Étienne de La Boétie, Discours de la servitude volontaire, précédé et suivi de « La Boétie et la question du politique », par Pierre Clastres et Claude Lefort, et d’extraits de Lammenais, P. Leroux, A. Vermorel, G. Landauer et S. Weil, Payot, Paris. 1978.
Por enquanto, desejo apenas que me expliquem como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações suportem às vezes um único tirano, que só tem o poder que lhe é concedido, que só pode prejudicá-los na medida em que eles consentem em suportá-lo, e que não lhes faria mal algum se não preferissem sofrer tudo dele a contradizê-lo. Coisa verdadeiramente espantosa (e, no entanto, tão comum que é mais motivo de lamento do que de espanto!) — ver milhões e milhões de homens miseravelmente subjugados, curvados sob um jugo deplorável, não porque sejam forçados por uma força maior, mas porque estão fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados pelo simples nome de um único, a quem não deveriam temer, já que está sozinho, nem amar, já que é, para com todos eles, desumano e cruel. Tal é, porém, a fraqueza dos homens! Obrigados a obedecer, compelidos a contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais fortes. Se, portanto, uma nação, acorrentada pela força das armas, está submetida ao poder de um só (como a cidade de Atenas esteve sob o domínio dos Trinta Tiranos), não devemos nos admirar de que ela sirva, mas lamentar sua servidão, ou melhor, nem nos admirar nem nos queixar; suportar a desgraça com resignação e reservar-nos para uma ocasião mais favorável no futuro.
Somos feitos de tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de nossa vida. Amar a virtude, estimar belas ações, ser grato pelos benefícios recebidos e, muitas vezes, até reduzir nosso próprio bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daqueles que amamos e que merecem ser amados — tudo isso é muito natural. Se, portanto, os habitantes de um país encontram entre eles um desses homens raros que lhes deu provas reiteradas de grande previdência para protegê-los, de grande ousadia para defendê-los, de grande prudência para governá-los; se eles se acostumam insensivelmente a obedecer-lhe; se até confiam nele a ponto de conceder-lhe certa supremacia — não sei se seria sábio afastá-lo de onde fazia bem para colocá-lo onde poderia fazer mal. No entanto, parece muito natural e razoável ter bondade por quem nos proporcionou tantos bens e não temer que o mal venha dele.
Mas, ó grande Deus! O que é isso? Como chamaremos esse vício, esse horrível vício? Não é vergonhoso ver um número infinito de homens não apenas obedecer, mas rastejar; não serem governados, mas tiranizados, sem ter bens, parentes, filhos, nem mesmo a própria vida que lhes pertença? Sofrer roubos, pilhagens, crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais cada um deveria defender sua vida ao preço de seu sangue, mas de um só — não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um verdadeiro pigmeu, muitas vezes o mais covarde, o mais vil e o mais afeminado da nação, que nunca cheirou a pólvora de batalha, que mal pisou a areia dos torneios, incapaz não só de comandar homens, mas até de satisfazer a mais frágil mulherzinha! Chamaremos isso de covardia? Diremos que são vis e medrosos os homens submetidos a tal jugo? Se dois, se três, se quatro cedem a um só, é estranho, mas possível; talvez, com razão, se pudesse dizer que falta coragem. Mas se cem, se mil se deixam oprimir por um só, ainda se dirá que é covardia, que não ousam enfrentá-lo, ou antes, que por desprezo e desdém não querem resistir-lhe? Finalmente, se vemos não cem, não mil, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens não atacarem, não esmagarem aquele que, sem qualquer consideração, os trata como tantos servos e escravos — como qualificaremos isso? É covardia? Mas todos os vícios têm limites que não podem ultrapassar. Dois homens, ou mesmo dez, podem temer um, mas que mil, um milhão, mil cidades não se defendam contra um só homem! Oh, isso não é apenas covardia — ela não vai tão longe; assim como a valentia não exige que um só homem escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino! Que vício monstruoso é esse, então, que a palavra “covardia” não consegue expressar, para o qual falta toda expressão, que a natureza renega e a língua se recusa a nomear?
