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Libera (LEST) – Suso, doutrina

Alain de Libera (LEST) A reputação de “doçura” atribuída a Suso prejudica sua imagem como teólogo e pensador. No entanto, o homem está longe de ser piegas. Infelizmente, destacar sua força também cria imediatamente um segundo obstáculo ao reconhecimento do pensador: o relato “autobiográfico” de suas mortificações, o gosto imoderado por provações e humilhações que ele aparentemente demonstra, nos incomoda. Dos dezoito aos quarenta anos, sua vida parece ser apenas a realização de um teorema, cujas múltiplas formulações ele lê nos Padres do Deserto. Sem falar da suspeita que paira sobre a autenticidade dos episódios relatados na Vita, uma suspeita reforçada pela estranha contenção que o Horologium demonstra ao apresentar uma versão paralela, pode-se tentar abordar o verdadeiro rosto de Suso através da transição que ocorre nele, aos quarenta anos, da mortificação ascética à prática do abandono. Também se pode destacar que a acumulação de cenas insuportáveis na “autobiografia” anda de mãos dadas com o relato das numerosas visões que pontuam toda a obra, e que tudo isso se insere precisamente no uso da imagem, da imagem pintada, que o Exemplar de certa forma teorizou. Sabe-se que os manuscritos do Exemplar são adornados com imagens didáticas. Ora, o próprio Suso explica que ele se serve de imagens, que ele “fala por imagens” daquilo que está “acima de todos os sentidos e acima do intelecto humano”. Seu problema é, portanto, preciso: “como imaginar sem imagens (bildlos gebilden) e modalizar sem modos (wiselos bewisen)”, ou seja, também “formar sem formas e provar sem provas” aquilo que não tem imagem nem modo, “forma sem forma e modo sem modo”, nas palavras de São Bernardo? A resposta evoca o ponto de passagem da teologia simbólica e afirmativa para a teologia negativa e mística: é preciso “expulsar a imagem pela imagem” (bild mit bilden us triben). Como justamente observa A. Haas, trata-se de um “programa literário”. Se a Vida é menos uma mistificação do que uma mistagogia, toda a obra pode ser lida como uma produção de imagens (mit bildgebender wise), de metáforas geradoras de imagens (bildgebender glichnus) destinadas ao consumo final no “sem imagem”. Ora, o transcendimento da imagem, a entbildung, é, desde Eckhart, a palavra-chave da mística renana. A imagem, a iconografia, é destinada ao “principiante”. Ela não tem mais razão de ser quando o abandono toma o lugar do “bom começo”. A doutrina de Suso pode, portanto, ser lida, de certa forma, no esquema literário que articula a Vida — ele mesmo não intitulou sua “autobiografia” Suso: “Aqui começa a primeira parte deste livro que se chama Suso” — daz da haisset der Sùse. Pode-se até dizer que este “Livro que se intitula o Doce” é inteiramente uma imagem a ser transcendida, uma imagem desde o início destinada a desaparecer diante da única Imagem sem imagem. Trata-se, em suma, de passar da dessemelhança para a semelhança, pois, como diz o próprio Suso, “todas as imagens e todas as palavras figurativas estão tão distantes da verdade sem imagem, e são tão dessemelhantes, quanto um pântano negro está do esplendor do sol”, 2., Paris, Éd. du Seuil, 1978, p. 64): “ O homem, quando se une totalmente a Deus com amor, é desimaginado, entbildet, formado, ingebildet, e transformado, überbildet, na conformidade divina na qual ele é um com Deus.”]]. O centro organizador da doutrina de Suso é, portanto, dado em sua definição do verdadeiro abandono: “Um homem abandonado deve ser desimaginado da criatura, imaginado com Cristo, e superimaginado na divindade” — o que Haas (e seu tradutor, W. Wackernagel) entende assim: “Um homem desapegado não deve mais ter imagem da criatura, ser 'imaginado' (formado) com Cristo, e 'superimaginado' (ou seja, formado de maneira eminente) na deidade.” “Ser 'imaginado' (formado) com Cristo”, esta é a palavra-chave que, no entanto, de Eckhart a Suso, opera uma mudança de paradigma na mística renana. De fato, a passagem da mística da essência para a mística do sofrimento e do amor (do sofrimento do amor, do amor do sofrimento) que ocorre entre Eckhart e Suso é, antes de tudo, uma mudança na compreensão da noção de conformação. Em Eckhart, o transcendimento das imagens e o desapego entendido como conhecimento não-conhecedor, “pobreza em espírito”, são o caminho real do abandono. Em Suso, é o sofrimento tomado como sinal e meio exclusivo de uma total abnegação da vontade própria. A gelâzenheit reivindicada por Eckhart e Suso não tem, portanto, o mesmo significado: em um, é o abandono no sentido próprio, que é ao mesmo tempo lassen e sein lassen; no outro, é a renúncia. Quando Eckhart fala de “se conformar a Cristo”, ele pensa em sua divindade; Suso, em sua humanidade sofredora, na humanidade de Cristo na cruz. A “união transformante” que é o ápice da experiência mística não coroa o mesmo tipo de conformação. Para Eckhart, trata-se de se abandonar a si mesmo, deixando o Verbo nascer no fundo da alma, de gerar Cristo em si. Para Suso, trata-se de “se tornar uma imagem expressiva do Crucificado”, nas palavras de Boaventura falando de São Francisco de Assis. Eckhart tem em vista a deificação do cristão, a graça da inhabitação que prolonga a graça da encarnação. Mesmo que ele também tenha em vista, especialmente no Pequeno Livro da Verdade, a deificação, Suso fala antes de tudo e em última análise da Paixão, que é o único “tesouro dos pobres” (carta XXVIII). Para expressar o que separa Eckhart e Suso, J. Ancelet-Hustache destaca que Mestre Eckhart está principalmente preocupado com a doutrina e que a questão de saber “se a doutrina de Eckhart tem como base uma experiência mística permanece controversa”, enquanto que, para Suso, “não há dúvida, ele conheceu os estados místicos de que fala” (p. 108). Seria mais preciso dizer que há dois modelos de teologia: um centrado na deificação, o outro na Paixão. Essa mudança de paradigma explica por que, mesmo em sua defesa do eckhartismo, Suso recua diante da tese de Eckhart que faz do abandono uma condição suficiente para a deificação. É que a deificação não é o verdadeiro objetivo de sua teologia, mas sim a imitação de Jesus Cristo.

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