A tese sobre a ontologia axiológica de Lavelle

A tese sobre a ontologia axiológica de Lavelle, momento decisivo do pensamento filosófico de Tarcísio Meirelles Padilha

Excertos de “Pela Filosofia”. Homenagem a Tarcísio Meirelles Padilha“. Pallas, 1984.

Fernando Arruda Campos Instituto Brasileiro de Filosofia

1. No presente artigo não se pretende realizar uma análise minuciosa do pensamento filosófico de Tarcísio Padilha, nem mesmo avaliar a importância deste mesmo pensar e seu posicionamento, no contexto da filosofia contemporânea e da filosofia no Brasil. A intenção é bem mais modesta. Pretende-se, através de algumas considerações a respeito da tese sobre a ontologia axiológica de Lavelle, ressaltar a visão espiritualista e realista que norteia, ali, a meditação e que, por outro lado, inspira toda a posterior reflexão filosófica de Padilha, de tal modo a se fazer presente, qual fonte inspiradora, em toda a rica elaboração filosófica, expressa através de obras e artigos.

2. A tese sobre Lavelle é uma constante e rica reflexão, de cunho pessoal, sobre o realismo espiritualista do mestre francês, captado em sua doutrina do ser e do valor, em sua ontologia axiológica.

Para Padilha, a posição lavelleana atesta, não apenas a modernidade do pensar filosófico de Lavelle, voltado para a problemática do homem, como ainda o caráter de transcendência de sua doutrina que, sem negar o aspecto não menos importante da imanência, aspecto este inerente à atividade espiritual e, por outro lado, implicado na própria doutrina de participação, coloca, qual postulação fundamental do próprio espírito e do próprio ser do homem, a afirmação da realidade necessária e fundamental do Ser divino. Diz Padilha que “ao homem atormentado do século XX Lavelle propõe a escolha de um dentre os dois únicos caminhos: não há senão duas filosofias, entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras, segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas à medida que ele se dá é também a sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar, pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos — o Deus das almas bondosas e generosas, que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e que não se recusam jamais àqueles que os buscam, com coragem e humildade”. 1)

É, em tal atmosfera, de um realismo espiritualista, na qual se esforça, a fim de apreender o verdadeiro sentido do ser e do valor, na obra de Lavelle, que se desenvolve, na tese, toda a reflexão de Padilha. Solidamente estruturada, a obra passa da consideração do ser à do valor, através de uma reflexão sobre o ato, em que se abordam os importantes temas do ser e ato, participação e liberdade, tempo e eternidade, temas estes que tão fundo marcaram o pensamento filosófico do mestre da “Filosofia do Espírito”.

3. No estudo sobre o ser, que constitui a primeira parte da tese, Padilha aborda o problema da unidade do ser e o da descoberta do eu, no absoluto do ser.

Já no primeiro capítulo sobre a unidade do ser, ressalta a posição realista da filosofia lavelleana, que insiste sobre a primazia do ser, com relação ao conhecer e ao próprio não-ser, enquanto se afirma este como realidade “à qual nada se pode antepor, não tendo, por conseguinte, sentido falar-se na passagem do não-ser ao ser, como se o ser pudesse nascer” 2). Há, de outra feita, que se distinguir o Ser, considerado, em seu aspecto de transcendentalidade, de suas diversas realizações, de suas participações, donde emerge o caráter saliente de unidade do ser, na medida em que é este captado e apreendido como idêntico a si mesmo, na própria multiplicidade de suas manifestações diversas, na própria pluralidade dos seres: “o ser destrói as distinções, entre a realidade e a aparência, entre o sensível e o inteligível” 3).

É a presença do ser, em todos os seus inferiores, que funda o conceito de univocidade que, no contexto lavelleano, tem um sentido muito próximo ao da analogia tomista. Padilha observa, com muita acuidade, que” univocidade e analogia constituem dois aspectos diferentes, duas perspectivas diversas e complementares sobre o ser, referindo-se a primeira à sua unidade onipresente e a segunda a seus modos diferenciados“ 4).

