Arendt (VE) – corpo

As percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito; elas mudam segundo as condições de nosso corpo; doce, amargo, cor, e assim por diante, existem somente nomo, por convenção entre os homens, e não physei, segundo a verdadeira natureza das aparências. ArendtVE I O Pensar Introdução

Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do corpo, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. ArendtVE I O Pensar 1

O cientista também está sujeito às aparências, já que para descobrir o que está por trás da superfície deve abrir o corpo visível e espreitar o seu interior, ou surpreender objetos ocultos com a ajuda de todo tipo de equipamento sofisticado que os possa desnudar das propriedades exteriores pelas quais eles se apresentam aos nossos sentidos naturais. ArendtVE I O Pensar 2

Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e alma. ArendtVE I O Pensar 4

De fato, inclinamo-nos a concordar em que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente, por si mesma; mas, se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores, referimo-nos à vida da alma; a relação interior-exterior, verdadeira para nossos corpos, não é verdadeira para nossas almas, mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização “interna” a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais. ArendtVE I O Pensar 4

Locke apoia-se aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõem-se ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza. ArendtVE I O Pensar 4

Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu “o espírito como o outro lado do corpo”, já que “há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles”. ArendtVE I O Pensar 4

A alma, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do corpo; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele”. ArendtVE I O Pensar 4

O De Anima de Aristóteles está repleto de tantalizadoras referências a fenômenos psíquicos e às suas estritas interconexões com o corpo, em contraste com a relação, ou melhor, a não-relação entre corpo e espírito. ArendtVE I O Pensar 4

Discutindo tais temas de um modo incerto e peculiar, Aristóteles declara: “ parece que não há caso em que a alma possa atuar ou ser atuada sem o corpo; verifiquem-se os exemplos de cólera, coragem, apetite e sensação em geral. . ArendtVE I O Pensar 4

Mas se o espírito é também uma espécie de imaginação , ou não é possível sem a imaginação, ele também não poderá ser sem o corpo”. ArendtVE I O Pensar 4

E, mais adiante, resumindo: “Nada é evidente sobre o espírito e a faculdade teórica, mas ele parece ser um tipo diferente de alma, e só esse tipo pode ser separado , como o eterno é separável do perecível”. ArendtVE I O Pensar 4

E em um dos tratados biológicos, sugere que a alma — sua parte vegetativa, bem como suas partes nutritiva e sensitiva — “veio a ser no embrião, não existindo previamente fora dele, mas o nous entrou na alma vindo de fora, garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do corpo”. ArendtVE I O Pensar 4

A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia — em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública — dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do corpo humano. ArendtVE I O Pensar 4

As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao corpo, mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos, com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizá-los. ArendtVE I O Pensar 4

Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu corpo”. ArendtVE I O Pensar 6

Do ponto de vista do ego pensante, o corpo é apenas um obstáculo. ArendtVE I O Pensar 6

Entre essas características destacavam-se a autossuficiência, ou seja, o fato de que esse ego “não tem necessidade de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”, e, também, a não-mundanidade, isto é, que na autoinspeção, “examinant avec attention ce que j’étais”, seria possível facilmente “feindre que je n’avais aucun corps et qu’il n’y avait aucun monde ni aucun lieu où je fusse” . ArendtVE I O Pensar 7

Por um lado, era tão forte a experiência da própria atividade de pensar, e, por outro, tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu “la terre mouvante” (a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual nos pomos de pé), que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitatio e nenhum cogito me cogitare — nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais — poderia convencê-lo de sua própria realidade, de que ele teria realmente nascido em um deserto, sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas “materiais”; e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas. ArendtVE I O Pensar 7

A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. ArendtVE I O Pensar 7

O objeto dos sentidos externos é chamado ‘corpo’”. ArendtVE I O Pensar 9

A percepção sensível, diz ele, “a visão, que era externa quando o sentido era formado por um corpo sensível, é seguida por uma visão similar interna”, a imagem que o re-presenta. ArendtVE I O Pensar 9

Essa observação extraordinária, totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias — a saber, que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos —, insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão: que somente o corpo do filósofo — isto é, o que o faz aparecer entre as outras aparências — ainda habita a cidade dos homens, como se, pensando, os homens se retirassem do mundo dos vivos. ArendtVE I O Pensar 9

Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo”. ArendtVE I O Pensar 10

O primeiro é que possa estar livre de todo tipo de ocupação, especialmente livre de seu corpo, que sempre exige cuidados e “se interpõe em nosso caminho a cada passo e que provoca confusão, gera problemas e pânico”. ArendtVE I O Pensar 10

