Wunenburger1990
Em vários lugares da modernidade, ouvem-se de fato apelos para levar a sério o diagnóstico de esgotamento da lógica identitária. C. Castoriadis ataca assim vigorosamente todos os avatares da identidade, especialmente sob a forma das “lógicas conjuntistas”, que repousam no postulado de objetos definidos e discretos. Na definição dos conjuntos, formulada por Cantor, “enlaça-se essa enigmática identidade do ser e do pensar selada desde Parmênides, pois equivale a dizer que 'o que é - o que pode ser pensado' pode e deve poder ser bem definido e bem distinto, composável e decomponível em totalidades definidas por propriedades universais e compreendendo partes definidas por propriedades particulares (que essa composição-decomposição possa ou não resultar numa totalidade-unitária última, henpanta; que possa ou não chegar a indivisíveis últimos, atoma, é indiferente do ponto de vista que aqui nos interessa); e que finalmente o que não é dessa maneira é menos, ou não é de todo, não passa de 'existência passageira, contingência exterior, opinião, aparência superficial, erro, ilusão' como dirá Hegel, ou 'multiplicidade inconsistente' como dirá Cantor (carta a Dedekind de 28 de julho de 1899)”.
É por isso que o problema já não consiste apenas em conhecer juridicamente os limites da razão, como no criticismo kantiano, mas em realizar um salto, ou melhor, uma inversão para se instalar numa outra abordagem do mundo da realidade: “Pensamos que uma nova lógica pode e deve ser elaborada e que o será. Pois será preciso, finalmente, forjar uma linguagem e 'noções' à medida desses objetos que são as partículas 'elementares' e o campo cósmico, a auto-organização do vivo, o inconsciente ou o sócio-histórico: uma lógica capaz de levar em conta o que não é, em si mesmo, nem caos desordenado suscitando 'impressões' nas quais a consciência cortaria livremente 'fatos', nem sistema (ou sequência bem articulada, finita ou infinita, de sistemas) de 'coisas' bem recortadas e bem colocadas umas ao lado das outras - e que todavia se deixa também, 'em parte', apreender assim e de maneira que testemunha ainda, 'em parte', uma relativa liberdade da consciência em relação ao dado.” Assim se multiplicam, em várias direções, os esboços de uma lógica paradoxal, que já não se confina ao campo metafísico ou teológico, mas passa por uma espécie de alavanca para a compreensão de todas as coisas.
Seguindo o percurso de F. Varela, J.P. Dupuy pede, por exemplo, que as ciências fecundem a lógica do duplo vínculo, para escapar a seus imperativos de disjunção e alternância. Os trabalhos de Varela lhe parecem confirmar nesse sentido o diagnóstico do fracasso de uma lógica identitária que “recusa abraçar os polos contraditórios no mesmo olhar ela se reduz a oscilar esterilmente de um a outro. A dialética hegeliana tampouco é solução, pois a síntese só emerge fazendo desaparecer tese e antítese. O que precisamos pensar é uma lógica que aceite as contradições, os conflitos, as oposições, uma 'lógica do magma'”.
Essa reavaliação da contradição não é apenas própria de disciplinas cujo objeto é por natureza energético ou conflituoso, mas atinge mesmo o campo da matemática. R. Thom esboça, por exemplo, uma espécie de arquétipo geral da morfogênese a partir das abstrações matemáticas. Pois, mesmo nessa perspectiva, pode parecer necessário destronar os princípios sacrossantos de identidade, mesmo e sobretudo mascarados sob o conceito de estabilidade, lexicalizado pelo verbo “ser”. O processo geral da diferenciação das formas se insere numa estrutura dinâmica geradora, “diretamente resultante do conflito entre duas (ou várias) forças, que a engendram e mantêm por seu próprio conflito. Isso permite desenvolver uma classificação das formas assim como uma álgebra, uma combinatória das formas num espaço multidimensional Assim vislumbra-se a possibilidade de criar um estruturalismo dinâmico”.
Assistimos portanto a uma contestação que já não diz respeito à pertinência deste ou daquele modelo, mecanicista ou organicista de interpretação do real, mas à adaptação de nossa maneira dominante de pensar, reforçada pelos condicionamentos culturais. Onde imperava incontestavelmente uma única lógica, tida como funcional e ao mesmo tempo verdadeira, competem hoje pelo menos dois tipos de lógicas: aquela preocupada em encerrar o dado numa grade plana, fácil de supervisionar, e aquela desejosa de fazer penetrar mutuamente o exterior e o interior das coisas, o espaço e o tempo, a identidade e a alteridade. A episteme contemporânea se encontra assim colocada numa bifurcação entre uma lógica parcelar e fechada, quaisquer que sejam os aperfeiçoamentos internos dos lógicos profissionais, e uma lógica aberta, pluridimensional e conflitiva. Nesse sentido, todo pensamento da complexidade deve escolher entre o que Jean-Pierre Schnetzler denomina, seguindo Arthur Koestler, a “lógica do comissário” regida pela binariedade e o terceiro excluído, e a “lógica do Iogue” que se abriria até uma quadripolaridade lógica.
Certamente, não se trata de negar que existam setores da realidade homogêneos, simples, ou inversamente outros que relevem de dicotomias nítidas, ou mesmo talvez, sob benefício de inventário, fenômenos dialéticos. Muitas formas da natureza, muitas situações práticas da existência se deixam abordar com toda segurança pela lógica identitária do Mesmo e do Outro. Não deixa porém de ser necessário alertar a razão contra todo uso monomaníaco de um regime de pensar, contra todo privilégio concedido globalmente a um esquema por suas conotações sedutoras ou patéticas. É por isso que a inteligibilidade da produção da diferença deve passar, como diz Mircea Eliade, “pela espantosa variedade das soluções dadas ao enigma 'sempre recomeçado' da polaridade e da ruptura, do antagonismo e da alternância, do dualismo e da união dos contrários”.