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Conche (2007) – Montaigne, filosofia como aprendizado da sabedoria

CONCHE, Marcel. Montaigne ou La conscience heureuse. Paris: Presses universitaires de France, 2007.

Crítica aos fundamentos da elaboração filosófica sistemática e a distinção entre certeza de fato e de direito

A recusa de Montaigne em conferir aos Ensaios a forma tradicional de um livro de filosofia decorre do questionamento radical dos princípios que regem a elaboração filosófica, uma vez que o filósofo, na sua busca pela verdade, defronta-se com a limitação discursiva da inteligência que o obriga a alcançar a verdade apenas de modo fragmentado, unificando verdades estabelecidas em um sistema que pressupõe a permanência dessas verdades mesmo quando o olhar se desvia delas; contudo, um sistema compreende verdades atualmente evidentes e outras que já não o são, exigindo que a certeza de fato se transborde em certeza de direito, ou seja, que se esteja sempre fundado a estar certo, pois se o filósofo dispusesse apenas de certezas factuais e momentâneas, nada garantiria que o que parece verdadeiro o seja efetivamente na ausência da atenção atual, impossibilitando assim a construção legítima de um sistema do saber.

Os princípios de validação do saber sistemático carecem de valor para Montaigne, pois ele rejeita a possibilidade de confirmar em direito as certezas de fato, reconhecendo que, embora tenhamos certezas e acreditemos estar fundados nelas, essa própria imediatidade é enganosa, visto que verdades anteriormente atingidas revelaram-se incompatíveis entre si e, dado que a verdade não pode contradizer a verdade, conclui-se que existem evidências enganosas sem que haja um critério definitivo para discernir as verdadeiras das falsas; a validação do juízo torna-se um problema circular, pois julgar que o próprio julgamento é bom pressupõe a bondade desse mesmo julgamento, reduzindo todas as convicções a certezas de fato sobre as quais convém suspender o juízo, levando à conclusão de que se deve entrar em desconfiança perpétua do próprio julgamento e que a intensidade subjetiva da convicção é a coisa mais enganosa do mundo.

A consequência da impossibilidade de substituir o fato pelo direito é a derrocada da filosofia entendida como ciência e sistema de verdades, pois se as verdades se esgotam na consciência que delas se toma, elas se revelam ilusórias, significando que ao pensar conhecer o verdadeiro e atingir o ser, o sujeito alcança apenas a si mesmo; para Montaigne, qualquer verdade analisada acaba por se resolver em uma aparência para alguém, de modo que aquele que vê não pode afirmar a existência autônoma do objeto, mas apenas o ato de sua própria visão, implicando que o filósofo, ao pretender falar das coisas e da natureza, jamais faz outra coisa senão falar de si mesmo e da sua própria natureza, ainda que frequentemente não tenha consciência disso.

A filosofia como tomada de consciência de si e a pintura da passagem

A filosofia torna-se consciente de si mesma em Montaigne, deixando de se apresentar como reflexo do ser para se assumir como reflexo de Montaigne e de sua visão do ser, de modo que ele não fala de tudo senão para expressar seus julgamentos e opiniões, entendidos não como dogmas a serem cridos, mas como a explicitação de suas crenças atuais; ao declarar que estes são seus humores e opiniões e que os dá pelo que estão em sua crença e não pelo que devem ser cridos, ele utiliza o termo opinião no sentido ativo de julgar, fazendo-se conhecer ao deixar-se surpreender no ato de julgar, sem entregar juízos como resultados mortos de reflexões passadas, mas julgando e refletindo no aqui e agora, pronto para alterar sua visão se um novo aprendizado o transformar.

Os Ensaios constituem a história da vida essencial de seu autor, onde, através de seus julgamentos que são suas verdadeiras ações, ele permite ao leitor participar do movimento ininterrupto de sua vida, sem arrependimentos ou retornos, focado na evidência presente e movente; o projeto não é pintar o ser estático, mas a passagem, não apenas de uma idade a outra, mas de dia a dia, de minuto a minuto, capturando a si mesmo sur le vif e refletindo-se na sua própria maneira de pintar, pois, duvidando permanentemente de apreender a verdade objetiva, a única certeza possível é a apresentação de si mesmo no ato de sua vivência.