Mas a experiência fundamental, a experiência do ser só é possível através da descoberta do eu, no ser, eis que descobrimos o ser, na medida em que descobrimos nele nossa presença. A metafísica passa, assim, a ser o aprofundamento da subjetividade, eis que o ser verdadeiro é sempre de natureza subjetiva, em si mesmo e em nós. Há, desta feita, para Lavelle, segundo Padilha, duas subjetividades, entremeadas de uma objetividade: a subjetividade divina, o “Soi pur” a “Ipseité”, a subjetividade pura, a subjetividade de nosso próprio eu e a objetividade do mundo, realidade opaca, “vivificada pelo espírito, que lhe empresta verdadeiro teor ontológico” 5). Em outras palavras, “o Ser é Deus, a existência é o eu, a realidade, o mundo.” 6)

Esta tentativa de captar o ser e a própria realidade a partir da subjetividade humana tem sido, de igual forma, adotada por tomistas contemporâneos, na medida em que procuram reelaborar o tomismo tradicional através de um constante diálogo com o pensamento moderno e contemporâneo. Nesta linha de pensar, consoante tivemos o ensejo de salientar em artigo publicado 7), insere-se o pensamento filosófico de André Mare, para quem a metafísica consiste — embora não de modo exclusivo, como para Lavelle — no aprofundamento da subjetividade, na medida em que o ser do objeto se desvela, em sua mais íntima essência, na interioridade do espírito, ao mesmo tempo que o espírito se manifesta a si mesmo, enquanto tal, à luz do ser, descobrindo-se, enquanto ser, situado, na interioridade do ser.

Destarte, sem dar à experiência da subjetividade um valor exclusivo, de tal modo a afirmar de idêntica forma que Lavelle, ser o ser verdadeiro, em si, quanto em nós, sempre subjetivo, Mare desenvolve suas reflexões na linha de um autêntico tomismo, deixando transparecer, no fundo de seu pensar, um profundo acordo com o espiritualismo de Lavelle.

4. A doutrina sobre o ato é de importância capital, no contexto lavelleano. Sem ela, a própria doutrina do ser e do valor perderiam, deveras, sua real significação. Constituindo um elo de união entre a doutrina do ser e a do valor é, na verdade, esta doutrina, expressa através do conceito de participação, o ponto central do lavellismo.

Para Lavelle, segundo Padilha, não obstante se possa admitir o fato, qual dinamização do ser, há que se reconhecer a identidade, entre ser e ato (Cf. A ontologia axiológica de Louis Lavelle, op. cit., p. 52). “A interioridade do ser é um ato, sempre em exercício, do qual não cessamos de participar.” 8)

Por outro lado, a reflexão é, fundamentalmente, um dinamismo da liberdade, na medida em que torna possível o ato que sou, ato que exprime a participação ontológica de meu ser. Do ato reflexivo chegamos ao ato criador, exprimindo esta passagem a realidade do ato que me constitui e do mundo que eu represento, qual participação do Absoluto: “o mundo se forma, no intervalo, que separa o ato reflexivo do ato criador” 9). O intervalo exprime, desta forma, “a limitação essencial do ser espiritual criado, que se acha coartado, na sua positividade, por uma negatividade, que o mantém à distância infinita da Positividade absoluta, mas ao mesmo tempo lhe permite distinguir-se dela e exercitar sua própria atividade.” 10)

É, deveras, no bojo da doutrina da participação, a qual é, segundo Padilha, o centro do lavellismo, que se coloca o problema da liberdade, eis que a liberdade é, para Lavelle, a interioridade mesma do ser. Colocada, no centro da participação é esta vista, aqui, antes qual conquista, que dom; resposta, portanto, da criatura, ao apelo divino. A existência é vocação e invocação, apelo e consentimento. O homem é verdadeiramente livre, não quando faz aquilo que quer mas quando, em independência plena, dá seu consentimento ao ser, respondendo, desta forma, através da realização de sua própria vocação, ao apelo divino. Realmente, nota Padilha, com propriedade, que o Deus de Lavelle é “generosidade livre e perfeita, pela qual, ao invés de criar as coisas que seriam testemunhas inertes de seu poder, comunica a outros seres … esta dignidade que os torna … causas de si mesmos”. 11)

