Gaboriau5 (citação de Sartre)
1. Por que dizer que minha consciência singular está “além da essência, como minha liberdade”? O argumento se revela: ser é ter sido. E estava preparado há muito tempo, no capítulo da temporalidade: “o Passado (com P maiúsculo) é uma lei ontológica do Para-si” e ainda “minha essência está no passado”. Dois aforismos emprestados, p. 164, de uma seção que pretendia tratar exclusivamente da fenomenologia, dez páginas antes do início do que Sartre intitula: “Ontologia da temporalidade” (p. 174).
2. O que Sartre antecipa, ele redescobre depois. O sujeito humano sendo definido por um tipo de temporalidade, o para-si tendo como essência e lei ontológica estar no passado temporal, resta apenas repudiar a “verdade de essência” que Descartes e Husserl pediam ao Cogito, e colocar “a liberdade como liberdade… como pura necessidade de fato” (aqui, § 3).
Então, sim, “não posso deixar de experimentar” essa necessidade que é um fato. Mas se é verdade que “assim minha liberdade está perpetuamente em questão no meu ser… e (que) devo necessariamente possuir certa compreensão da liberdade”, devemos perguntar: qual compreensão? Tudo está aí.
3. Ora — último parágrafo — os precedentes sartrianos orientam essa “compreensão”. Eis aqui:
a) a negação vem ao mundo pelo homem, realizador de uma ruptura nadificante.
b) a liberdade é identificada a essa possibilidade permanente de ruptura,
c) essa possibilidade — que sou sob a forma do ter-sido — “implica para o homem um tipo de existência particular”. O que significa isso? Bem, “uma certa compreensão da liberdade”!
Mas então, no capítulo da temporalidade, já havíamos antecipado o que pertence à fenomenologia do tempo, não à ontologia das coisas; o que pertence à consciência (que se tem) do tempo, não ao “ser do tempo”; imbricamos este último no sujeito humano, de tal modo que o passado se torna “uma lei ontológica” e que assim o presente traz sua “nadificação”. A liberdade é esse presente.
Presente desprovido de qualquer referência à essência e à existência: como era necessário demonstrar. Graças à liberdade. “É por ela que o para-si escapa de seu ser como de sua essência”.
4. Eis a continuação : “Estou condenado a existir para sempre além de minha essência, além dos motivos e móbeis de meu ato: estou condenado a ser livre. Isso significa que não se poderia encontrar outros limites à minha liberdade senão ela mesma ou, se preferir, que não somos livres para deixar de ser livres. Na medida em que o para-si quer mascarar seu próprio nada e incorporar o em-si como seu verdadeiro modo de ser, tenta também mascarar sua liberdade.”
“A recusa da liberdade só pode ser concebida como tentativa de se apreender como ser-em-si… Psicologicamente, isso equivale, em cada um de nós, a tentar tomar os móbeis e motivos como coisas. Tenta-se conferir-lhes permanência; tenta-se esconder que sua natureza e peso dependem a cada momento do sentido que lhes dou, toma-se-os por constantes: isso equivale a considerar o sentido que lhes dava há pouco ou ontem — que é irremediável porque é passado — e extrapolar seu caráter fixo até o presente. Tento me persuadir de que o motivo é como era. Assim passaria integralmente de minha consciência passada à minha consciência presente: habitá-la-ia. Isso equivale a tentar dar uma essência ao para-si.
Da mesma forma, colocar-se-ão os fins como transcendências, o que não é um erro. Mas em vez de vê-los como transcendências postas e mantidas em seu ser por minha própria transcendência, supor-se-á que os encontro ao surgir no mundo: vêm de Deus, da natureza, de 'minha' natureza, da sociedade. Esses fins já prontos e pré-humanos definirão portanto o sentido de meu ato antes mesmo que o conceba, assim como os motivos, como puros dados psíquicos, o provocarão sem que eu mesmo perceba.
Motivo, ato, fim constituem um 'contínuo', um pleno.
Essas tentativas frustradas de sufocar a liberdade sob o peso do ser — desmoronam quando surge de repente a angústia diante da liberdade — mostram o suficiente que a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no coração do homem” (p. 515-516). Em suma, a equação é sempre tão simples: consciência = vazio = liberdade = para-si = não-natureza; e por outro lado, motivo, ato ou fim = pleno = em-si = não-liberdade. Sartre considerará portanto como tentativa de sufocar a liberdade o que poderia ser reconhecimento de seu condicionamento e raiz natural de sua angústia. Não é preciso que ela esteja inscrita e submetida ao ser: é o absoluto reconhecido imediatamente como tal. Desprende-se de todo vínculo, recusa-se a relacioná-la com qualquer coisa; único meio de consegui-lo, liga-se-a ao “nada”. E certamente, é bem verdade que ela não é o ser puro e que se pode falar, com Sartre e os místicos, de um “nada que está no coração do homem”. Resta saber com que direito se identifica esse “nada” à liberdade, como se tudo o que está “no coração do homem” se identificasse por isso mesmo. O em-si não é simples; vimos que é complexo, compreendendo uma forma, uma matéria, um vazio, toda uma dialética que seria abusivo simplificar, sob pretexto de escapar à “natureza”, onde nascemos substancialmente livres.
Para Sartre, liberdade = nada, liberdade = ausência de todo vínculo, porque liberdade = presença atual, e negação de tudo o que é passado — negação consequentemente do que teria sido também naquele momento, e ligaria os dois momentos do passado e do presente (a saber, a essência): “É porque a realidade humana não é suficientemente que ela é livre, é porque está perpetuamente arrancada a si mesma e porque o que ela foi está separado por um nada do que ela é e do que ela será” (p. 516). Em outras palavras, reduz-se ao tempo a dimensão própria do sujeito, faz-se consistir nele sua liberdade, assim privada de qualquer outra referência, “temporaliza-se” como se diz (p. 514). A lógica interna do sistema é irrepreensível: quem entra no círculo não sai mais. Não é aliás tão atraente senão em virtude de intuições incontestáveis, habilmente mescladas à sua curvatura. Na liga que vemos aqui por exemplo, não se distingue sem esforço o verdadeiro do falso metal, perfeitamente fundidos: “O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que foi ] no coração do homem… Assim a liberdade não é um ser: ela é o ser do homem, isto é, seu nada de ser. Se se concebesse primeiro o homem como um pleno, seria absurdo buscar nele, depois, momentos ou regiões psíquicas onde ele seria livre: tanto quanto buscar o vazio em um recipiente que se encheu previamente até as bordas. O homem não poderia ser às vezes livre e às vezes escravo: é inteiro e sempre livre ou não é” (ibid. p. 516). 5. A liberdade é efetivamente inseparável do para-si, mas está em uma natureza que seu peso material liga às coisas: em uma substância onde a unidade do ser-livre compõe com tudo o que atua (matéria, vazio e forma). Daí seu caráter não-simples!
A consciência como tal não experimenta, em sua liberdade, uma ausência de toda relação. A consciência como pecadora só se experimenta como tal em sua liberdade, em função de uma atitude onde uma relação reconhecida é negada, negada embora reconhecida, e negada porque reconhecida: ruptura não apenas com um passado temporal, mas com um presente que a domina com sua Atualidade. A consciência pecadora se descreveria nos termos em que Sartre descreve a liberdade: rejeitando toda outra consideração que não a de seu presente, estritamente e essencialmente temporal, fazendo o vazio em torno desse instante para nele se absolutizar.