Alma em Montaigne

ACS2020

O que ela é, ela não sabe (II, 12, 561), nem mesmo se ela é algo (Crátese e Dicearco pensavam “que não havia nenhuma”, p. 542). A alma não conhece sua própria natureza, nem sua localização, nem sua relação com o corpo, nem sua eventual mortalidade ou imortalidade (p. 517-519 e 542-561). Portanto, não há muito a dizer sobre isso. A palavra “alma” é muito frequente nos Ensaios (567 ocorrências), aliás, em um sentido bastante vago (“pode-se dizer, no limite, que designa uma espécie de eu universalizado e comum”, observa o Dicionário de Michel de Montaigne), mas “o conceito de 'alma' não desempenha, no fim das contas, nenhum papel na investigação de Montaigne” (Marcel Conche, Montaigne e a filosofia). Mesmo “os mais obstinados nessa tão justa e clara persuasão da imortalidade de nossos espíritos, é uma maravilha como se mostraram limitados e impotentes para estabelecê-la por sua força humana” (p. 553). E os Ensaios citam Lucrécio, sobre esse assunto, muito mais frequentemente do que qualquer outro (dezoito citações de De rerum natura apenas nas páginas 542-555; ver o verbete “Materialismo”). Para mostrar o quê? Que a alma não pode existir sem o corpo, do qual é indissociável, nem, portanto, sobreviver a ele… Isso não prova que Montaigne, como indivíduo, não acreditasse na imortalidade da alma ou na ressurreição dos corpos, mas confirma que se trata de fé, não de conhecimento. “Esses são os sonhos de um homem que diz não o que conhece, mas o que deseja”, reconhecia Cícero (Acadêmicos, II, 38, citado por Montaigne, p. 553), o que em inglês se chamaria de wishful thinking (“o mundo se engana facilmente com o que deseja”, II, 37, 777), o que Freud chamou de ilusão… E sem dúvida Montaigne nunca afirmou não ter nenhuma. No entanto, tem-se a impressão, ao ler os Ensaios, que uma eventual sobrevivência da alma, após a morte do corpo ou sua ressurreição (supondo mesmo que isso seja concebível: “essas altas e divinas promessas” são “inimagináveis, indizíveis e incompreensíveis”, II, 12, 518), é o ponto sobre o qual nosso perigordino tem mais dificuldade em ser cristão…