A integração do corpo, dos hábitos e a liberdade do julgamento

A natureza do pensamento, a transcendência e a busca infinita

A filosofia não degenera em psicologismo porque a atividade primitiva do eu é concebida como o ato de julgar, uma faculdade que distingue o homem dos animais pela liberdade do pensamento e pela abertura radical à realidade e ao seu além; pensar configura-se como um movimento de autotranscendência em direção a uma verdade que parece tal, e o pensamento de Montaigne é esse esforço vivo para ver e dizer a verdade, embora, por nunca estar seguro de havê-la capturado, ele abandone as verdades percebidas pelo caminho para se ater ao próprio esforço de busca, mantendo suas proposições temperadas por termos que amolecem a temeridade das afirmações, como talvez e de algum modo.

O ceticismo em Montaigne não é um estado paralisante, mas a própria ação do espírito e a condição da vida do pensamento, onde a dúvida e a investigação constante prevalecem sobre a posse e a decisão dogmática; contentar-se com uma verdade encontrada é sinal de fraqueza ou estupidez, pois o espírito generoso jamais se detém, alimentando-se da admiração, da caça e da ambiguidade, de modo que a afirmação obstinada é indício de não inteligência, e a instalação na certeza representa uma infidelidade essencial à vocação do espírito, que é o combate infinito e a contestação motivada, fazendo da filosofia uma pesquisa sem fim nem começo, confundindo-se com a própria vida de uma inteligência.

A liberdade radical, a descontinuidade e a unidade orgânica da obra

A autonomia intelectual e a apropriação de si mesmo

Montaigne caracteriza-se por uma autonomia prodigiosa, não tendo evoluído no sentido de mudança de opinião sob influência externa, mas sim aprofundado a posse de suas próprias produções naturais; o uso que faz dos autores antigos não é para formar suas opiniões, mas para assisti-las e fortificá-las, servindo-se dos outros apenas para partejar a si mesmo, ao contrário de Sócrates que partejava os outros, de modo que as coincidências com o pensamento dos antigos são celebradas apenas como encontros felizes em uma rota que é propriamente sua, definindo o progresso intelectual não como uma mudança de direção, mas como um desdobramento de si e uma perpétua confirmação de sua natureza.

A mudança em Montaigne é inteiramente interna e reside na relação consigo mesmo, onde a liberdade se expressa como uma apropriação da própria natureza, entendendo-se que toda liberdade é naturada, ou seja, possui uma tendência e um estilo próprios que limitam suas escolhas possíveis e configuram uma individualidade; a sabedoria consiste em confirmar essa boa natureza através do exercício constante do julgamento, tornando-o cada vez mais seguro e próprio, de tal forma que filosofar não é aprender uma verdade externa, mas aprender a ser Montaigne, transformando a liberdade que se ignora em natureza que se conhece e aceita.

A educação, a impossibilidade de uma sabedoria universal e o papel do mestre

A formação do sábio não pode basear-se em uma ciência universal do homem, pois as definições de bem viver variam conforme as naturezas individuais, tornando inaplicáveis as receitas dogmáticas de estoicos ou epicuristas para a generalidade dos homens; a sabedoria é um problema que cada um deve resolver por si, encontrando uma medida que lhe convenha, o que redefine o papel do educador não como aquele que introduz a sabedoria de fora, mas como aquele que capacita a alma do discípulo a descobrir sua própria sabedoria através da libertação e do exercício do julgamento, atualmente abafado pela autoridade e pelo hábito de pensar por pensamentos de empréstimo.

O método pedagógico proposto exige o retorno à prática de Sócrates, onde o aluno é incitado a julgar, falar e discernir, colocando tudo à prova e não aceitando nada por simples autoridade, tratando os princípios de Aristóteles ou dos Estoicos como hipóteses a serem examinadas; a filosofia deve começar pela dúvida e pela interrogação, formando um espírito que, em vez de repetir doutrinas mortas, exerça sua faculdade de julgar em todas as ocasiões da vida, criando assim um julgamento que é uma obra inteiramente sua e preparando o indivíduo para encontrar a verdade que sua natureza merece.

A desigualdade natural das almas e os limites da filosofia