Formulando de maneira simples: no alheamento proverbial do filósofo, todo o presente está ausente, porque algo realmente ausente está presente em seu espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo. ArendtVE I O Pensar 10

Tanto a hostilidade do filósofo em relação à política, “os pequenos assuntos humanos”, quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais. ArendtVE I O Pensar 10

Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a alma pode pensar sem o corpo, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao corpo, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais”. ArendtVE I O Pensar 10

A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve-se da seguinte maneira: assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona, isto é, ao cadáver, a alma, daí em diante, está em princípio relacionada com o corpo que vive. ArendtVE I O Pensar 12

Relata-se a maneira como “as lágrimas corriam” enquanto Penélope ouvia, e “seu corpo se ia derretendo como a neve derrete nas altas montanhas, quando ali sopram o Zéfiro, espalhando-a, e quando é derretida pelo Euro, fazendo transbordar os rios. ArendtVE I O Pensar 12

A “terra do pensamento” de Kant — Land des Denkens — pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do corpo; manifesta-se, com todo tipo de distorção, não só para nosso espírito, mas também para os ouvidos do corpo. ArendtVE I O Pensar 12

O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias — que o mundo das aparências nos lembra coisas não-aparentes — pode ser visto como uma espécie de “prova” de que corpo e espírito, pensamento e experiência sensível, visível e invisível se pertencem, são, por assim dizer, “feitos” um para o outro. ArendtVE I O Pensar 12

Se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, o mundo das aparências insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. ArendtVE I O Pensar 12

Porque os seres que não possuem um corpo visível, os seres que têm o maior valor e a importância principal são demonstráveis somente pela fala (logos) e não devem ser apreendidos por qualquer outro meio. ArendtVE I O Pensar 13

O conhecimento e o espírito (nous) apreendem o círculo essencial, isto é, aquilo que todos os círculos têm em comum, algo que “não reside nem nos sons nem nas formas dos corpos, mas na alma”, e tal círculo é claramente “diferente do círculo real”, percebido primeiramente na natureza pelos olhos do corpo, e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal. ArendtVE I O Pensar 13

À verdade do tipo da evidência, construída conforme o princípio das coisas percebidas pelos nossos olhos do corpo, pode-se chegar através da orientação (diagógé) de palavras na dialegesthai, o fio discursivo de pensamento que pode ser silencioso ou falado entre mestre e discípulo, “movendo-se para cima e para baixo”, interrogando sobre “o que é verdadeiro e o que é falso”. ArendtVE I O Pensar 13

E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta). ArendtVE I O Pensar 13

Sem o sopro de vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto. ArendtVE I O Pensar 13

Quanto menos tempo um homem precisasse para cuidar de seu corpo, quanto mais tempo dedicasse à ocupação divina, mais ele se aproximaria do modo de vida dos deuses. ArendtVE I O Pensar 14

De um lado, o espanto admirativo diante do espetáculo em meio a que o homem nasceu e para cuja apreciação ele está tão bem equipado de corpo e espírito. ArendtVE I O Pensar 16

Além disso, como já foi enfatizado, o pensamento implica uma inconsciência do corpo e do eu e põe em seu lugar a experiência da pura atividade, mais gratificante, segundo Aristóteles, do que a satisfação de qualquer outro desejo, já que dependemos de algo ou de alguém para obter todos os outros prazeres. ArendtVE I O Pensar 16

Apenas pelo simples fato de que é um humano…, ele vai precisar dessas coisas que estão implicadas na própria condição de ser humano ” — ter um corpo, viver junto com outros homens etc. ArendtVE I O Pensar 16

A inconsciência do corpo durante a experiência do pensamento, combinada com o simples prazer da atividade, é o que melhor explica não apenas os efeitos sedativos e consoladores que tais linhas de pensamento tiveram sobre os homens da Antiguidade tardia; mas explica também suas teorias curiosamente radicais a respeito do poder do espírito sobre o corpo — teorias claramente refutadas pela experiência comum. ArendtVE I O Pensar 16

E acrescentou: “De qualquer modo, o sentimento de infortúnio pode ser distraído pelo labor do pensamento”, e ao menos indica o que de fato ocorre, isto é, o temor pelo corpo desaparece enquanto dura o “labor do pensamento”, não porque os conteúdos do pensamento possam vencer o medo, mas porque a atividade de pensar torna-nos inconscientes do corpo, e pode até superar as sensações de pequenos desconfortos. ArendtVE I O Pensar 16