Destarte, a dialética da participação, que coloca, em confronto, a pessoa humana e a Existência divina, Ser participante, se transforma, finalmente, na dialética da liberdade, a partir do momento em que descobrimos, na própria interioridade de nosso ser espiritual, a existência de um duplo momento: o do apelo divino e o da resposta humana.

Por outro lado, imperioso se torna salientar que, para Lavelle, a participação, não obstante realizada, no quadro espacio-temporal é, no presente, do qual ” o instante é uma espécie de forma aguda“ (Ibidem, p. 85), que encontra ela seu mais profundo e original sentido. O tempo tem, assim, sua origem, na própria eternidade, eis que a participação é vista qual constante e continuado ato criador do eterno Presente que, sem nada perder de si mesmo, está constante e continuadamente presente, como um Todo, na totalidade dos seres participados e, em cada um dos momentos evolutivos de cada ser, situado no espaço e sujeito a constante devir.

5. Para Lavelle, o valor fundamenta-se no ser. O valor nada mais é que o próprio ser, na medida em que é este considerado qual objeto de amor e interesse para a consciência (Ibidem, p. 93). A noção de valor fundamenta-se no ser, quando este, considerado qual ato, visto, não apenas qual objeto da inteligência, mas ainda da vontade, emerge, em seu aspecto de bem. E, porque o bem, visto num contexto de participação, é, em si mesmo participável, torna-se o ser principio inesgotável de todos os valores 12).

No contexto lavelleano, o valor encontra, assim, sua devida fundamentação metafísica, na medida em que, na perspectiva da doutrina da participação, o Ser absoluto e eterno aparece qual Valor absoluto que, sendo, essencialmente, a Bondade absoluta e infinita, manifesta-se qual inesgotável fonte de todos os valores participados e de outras fontes criadoras de valores, as quais, no plan do criado, refletem esta infinita Liberdade criadora de valores.

No que concerne à apreensão do valor, pelo espírito, inteligência e vontade colaboram e se completam, harmonicamente, na experiência do valor. Procurando, por outro lado, superar todo o exclusivismo de uma posição radicalmente subjetivista, no que tange à problemática axiológica, afirma Padilha que o valor emerge para Lavelle, na confluência do objetivo e do subjetivo, na medida em que o objetivo valioso é assumido pelo espírito que o experimente, na interioridade de seu próprio ser, que o transforma, deste modo, na substância de sua própria realidade.

Nesta ótica, assume capital importância o valor da pessoa humana que, refletindo, aqui, no contexto da doutrina da participação, emerge qual participação do eu, no ser, ensejando, deste modo, a descoberta, não do ser, que aparece, mas do ser que se realiza e se faz, progressivamente. 13)

6. É, deveras, à luz desta visão metafísica, de uma metafísica do real e do espírito, que Padilha, em seus escritos posteriores, reflete sobre diversos e diferentes temas filosóficos. Impossível seria, nos limites estreitos de um artigo, mostrar, em minudências e pormenores, a realidade e veracidade desta afirmação.

Exemplificativamente, apenas, cabe ressaltar, consoante já o fizemos em apreciação sobre a obra, que, em Uma Filosofia da Esperança, coletânea de estudos anteriores recentemente publicada, é esta visão de uma metafísica realista e espiritualista, já amplamente desenvolvida na tese sobre Lavelle, que constitui o espírito vivificador, a fonte inspiradora de toda a reflexão. 14)

