(Gil1998)
Mas não se é, sempre, um outro si próprio? Não será o «sempre» da diversidade a única identidade? Mc Taggart é autor de uma distinção que ajuda a elucidar o que está aqui em jogo (ela acha-se anunciada na doutrina fichtiana da temporalidade). Temos duas intuições diversas do tempo. A primeira consiste no sentimento da duração, a passagem da vida e da história, em que há passado, presente e futuro. É uma série fluente, movente. Num outro contexto, o P.e Antônio Vieira lembrava que o momento presente começou por ser futuro para de seguida se tomar passado. Ao invés, a segunda intuição escande o tempo pelo antes e o depois. Esta segunda série do tempo não é fluente mas rígida. Cada acontecimento ocorrido ficará para sempre antes dos acontecimentos ocorridos depois: é o tempo irreversível da cronologia, definido pela sucessão dos instantes. E é também o tempo do fazer e da acção, inclusive a acção de rememoração que não pode senão ser pontual.
Pareceu um grande avanço do pensamento quando filósofos como William James, Bergson, Husserl, entenderam a temporalidade da consciência como duração e não como sucessão descontínua de instantes. Mas, se assim é não o podemos saber, pois, pace Bergson, não temos acesso directo à duração. Estabelecemo-la indirectamente, a duração é uma inferência feita a partir de situações de continuidade que não são em si mesmas temporais: ela é a metáfora da continuidade espacial do movimento de um corpo, ou de uma linha que traçamos, ou que imaginamos olhando para trás na nossa vida, ou da onda sonora que nos chega e que percebemos como um apito ou uma melodia (os dois exemplos preferidos de Husserl nas Lições sobre a Consciência íntima do Tempo). Na realidade, a consciência directa que de mim tenho ao apreender-me introspectivamente, ou não é temporal (o cogito situa-se fora do tempo), ou é instantânea: é neste instante e nele só que sinto a minha experiência e sou dela portador — trata-se de uma simultaneidade consigo mesmo, não de duração —, será num instante posterior já, «depois», que reitero a mesma tomada de consciência, na mesma simultaneidade. Na terminologia adopta-da, há consciência apenas, não há experiência. Dito de outra maneira, de um ponto de vista epistemológico só de consciência é legítimo falar — a duração remete para uma ontologia inacessível do tempo ].
Mas não é também verdade que a sucessão dos antes e dos depois me aparece na forma de uma cadeia contínua e única? A vida diz-se bem por uma só palavra. É para dar conta deste olhar globalizante que lançamos sobre o passado que os filósofos transformam o instante em duração, a série antes-depois na série passado-presente-futuro. Não posso deixar de crer na duração mesmo se ela não é um dado imediato da consciência. (Haveria que analisar aqui o alcance, em termos de duração, da consciência que no momento presente tenho do momento «imediatamente passado»; é interessante que Husserl veja nela a célula embrionária da duração e que, pelo contrário, Brouwer a aperceba como a sucessão de dois instantes discretos, assento transcendental da série dos números naturais.) A duração não é tão-pouco simplesmente um conceito do intelecto, uma vez que a experiencio ou julgo experienciá-la. A crença na duração é um efeito da capacidade que temos de acrescentar algo ao que directamente sentimos, pensamos, percepcionamos, lembramos — um efeito, pois, do que denominamos imaginação, não pode ser outra coisa —, e seja-me permitido referir que (sem pôr a questão nestes termos) Fichte é o único filósofo, tanto quanto sei, a associar crença, imaginação e temporalidade.
Significa isto que os problemas do eu acabam por se reconduzir à crença na sua permanência, é este enigma que seria preciso resolver. E seria então também preciso deslindar o enigma prévio da crença em geral. Fred Dretske seria uma boa referência nesta matéria (Knowledge and the Flow of Information, 1981, Explaining Behaviour, 1988). Limito-me a assinalar que um dos pontos fortes da doutrina de Dretske é mostrar que as nossas crenças são em geral, e quase principialmente, verdadeiras (o problema da crença reside então na crença errada) e que a verdade das crenças se radica no valor que apresentam em termos de sobrevivência. O fundamento das crenças reside na história e na selecção natural. Mas elas permanecem crenças, isto é, teses que não é possível provar —por exemplo, a minha crença na compenetração de crença, temporalidade e imaginação, ou também a crença (nela comunga uma quase communis opinio actual) em que o eu seria uma propriedade «superveniente», «emergindo» da auto-organização do sistema hipercomplexo que o cérebro é. (As duas crenças não são incompatíveis.)