Pobres e miseráveis povos, nações insensatas, obstinadas em vosso mal e cegas para vosso bem! Deixais que vos arrebatem, diante de vossos olhos, a parte mais bela e clara de vossa renda, que saqueiem vossos campos, devastem vossas casas e as despojem dos velhos móveis de vossos antepassados! Viveis de tal modo que nada mais vos pertence. Parece que considerais uma grande sorte se vos deixam ao menos metade de vossos bens, de vossas famílias, de vossas vidas. E todo esse estrago, essas desgraças, essa ruína, não vos vêm de inimigos, mas sim do inimigo — daquele mesmo que fizestes o que ele é, por quem ides tão corajosamente à guerra e para cuja vaidade vossas pessoas enfrentam a morte a cada instante. Esse senhor, no entanto, só tem dois olhos, duas mãos, um corpo — nada mais do que tem o mais humilde habitante do número infinito de vossas cidades. O que ele tem a mais do que vós são os meios que vós mesmos lhe forneceis para vos destruir. De onde tira os inúmeros espiões que vos vigiam, senão de vossas fileiras? Como tem tantas mãos para vos ferir, senão porque as toma emprestadas de vós? Os pés com que esmaga vossas cidades não são também os vossos? Ele tem poder sobre vós, senão por vós mesmos? Como ousaria atacar-vos, se não estivesse em conluio convosco? Que mal vos faria, se não fôsseis cúmplices do ladrão que vos rouba, do assassino que vos mata, traidores de vós mesmos?
Semeais vossos campos para que ele os devaste; mobiliais e encheis vossas casas para fornecer-lhe saques; criais vossas filhas para que ele sacie sua luxúria; alimentais vossos filhos para que ele os faça soldados (e ainda são felizes se só isso!), para que os leve ao matadouro, os torne ministros de suas cobiças, executores de suas vinganças. Vos esgotais no trabalho para que ele possa mimar-se em seus deleites e revolver-se em prazeres vis. Vos enfraqueceis para que ele seja mais forte, mais duro, e vos mantenha sob rédea mais curta. E de tantas indignidades, que nem mesmo os animais sentiriam ou suportariam, poderíeis vos livrar sem sequer tentar fazê-lo, mas apenas desejando-o. Sede, portanto, resolutos a não mais servir, e sereis livres. Não vos peço que o ataqueis, que o abaleis, mas apenas que não o sustenteis mais, e vereis, como um grande colosso cuja base é retirada, ele cair por seu próprio peso e despedaçar-se.
Os médicos dizem que é inútil tentar curar feridas incuráveis, e talvez eu esteja errado ao querer dar esses conselhos ao povo, que há muito parece ter perdido todo sentimento do mal que o aflige — o que mostra bem que sua doença é mortal. Tentemos, no entanto, descobrir, se possível, como se enraizou tão profundamente essa obstinada vontade de servir, que faz crer que, na verdade, o próprio amor à liberdade não é tão natural.
Em primeiro lugar, creio que não há dúvida de que, se vivêssemos com os direitos que recebemos da natureza e segundo os preceitos que ela ensina, seríamos naturalmente obedientes a nossos pais, súditos da razão, mas não escravos de ninguém. Certamente, cada um de nós sente em si, no próprio coração, o impulso instintivo de obediência a seus pais. Quanto a saber se a razão é inata em nós (questão debatida nas academias e longamente discutida nas escolas de filósofos), não creio errar ao pensar que há em nossa alma um germe de razão que, aquecido por bons conselhos e exemplos, produz em nós a virtude — enquanto que, ao contrário, sufocado pelos vícios que muitas vezes surgem, esse mesmo germe se perde. Mas o que é claro e evidente para todos, e que ninguém pode negar, é que a natureza, primeira agente de Deus, benfeitora dos homens, nos criou a todos iguais e, por assim dizer, no mesmo molde, para mostrar que somos todos iguais, ou melhor, todos irmãos. E se, na distribuição de seus dons, ela concedeu a alguns mais vantagens corporais ou espirituais do que a outros, certamente não quis colocar-nos neste mundo como em uma arena, nem enviar os mais fortes e hábeis como bandidos armados em uma floresta para caçar os mais fracos. Devemos crer, antes, que, ao distribuir partes maiores para uns e menores para outros, ela quis inspirar neles o afeto fraterno e pô-los em condições de praticá-lo — uns tendo o poder de ajudar, outros a necessidade de receber ajuda.
Portanto, já que essa boa mãe nos deu a todos a terra por morada, nos alojou sob o mesmo grande teto e nos moldou da mesma massa, para que, como em um espelho, cada um pudesse reconhecer-se no próximo; se nos concedeu a todos o belo dom da voz e da palavra para nos aproximarmos e confraternizarmos, e, pela comunicação e troca de pensamentos, chegarmos a uma comunidade de ideias e vontades; se procurou, por todos os meios, formar e apertar o nó de nossa aliança, os laços de nossa sociedade; se, enfim, mostrou em tudo o desejo de que fôssemos não apenas unidos, mas que juntos formássemos, por assim dizer, um só ser — então, como podemos duvidar por um instante sequer que sejamos todos naturalmente livres, já que somos todos iguais? Pode entrar na mente de alguém que, tendo-nos colocado todos na mesma companhia, ela quis que alguns fossem escravos?