A força excessiva dessa experiência pode elucidar o estranho fato histórico de que a antiga dicotomia entre corpo e espírito, acentuadamente hostil com relação ao corpo, possa ter sido adotada, quase inalterada, pelo credo cristão. ArendtVE I O Pensar 16

Afinal de contas, este credo baseava-se no dogma da encarnação (o Verbo feito Carne) e na crença na ressurreição do corpo, ou seja, doutrinas que deveriam ter representado o fim da dicotomia corpo-espírito e de seus enigmas insolúveis. ArendtVE I O Pensar 16

E esse caráter aporético do pensamento socrático significa que o assombro admirativo diante de atos justos ou corajosos vistos pelos olhos do corpo dá origem a perguntas do tipo “o que é a coragem?” ou “o que é a justiça?”. ArendtVE I O Pensar 16

Caso ele possa representar para nós a real atividade de pensar, então não terá deixado atrás de si nenhum corpo doutrinário. ArendtVE I O Pensar 17

A casa em si e por si, auto kath’auto, que nos faz usar a palavra para todos esses edifícios particulares e muito diferentes entre si, nunca é vista, seja pelos olhos do corpo, seja pelos olhos do espírito. ArendtVE I O Pensar 17

Como tal, o tempo é o maior inimigo do ego pensante, porque o tempo — pela encarnação do espírito em um corpo cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados — regula e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo, sem nada fazer. ArendtVE I O Pensar 20

Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. ArendtVE II O Querer Introdução

As faculdades humanas não são, ao contrário das condições e circunstâncias da vida humana, contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra? Se não fosse esse o caso, como poderíamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados? Há, decerto, uma “história das ideias”, e seria bem fácil traçar a história da ideia de Liberdade: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político — aquele do cidadão livre e não o do escravo — e de uma circunstância física factual — aquela de um homem saudável, cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito — e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover seus membros. ArendtVE II O Querer Introdução

Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. ArendtVE II O Querer 1

Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. ArendtVE II O Querer 1

Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pós-antigos sobre a localização da liberdade humana no “eu-quero”, claro está que no esquema do pensamento pré-cristão a liberdade localizava-se no “eu-posso”; liberdade era um estado objetivo do corpo, não um dado da consciência ou do espírito. ArendtVE II O Querer 1

Liberdade significava poder fazer o que se quer, sem ser forçado pela ordem de um senhor, nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo, nem por algum defeito somático, tal como má saúde ou paralisia de um dos membros. ArendtVE II O Querer 1

Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições, religiosas ou seculares, é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo, de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que o foram para chegar a uma avaliação razoável do corpo. ArendtVE II O Querer 5

Mas a hostilidade dos filósofos contra o corpo é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão. ArendtVE II O Querer 5

O corpo, como enfatiza corretamente Platão, sempre “quer ser cuidado”; e até mesmo nas melhores condições — saúde e prazer, por um lado, e uma comunidade equilibrada, por outro —, ele interromperá, com suas repetidas exigências, as atividades do ego pensante; nos termos da alegoria da Caverna, o corpo forçará o filósofo a retornar do céu das ideias para a Caverna dos assuntos humanos (É comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão em relação à carne. ArendtVE II O Querer 5

Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. ArendtVE II O Querer 6

Hegel encontra a solução para esse problema, isto é, descobre como transformar os círculos em uma linha progressiva, admitindo que existe algo por trás de todos os membros individuais da espécie humana, e que este algo chamado Humanidade é na verdade uma espécie de alguém, que ele chamou de “Espírito do Mundo”, para ele não uma simples coisa-pensamento, mas uma presença corporificada (encarnada) na Humanidade, assim como o espírito de um homem está encarnado em seu corpo. ArendtVE II O Querer 6

As ideias são coisas-pensamento, artefatos do espírito que pressupõem a identidade de um artífice; e supor que exista uma história das faculdades do espírito distintas dos produtos do espírito parece o mesmo que supor que o corpo humano, que é um corpo que fabrica e usa ferramentas — sendo a ferramenta primordial a mão humana —, está tão sujeito a mudanças produzidas pela invenção de novas ferramentas e utensílios quanto o ambiente que nossas mãos não param de remodelar. ArendtVE II O Querer 7

É o espírito que determina a existência tanto dos objetos de uso quanto das coisas-pensamento; e assim como o espírito daquele que faz objetos de uso é um espírito de ferramenteiro — isto é, o espírito de um corpo dotado de mãos —, também o espírito que origina pensamentos e os reifica em coisas-pensamento ou ideias é o espírito de uma criatura dotada de um cérebro humano e de potência cerebral. ArendtVE II O Querer 7