E também não é possível provar a crença na duração. Mas é-nos dado vislumbrar a sua utilidade, que começa por estar virada para a frente. O eu gloriosamente inalterável, igual a si mesmo através do tempo, incapaz de representar a sua própria morte, é um baluarte contra a morte: talvez a crença no eu estruture basicamente a decisão de continuar a agir, apesar da morte. (Se a verdade do homem consistisse no ser-para-a-morte heideggeriano, é duvidoso que fizesse fosse o que fosse; e é terrorismo intelectual pretender que não-ser-para-a-morte significa «inautenticidade».) Independentemente da morte —ou não completamente, estamos a sugerir que a crença na imortalidade do eu é condição da própria acção —, sem crer na duração, não se vê como poderíamos ter confiança nos efeitos temporais das nossas acções (o conceito de confiança vai doravante guiar-nos). Se o futuro nos aparecesse como descontínuo, zenoniano, não estaríamos seguros de que eles continuariam a produzir-se após o primeiro instante da sua realização. E sem uma continuidade entre a acção e o seu efeito, a qual supõe também a duração, no caso de os efeitos desejados parecerem produzir-se não saberia se eles são a consequência da minha acção. Por isso talvez, Fichte notou que o esquema do fazer pressupõe a duração — essa mesma duração que é efeito da imaginação. A confiança na efectividade futura da acção requer igualmente uma confiança na sua efectividade passada, ou seja, a inscrição desta acção que empreendo numa tradição de actos meus. É o capital das acções passadas que, directamente ou por analogia, justifica «indutivamente» a crença nos resultados da acção futura.
Ora, uma vez que sou um fazer, a falta de confiança na acção reverte em falta de confiança em mim. E confiança em mim significa estima por si — começa a aparecer que a adesão a si se funda na autoestima (não se trata porém da mesma coisa, vamos ainda vê-lo). Reunindo o que dissemos, a auto-estima articula-se com a crença na efectividade da acção, a qual pressupõe a crença na duração. Por seu turno, requer-se a crença na duração para se crer na permanência do eu, que é a única pedra de toque da identidade pessoal. E, de parceria com os outros dados que apurámos, a identidade pessoal é vivida como o pólo estável da experiência.
Mas sabemos também que a duração é uma crença — e toda a crença revela um fundo alucinatório: crer é emprestar realidade ao que pode não ser real. Por isso a adesão e a estima por si (não as distinguimos por enquanto), em relação directa com a duração, são eminentemente frágeis. Por isso também não acreditamos nunca completamente nos efeitos da nossa acção. Binswanger compreendeu-o bem, ao descrever as doenças do eu como malformações da relação à duração, não explicando embora por que tem de ser assim. Antes de o ilustrarmos pela evocação breve de um poeta do eu, Sá de Miranda, e de indicarmos uma última questão —o que pode ser uma boa evidência, não alucinatória, do eu —, é também o que explica uma pintura chinesa sobre seda que possuo. Ela deve ilustrar uma história que não conheço (poderia tratar-se de uma versão oriental do mito de Sísifo), mas serve bem para a nossa. O pintor pinta um chapéu de sol, agora, no presente. Pintou já outros — são bonitos, vemo-los viravoltear contra o céu —, que deixou a secar, encostados às estacas no chão, tal deveria bastar para os segurar. São vários, e isso sugere uma continuidade, um passado, não se trata apenas de cada chapéu de sol que pintou antes, depois do precedente. Mas o vento leva-os a todos, e aquilo que o infeliz pintor olha sem compreender — é bem o que exprime o seu olhar— é que a crença na estabilidade do passado é ilusória, o passado são um chapéu de sol e mais um e mais outro, que nunca consegue agarrar juntos. E ao futuro que haverá, acontecerá a mesma coisa: um chapéu de sol está à espera de ser pintado, fechado — o futuro é ignoto —, mas também uma promessa de cor. A infelicidade do pintor de chapéus de sol está em que a duração lhe escapa dos dedos quando julga capturá-la: como poderia então experienciar qualquer estima por si?