====== Schopenhauer (MVR1:361-365) – o presente ====== Antes de tudo temos de reconhecer distintamente que a forma do fenômeno da Vontade, portanto a forma da vida ou da realidade, é, propriamente dizendo, apenas o presente, não o futuro, nem o passado. Estes últimos existem só em conceito, somente em conexão com o conhecimento, na medida em que este segue o princípio de razão. Homem algum viveu no passado e homem algum viverá no futuro. Apenas o presente é a forma de toda vida, mas também sua posse mais segura e que jamais lhe pode ser arrebatada. O presente sempre existe, junto com seu conteúdo. Os dois se mantêm firmes, sem oscilarem, como o arco-íris sobre a queda d’água. Pois à Vontade a vida é certa e segura, e à vida o presente é certo e seguro. Naturalmente, se pensarmos retrospectivamente nos milênios transcorridos, nos milhões de pessoas que neles viveram, perguntaremos: que foram elas? Que se fez delas? Por outro lado, precisamos só evocar o passado de nossas vidas e vividamente renovar suas cenas na fantasia, para de novo perguntar: que foi tudo isso? Que foi feito deles? Como no caso de nossa vida, assim também no caso da vida daqueles muitos milhões. Ou deveríamos supor que o passado alcançou uma nova existência ao receber o selo da morte? Nosso próprio passado, inclusive o dia mais recente e o anterior, é tão-somente um sonho nulo da fantasia; o mesmo é o passado de todos aqueles milhões. Que foi? Que é? A Vontade, cujo espelho é a vida, e o conhecer destituído de volição, que mira claramente a Vontade nesse espelho. Quem ainda não reconheceu isso ou não o quer reconhecer pode acrescentar à questão anterior, sobre o destino das gerações passadas, ainda esta: Por que precisamente ele, o questionador, é tão feliz em possuir este tempo presente precioso e fugidio, único real, enquanto aquelas centenas de gerações de homens, sim, os heróis e os sábios daqueles tempos, naufragaram na noite do passado e assim se tornaram nada, enquanto ele, seu insignificante eu, existe realmente? Ou, de maneira mais sucinta, embora estranho: Por que este agora, seu agora, é precisamente agora, e não foi há muito tempo? Quando questiona tão estranhamente, percebe sua existência e seu tempo como independentes um do outro, e a primeira como lançada no segundo. Em realidade, assume dois agoras, um pertencente ao objeto, outro ao sujeito, e maravilha-se com o acaso feliz de sua coincidência. Em verdade, entretanto, apenas o ponto de contato do objeto, cuja forma é o tempo, com o sujeito, o qual não possui figura alguma do princípio de razão por forma, constitui o presente (como é mostrado no ensaio sobre o princípio de razão). Porém, todo objeto é a Vontade na medida em que esta se tornou representação, e o sujeito é o correlato necessário do objeto. Objetos reais, entretanto, estão apenas no presente. Passado e futuro contêm meros conceitos e fantasmas, por consequência o tempo presente é a forma essencial e inseparável do fenômeno da Vontade. Somente o presente é aquilo que sempre existe e se mantém firme e imóvel, e, empiricamente apreendido, é o mais fugidio de tudo; contudo à mirada metafísica, a ver através de todas as formas da intuição empírica, se apresenta como o único permanente, o Nunc stans dos escolásticos. A fonte e o sustentáculo de seu conteúdo é a Vontade de vida, ou a coisa-em-si – que somos nós. Aquilo que continuamente vem a ser e perece, pois ou já foi ou ainda deve chegar a ser, pertence ao fenômeno enquanto tal, em virtude de suas formas tornarem possível o nascer e o perecer. Em consequência, deve-se pensar: Quid fuit? Quod est. Quid erit? Quod fuit , entendendo-os no sentido estrito do termo, não simile, mas idem. Pois à Vontade a vida é certa, e à vida o presente é certo. Portanto, cada um pode dizer: “Para sempre sou o senhor do presente e ele me acompanhará por toda a eternidade como a minha sombra; por isso não me assombro e pergunto de onde ele veio, e por que ele é, precisamente agora”. – Podemos comparar o tempo a um círculo que gira incessantemente: a metade sempre a descer seria o passado, a outra sempre a subir seria o futuro; porém, acima, o ponto indivisível que toca a tangente seria o presente inextenso. Ora, assim como a tangente não toma parte no movimento circular, tampouco o presente, o ponto de contato do objeto cuja forma é o tempo, toma parte no sujeito, que não possui forma alguma, pois não pertence ao cognoscível, mas é condição de todo cognoscível. Ou: o tempo é como uma torrente irresistível e o presente uma rocha contra a qual ela se quebra, sem no entanto poder arrastar a esta. A Vontade, como coisa-em-si, está tão pouco submetida ao princípio de razão quanto o sujeito do conhecimento, que definitivamente, numa certa perspectiva, é a Vontade mesma ou sua exteriorização. E, assim como à Vontade é certa a vida, seu fenômeno próprio, também é certo o presente, única forma da vida real. Conseguintemente, não temos de investigar o passado anterior à vida, nem o futuro posterior à morte, mas antes temos de conhecer o presente como a única forma na qual a Vontade aparece ; ele não escapará da Vontade, nem esta, a bem dizer, escapará dele. Nesse sentido, quem está satisfeito com a vida como ela é, quem a afirma em todas as suas maneiras, pode confiantemente considerá-la como sem fim e banir o medo da morte como uma ilusão a infundir-lhe o tolo temor de que poderia ser despojado do presente, ludibriando-o sobre um tempo destituído de presente, parecida com aquela ilusão relativa ao espaço, em virtude da qual alguém fantasia a exata posição ocupada por si no globo terrestre como a de cima, e as restantes como a de baixo. Justamente no mesmo sentido, cada um conecta o presente à sua individualidade e acredita que com esta o mesmo desaparece por inteiro; passado e futuro, assim, existiriam sem o presente. Entretanto, assim como no globo terrestre toda posição é a de cima, também a forma de toda vida é o presente, e temer a morte porque ela nos arrebata o presente não é mais sábio do que temer deslizar para baixo no globo terrestre redondo, a partir do topo, onde felizmente nos encontramos agora. A objetivação da Vontade tem como forma essencial o presente, ponto inextenso que corta o tempo infinitamente em duas direções e permanece firme e imóvel, como um meio-dia sempiterno, sem noite refrescante; como o sol real brilha sem interrupção enquanto apenas aparentemente se perde no seio da noite. Portanto, se um homem teme a morte como seu aniquilamento é simplesmente como se pudesse pensar que o sol se lamentaria diante da noite, dizendo: Ai de mim! Vou me perder na noite eterna” . Contrariamente, quem está oprimido pelo peso da vida e ainda assim a deseja e afirma, porém sem aceitar os tormentos dela, em especial sem poder suportar por muito tempo a dura sorte que lhe coube, não pode esperar da morte a libertação, nem pode salvar a si mesmo pelo suicídio. Apenas com aparências falsas lhe seduz o frio e tenebroso Orco, como se fora o porto da paz. A terra passa do dia à noite, o indivíduo morre; mas o sol brilha sem interrupção, eterno meio-dia. À Vontade de vida a vida é certa: a forma da vida é o presente sem fim. É indiferente como os indivíduos, fenômenos da Ideia, parecidos a sonhos fugidios, nascem e perecem no tempo. – Portanto, o suicídio já se nos apresenta aqui como um ato inútil e, por conseguinte, tolo. Quando tivermos avançado ainda mais em nossa consideração, ele aparecerá numa luz menos favorável ainda.