Todas estas têm natureza reflexiva — maior, como veremos, no caso das atividades do ego volitivo — e, contudo, jamais poderiam funcionar bem sem a ferramenta imutável da potência cerebral, o mais precioso talento de que o corpo dotou o animal humano. ArendtVE II O Querer 7

Em outras palavras, o que muda através dos séculos é o espírito humano; e, embora essas mudanças sejam muito acentuadas — tanto que podemos datar os produtos de acordo com o estilo e a origem nacional com grande precisão —, elas também se limitam rigorosamente pela natureza imutável dos instrumentos de que o corpo humano é dotado. ArendtVE II O Querer 7

Realiza-se por um imperativo que não diz simplesmente “tu deves” — como no caso em que o espírito fala ao corpo, conforme colocou Agostinho mais tarde, e o corpo imediata e, por assim dizer, impensadamente obedece —, mas diz também “tu deves querer”, o que já implica que, seja o que for que eu acabe fazendo de fato, eu posso responder: quero ou não quero. ArendtVE II O Querer 8

Vimos que, do ponto de vista do ego pensante, era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo. ArendtVE II O Querer 8

Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao corpo que encontramos em Paulo, uma hostilidade que, além disso, sem falar nos preconceitos contra a carne, surge da própria essência da Vontade. ArendtVE II O Querer 8

Finalmente, eles têm em comum um desprezo quase instintivo pelo corpo — este “saco”, nas palavras de Epiteto, que, dia após dia, eu preencho para em seguida esvaziar: “Poderia haver algo mais cansativo?” — e a insistência na distinção entre um eu interno e as “coisas exteriores”. ArendtVE II O Querer 9

Essa faculdade de afastamento do que é exterior em direção a um interior invencível obviamente requer “treino” (gymnazein) e constante discussão, já que não só o homem vive sua vida diária no mundo como ele é, mas também seu eu interior, enquanto vive, localiza-se dentro de algo externo, um corpo que não está em seu poder, mas pertence às “coisas exteriores”. ArendtVE II O Querer 9

Como a maioria dos estoicos, Epiteto reconhecia que a vulnerabilidade do corpo impõe certos limites a essa liberdade interior. ArendtVE II O Querer 9

Incapazes de negar que não são as simples aspirações ou os desejos que nos impedem de ser livres, mas “os grilhões a nós presos na forma de um corpo”, eles tinham que provar, portanto, que os grilhões não eram indestrutíveis. ArendtVE II O Querer 9

Além disso, prossegue, os estoicos pressupõem que “todo homem deseja, por natureza, ser feliz”, sem contudo acreditar em imortalidade, pelo menos não em ressurreição do corpo, isto é, em uma vida futura sem morte, e aí temos uma contradição em termos. ArendtVE II O Querer 9

Não há dúvida de que Agostinho está entre os maiores e mais originais pensadores; não era, porém, um “pensador sistemático”; e é verdade que o corpo principal de sua obra está “repleto de linhas de pensamento que não vão até as últimas consequências e de empreitadas literárias abandonadas” — além de estar cheio de repetições. ArendtVE II O Querer 10

Seguramente “aquele que quer, quer alguma coisa”, e este algo lhe é apresentado “exteriormente, através dos sentidos do corpo, ou vem ao espírito por meios ocultos”; mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade. ArendtVE II O Querer 10

Pois “meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma, movendo seus membros a um mínimo sinal, do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada”. ArendtVE II O Querer 10

“De onde vem tal monstruosidade? E por que motivo? O espírito ordena ao corpo e este imediatamente lhe obedece; o espírito dá uma ordem a si mesmo, ele resiste? ”. (“ ArendtVE II O Querer 10

Unde hoc monstrum, et quare istud? Imperat ainimus corpori, et paretur statin; imperate animus sibi et resistitur?”) O corpo não tem vontade própria e obedece ao espírito, embora ele seja diferente do corpo. ArendtVE II O Querer 10

Segundo, a vontade, comandando o corpo, não passa de um órgão executivo do espírito, e, como tal, não apresenta maiores problemas. ArendtVE II O Querer 10

O corpo obedece ao espírito porque não possui qualquer órgão que torne possível a desobediência. ArendtVE II O Querer 10

A unidade se dá porque todas as três substâncias são “mutuamente predicadas em relação” umas com as outras, sem que com isso percam a existência “em sua própria substância” (não é esse o caso, por exemplo, quando uma cor e um objeto colorido são “mutuamente predicados” na relação que mantêm, pois “a cor não tem substância própria, uma vez que o corpo colorido é uma substância, mas a cor está em uma substância”). ArendtVE II O Querer 10