De igual modo, em Filosofia, ideologia e realidade brasileira e Brasil ein questão é sempre com olhar de metafísico e de filósofo do ser que Padilha encara nossa realidade. Assim é, por exemplo, em Brasil em questão, original reflexão sobre o homem brasileiro, abordado em todos os seus aspectos, em cuja obra a temática central gira em torno da caracterização da personalidade básica do brasileiro, cuja característica fundamental seria, segundo Padilha, a cordialidade, entendida, aqui, “qual movimento interior, que inspira palavras e atos”. A cordialidade, assim entendida, proflui da nossa própria existência, de nossa existência de ser espiritual, a qual, por outro lado, assume colorido próprio, devido ao nosso condicionamento histórico, de ser, existente no aqui e agora da especialização e temporalidade. Na verdade, a característica de historicidade e temporalidade, peculiares ao humano existir, não exclui a não menos importante, de interioridade, subjetividade e espiritualidade. 15)

7. É preciso enfatizar, por derradeiro, que foi esta visão da existência humana, sobre prisma eminentemente metafísico, na medida em que aparece esta qual ser aberto ao Ser, nela presente, que subministrou a Padilha o embasamento devido para a elaboração de uma ética da esperança. Segundo ele, há, deveras, para o homem, na raiz de seu próprio ser, uma busca constante do Ser, em sua plenitude. É esta busca que se lhe afigura, qual norma a assumir e a realizar, através do exercício de sua própria liberdade.

Toda esta rica e aprofundada reflexão sobre o ser e o agir humano, enquanto é este mesmo ser visto como inscrito, na realidade sempre presente do Ser, o eterno Presente, tem sido para Padilha, não apenas um puro diletantismo intelectual mas uma vivência constante, um procedimento que possibilita traduzir, na própria vida, qual orientação da própria existência, a verdade, afirmada pela inteligência e o valor, querido pela vontade.

Volta-se, então, a ressaltar tanto o aspecto de modernidade da filosofia de Padilha, que, de igual modo que a de Lavelle, está predominantemente voltada para a problemática do homem, quanto o de transcendência, na medida em que a existência humana encontra, na realidade sempre presente da Subjetividade criadora, a razão de ser, o Fundamento fundante de sua própria realidade.

Uma vivência da filosofia, num clima de uma metafísica realista e espiritualista como a de Padilha, não seria estranha a uma abertura à, Fé cristã, numa humilde atitude de aceitação da Palavra divina, o que representa, para o filósofo cristão, não apenas o coroamento de suas investigações no campo filosófico, como, ainda, o reconhecimento de um conjunto de verdades eminentemente mais rico e de natureza superior ao próprio saber filosófico, que, sem com ele se confundir, é realmente eficaz, a fim de lhe subministrar inspiração suficiente para que possa descobrir, no âmbito do próprio saber filosófico, aspectos novos de verdade e refleti-los em nível de inteligibilidade radical, aspectos estes que passaram despercebidos a pensadores outros, não possuidores da Fé cristã.

1)
Cf. A ontologia axiológica de Louis Lavelle. Rio de aJneiro, 1955, p. 11.
2)
Ibidem, pp. 15-16
3)
Ibidem, p. 18
4)
Ibidem, p. 27
5)
Ibidem, p. 39
6)
Ibidem, p, 40
7)
Cf. nosso artigo: “O tomismo de A. Marc”, in Convivium, n. 3 (maio-junho), 1982, pp. 230-252
8)
Ibidem, p. 55
9)
Ibidem, p. 61
10)
Ibidem, p. 79
11) , 12)
Ibidem, p. 103
13)
Cf. op. cit. Veja-se, sobretudo, o cap. IV da 3a parte, sobre o Valor: “Valor e participarão ou valor e existência , pp. 105-114.
14)
Cf. Uma Filosofia da Esperança. Rio de Janeiro, 1982; veja-se nossa recensão da obra, publicada in Convivium, n. 6 (nov.-dez.), 1982, pp. 535-538
15)
Cf. Brasil em questão. Rio de Janeiro, 1975; veja-se nossa apreciação da obra, em Revista Brasileira de Filosofia, (out.-dez.) 1976, pp. 502-505