Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza e as leis da matemática”; ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. ArendtVE I O Pensar Introdução
Uma vez que a escolha, como fator decisivo da autoapresentação, tem que ver com as aparências, e uma vez que as aparências têm a dupla função de ocultar algum interior e revelar alguma “superfície” — por exemplo, ocultar o medo e revelar coragem, ou seja, esconder o medo mostrando coragem —, há sempre a possibilidade de que o que aparece possa, desaparecendo, resultar em mera semblância. ArendtVE I O Pensar 5
Assim, há sempre um elemento de semblância em toda aparência: a própria base não aparece. ArendtVE I O Pensar 5
O erro é o preço que pagamos pela verdade, e a semblância é o preço que pagamos pelo prodígio das aparências. ArendtVE I O Pensar 5
Erro e semblância são fenômenos intimamente relacionados, correspondem-se mutuamente. ArendtVE I O Pensar 5
A semblância é inerente em um mundo governado pela dupla lei do aparecer para uma pluralidade de criaturas sensíveis, cada uma delas dotada das faculdades de percepção. ArendtVE I O Pensar 5
A semblância , disse Xenófanes, está “moldada em todas as coisas”, de tal modo que “não há nem haverá nenhum homem que conheça claramente os deuses e tudo sobre o que falo; pois mesmo que alguém tentasse dizer o que aparece em sua realidade total, ele próprio não conseguiria”. ArendtVE I O Pensar 5
O conceito de aparência e, portanto, o de semblância (de Erscheinung e de Schein) nunca desempenharam um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant. ArendtVE I O Pensar 6
E o problema desse ser fictício é que ele nem é o produto de um cérebro doentio, nem um desses “erros do passado” facilmente solucionáveis, mas a semblância inteiramente autêntica da própria atividade de pensar. ArendtVE I O Pensar 7
Pode até sugerir que, se uma dada ciência acidentalmente atingisse seu objetivo, isso absolutamente não interromperia o trabalho dos pesquisadores naquele campo, eles seriam lançados para além de seu objetivo pelo simples momentum da ilusão do progresso infinito, uma espécie de semblância derivada de sua própria atividade. ArendtVE I O Pensar 8
Ademais, a sua própria passividade, o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada, resulta em uma impressionante semblância de estabilidade. ArendtVE I O Pensar 9
Essa semblância produz, então, certas ilusões da introspecção, que, por sua vez, levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades, como também pode governar as paixões da alma — como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma. ArendtVE I O Pensar 9
Demócrito, que compreendia o logos, a palavra, como acompanhamento da ação — da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais, distinguindo-as assim da mera semblância —, por isso mesmo desaconselhava a que se falasse dos maus atos: ao ignorarmos o mal, privando-o de qualquer manifestação na fala, ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra. ArendtVE I O Pensar 17
Assim, quando se trata de Paulo, a ênfase muda inteiramente do fazer para o crer, do homem exterior que vive no mundo das aparências (ele mesmo uma aparência entre aparências, sujeito, portanto, à semblância e à ilusão) para uma interioridade que, por definição, jamais se manifesta inequivocamente e que só pode ser examinada por um Deus que também jamais se mostra de maneira inequívoca. ArendtVE II O Querer 8
Daí não resulta que todas as aparências sejam meras semblâncias. ArendtVE I O Pensar 5
As semblâncias só são possíveis em meio às aparências; elas pressupõem as aparências como o erro pressupõe a verdade. ArendtVE I O Pensar 5
Esse modo não só produz erro — que posso corrigir por uma mudança de posição, aproximando-me do que aparece ou aguçando meus órgãos perceptivos com o auxílio de instrumentos e implementos, ou, ainda, usando minha imaginação para levar em conta outras perspectivas —, mas também dá origem a semblâncias verdadeiras, ou seja, à aparência ilusória que não posso corrigir, como corrijo um erro, já que é causada por minha permanente posição na Terra e que continua inseparavelmente ligada à minha própria existência como uma das aparências terrenas. ArendtVE I O Pensar 5
De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e não autênticas, se poderia falar de semblâncias autênticas e não autênticas. ArendtVE I O Pensar 5
O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar. ArendtVE I O Pensar 5
Os animais também são capazes de produzir semblâncias — um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física —, e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir. ArendtVE I O Pensar 5
Concluir, a partir dessa experiência, que existem “coisas-em-si”, as quais, em sua própria esfera inteligível, são como nós “somos” no mundo das aparências, é uma das falácias metafísicas; ou ainda, uma das semblâncias da razão, cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir, esclarecer e dirimir. ArendtVE I O Pensar 6
A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia; o que — para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como “sem sentido” — parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências. ArendtVE I O Pensar 6
Assim, em nosso contexto, a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou não autênticas, se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários, simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa, ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, ainda que parta do mundo das aparências, tem uma faculdade — a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. ArendtVE I O Pensar 6
Em um mundo de aparências, cheio de erros e semblâncias, a realidade é garantida por esta tríplice comunhão: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, têm em comum o mesmo objeto; membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico; e todos os outros seres sensorialmente dotados, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. ArendtVE I O Pensar 7
À primeira vista, algo muito semelhante parece valer para o cientista moderno, que constantemente destrói semblâncias autênticas sem, contudo, destruir sua própria sensação de realidade. ArendtVE I O Pensar 8
Foi o pensamento que permitiu ao homem penetrar nas aparências e desmascará-las como semblâncias, ainda que autênticas; o raciocínio do senso comum jamais teria ousado contestar de modo tão radical todas as plausibilidades de nosso aparelho sensorial. ArendtVE I O Pensar 8