amplamente na Alemanha e no vale do Reno. Algumas delas foram atribuídas à autoridade de Eckhart. Muitas eram ambíguas e pareciam, ao menos superficialmente, lembrar tal ou qual declaração eckhartiana. As mais perigosas concerniam à deificação do homem e à teoria da filiação divina, que Alberto Magno havia assimilado ao pelagianismo. É o caso, por exemplo, das seguintes teses extraídas da Determinatio magistri Alberti:

  • Dizer que uma mulher se torna Deus (I, 13) ou que um homem pode se tornar Deus (I, 14);
  • dizer que um homem só é bom se abandonar Deus por Deus (I, 19);
  • dizer que a alma unida a Deus é deificada (I, 25);
  • dizer que o homem pode se igualar a Deus num dia ou numa noite (I, 26);
  • dizer que a alma pode se tornar divina (I, 27);
  • dizer que o homem unido a Deus deve ser venerado como o corpo de Cristo (I, 28);
  • dizer que o homem unido (a Deus) não precisa jejuar nem rezar (I, 44).

Naturalmente, nenhuma dessas teses era sustentada por Eckhart no sentido pelagiano em que Alberto e depois os censores do Livre Espírito as entendiam. Nenhum texto de Eckhart subscreve, por exemplo, à paráfrase da tese I, 13 dada por Alberto: “Pelágio: Não invejo o Filho de Deus, pois eu também, quando quiser, posso ser o filho de Deus e o próprio Deus.” No entanto, alguns tratados pseudo-eckhartianos como Sœur Katerei afirmavam nesses termos a possibilidade da deificação. Nesse tratado, de fato, uma vez alcançando o que ela mesma chama de “confirmação”, Katerei diz ao seu confessor: “Senhor, alegrai-vos comigo, tornei-me Deus!” Tal enunciado, que evoca as expressões teopáticas do místico sufista al-Hallâj (c. 858-922) — como o famoso “Eu sou o Deus-Verdade” —, poderia parecer a um alemão do século XIV como uma reinterpretação da noção de habitação interior do Verbe a partir do “estado teopático”, do “padecer Deus”, que o pseudo-Dionísio atribuía a seu mestre Hieroteu. Ora, era justamente isso que o próprio Eckhart parecia propor. Ele não dizia, em seu sermão alemão 2, a respeito da verdadeira pobreza de espírito, que, diante de um homem verdadeiramente pobre em espírito, Deus “se quisesse operar na alma, deveria ser Ele mesmo o Lugar de sua operação”? E acrescentava: “Ora, isso, Deus o faz de bom grado. Pois, se Deus encontra o homem” na verdadeira “pobreza, Ele 'é' ao operar Sua própria operação, e o homem 'é' ao sofrer Deus em Deus; e Deus é o lugar próprio de Sua operação.” Para qualquer eckhartiano, especialmente após a condenação de 1329, tais proximidades entre as doutrinas do Mestre e as do Livre Espírito eram, no mínimo, comprometedoras. Discípulo de Eckhart, Tauler teve que se empenhar em rejeitá-las. Como Suso, ele ataca violentamente o Livre Espírito. Se não o faz reivindicando implicitamente Eckhart, como Suso no Pequeno Livro da Verdade, ele tem a habilidade de fazê-lo continuando o trabalho crítico iniciado pelo próprio Eckhart — o que um ouvinte atento dificilmente poderia ignorar. Em sua obra alemã, Eckhart havia questionado três das teses características do Livre Espírito, a saber: 1) a da “liberdade absoluta”, atacada no sermão 29, na forma da máxima “Se tenho Deus e o amor de Deus, posso fazer tudo o que quiser”, e já questionada no concílio de Viena (VI, 3); 2) a da inutilidade das obras, atacada no sermão 86 pela identificação do homem nobre a Marta (em oposição aos grupos de beguinas que, “na esteira do Livre Espírito, chamavam de 'Maria' as que haviam alcançado a perfeição, e de 'Marta' as outras”); 3) a da inutilidade da graça para a “divinização”, denunciada na ideia constantemente reafirmada da graça da encarnação como condição da graça da habitação. Tauler retoma o essencial dessa crítica, com a diferença de que o faz de maneira mais veemente, mais apaixonada, mais direta. Ele se dirige explicitamente aos “livres espíritos que imaginam, por sua falsa iluminação, ter reconhecido a verdade, que se exaltam no prazer e na complacência que têm em si mesmos, que se concentram em sua falsa passividade, e então proferem palavras desonrosas para Nosso Senhor” (sermão 52, § 5). Mas, sobretudo, ele lembra constantemente, seguindo Eckhart, o papel da graça na divinização. Contra os que afirmam que a divinização é um estado final, o sermão 1, § 1, recorda: “Deus, todos os dias e a toda hora, nasce verdadeiramente, espiritualmente, pela graça e pelo amor, numa alma boa” — o que parece ecoar o sermão 37 de Eckhart, que declara: “O nascimento não ocorre uma vez no ano, nem uma vez no mês, nem uma vez no dia, mas em todo tempo, isto é, acima do tempo, na amplitude onde não há nem aqui nem agora, nem natureza, nem pensamento”, em suma, na graça. Da mesma forma, o sermão 64, § 6, critica a “liberdade abusiva” e a “falsa luz” daqueles que creem que “Deus se conhece, se ama e se deleita neles” sem que tenham passado pela “transformação que o Espírito de Deus dá ao espírito criado, por um ato de bondade gratuita, respondendo ao insondável desapego e abandono do espírito criado”. Por fim, se denuncia o papel das obras realizadas sem desapego, dando o coração às criaturas e nelas encontrando sua alegria, em vez de levar ambas a Deus (sermão 57, § 1), Tauler nunca deixa de lembrar que as obras não são inúteis: elas são um “caminho e uma preparação” (sermão 12, § 2). Ele realiza, assim, um trabalho de esclarecimento e precisão que contribuirá grandemente, por sua mediação, para a sobrevivência tácita do eckhartismo.

/home/mccastro/public_html/sofia/data/pages/alain_de_libera/libera-lest-tauler-critica-as-teses-do-livre-espirito.txt · Last modified: by 127.0.0.1