O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre “iguais”; portanto, não se pode aplicá-la à relação entre o corpo e a alma, entre o homem carnal e o espiritual, embora eles sempre apareçam juntos — porque aqui a alma é obviamente o princípio governante. ArendtVE II O Querer 10

A “atenção do espírito” é necessária para transformar a sensação em percepção; a Vontade que “fixa o sentido na coisa vista, estabelecendo um nexo entre os dois, é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto visível; é espírito, e não corpo”. ArendtVE II O Querer 10

Tão grande é o poder do espírito sobre o seu corpo” que a pura imaginação “pode despertar os órgãos genitais”. ArendtVE II O Querer 10

A grande vantagem da transformação é não só a maior força do Amor na unificação do que está separado — quando a Vontade, ligando “a forma do corpo que se vê e a imagem que aparece ao sentido, isto é, ao sentido da visão , é tão violenta que , esta vontade pode também ser chamada de amor, ou desejo, ou paixão” —, mas vem também do fato de que o amor, ao contrário da vontade e do desejo, não se extingue quando alcança seu objetivo, mas sim possibilita ao espírito “permanecer imóvel para poder desfrutá-lo”. ArendtVE II O Querer 10

Pois Ele não passa disso àquilo , mas vê na totalidade de maneira imutável; de modo que todas as coisas que se erguem temporalmente — o futuro que ainda não é, bem como o presente que já é e o passado que não é mais — são por Ele compreendidas em presença estável e perpétua; tampouco Ele enxerga de modo diverso com os olhos do corpo e com os olhos do espírito, pois Ele não é composto de espírito e corpo: nem de modo diferente o agora, o antes e o depois. ArendtVE II O Querer 10

Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos, ambos “com temperamentos semelhantes do corpo e da alma”. ArendtVE II O Querer 10

Pois “àqueles que não têm fé, a razão correta, como parece a si mesma, mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em corpo quanto em alma”. ArendtVE II O Querer 12

O que desencaminha o leitor é a grande atenção que Scotus dedica a opiniões com as quais nunca se comprometeu, mas cujo exame e investigação constituem o corpo de sua obra. ArendtVE II O Querer 12

Pois assim como um corpo limita-se primeiramente em si mesmo por suas próprias extremidades, antes de ser limitado em relação a qualquer outra coisa também a forma finita é primeiro limitada em si mesma, antes de ser limitada em relação à matéria”. ArendtVE II O Querer 12

E, neste aspecto, o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma: uma criatura dotada de um corpo e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece. ArendtVE II O Querer 12

Scotus fala de um “Corpo glorificado”, não mais dependente de “faculdades” cujas atividades são interrompidas ou pelo factivum, o fazer e o moldar objetos, ou pelos desejos de uma criatura necessitada — que conferem ambos um caráter transitório a toda atividade nesta vida, inclusive as atividades do espírito. ArendtVE II O Querer 12

Esta é, então, minha justificativa para ter omitido de nossas considerações esse corpo de pensamento, o idealismo alemão, no qual a especulação pura no campo da metafísica talvez tenha alcançado seu clímax junto com o fim. ArendtVE II O Querer 13

Nesse sentido, há uma clara distinção entre o júbilo, independente e desligado das necessidades e dos desejos, e o prazer, a ânsia sensual de uma criatura cujo corpo está vivo a ponto de necessitar de algo que não tem. ArendtVE II O Querer 14

Na lembrança — o modo como os mortais vivos pensam sobre seus mortos —, é como se todas as qualidades não essenciais perecessem com o desaparecimento do corpo em que estavam encarnadas. ArendtVE II O Querer 15

Com exceção da tirania, no entanto, em que uma vontade arbitrária governa as vidas de todos, os governos abrem algum espaço de liberdade para a ação, espaço que, na verdade, põe em movimento o corpo constituído de cidadãos. ArendtVE II O Querer 16

Dessa vez é Aquiles, na forma de Turno (“Também aqui podes dizer que um Príamo encontrou seu Aquiles”), quem foge e é morto por Heitor, na forma de Eneias; no centro, “a fonte de toda a desgraça” é de novo uma mulher, só que agora uma noiva (Lavínia), e não uma adúltera; e o fim da guerra não é o triunfo pela vitória e destruição total dos derrotados, mas sim um novo corpo político — “ambas as nações, invictas, entram em um acordo sob as mesmas leis para sempre”. ArendtVE II O Querer 16