====== Merleau-Ponty (FP) – campo visual ====== (MPPF) Um **campo visual** não é feito de visões locais. Intro I Ora, a experiência não oferece nada de semelhante e nós nunca compreenderemos, a partir do mundo, o que é um **campo visual**. Intro I Não é fácil descrever a região que rodeia o **campo visual**, mas é certo que ela não é nem negra nem cinza. Intro I O **campo visual** é este meio singular no qual as noções contraditórias se entrecruzam porque os objetos — as retas de Müller-Lyer — não estão postos ali no terreno do ser, em que uma comparação seria possível, mas são apreendidos cada um em seu contexto particular, como se não pertencessem ao mesmo universo. Intro I Os limites do **campo visual** não são eles mesmos variáveis, e há um momento em que o objeto que se aproxima começa absolutamente a ser visto, simplesmente nós não o “notamos”. Intro I A mesma conclusão não se aplicaria aos três primeiros exemplos que citamos? Se a atenção, se uma ordem mais precisa, se o repouso, se o exercício prolongado finalmente restabelecem percepções conformes à lei de constância, isso não prova seu valor geral, pois, nos exemplos citados, a primeira aparência tinha um caráter sensorial do mesmo modo que os resultados obtidos finalmente, e a questão é saber se a percepção atenta, a concentração do sujeito em um ponto do **campo visual** — por exemplo, a “percepção analítica” das duas linhas principais na ilusão de Müller-Lyer —, em lugar de revelar a “sensação normal”, não substituem o fenômeno original por uma montagem excepcional. Intro I Mais geralmente, os objetos reais que não fazem parte de nosso **campo visual** só nos podem estar presentes por imagens, e é por isso que eles são apenas “possibilidades permanentes de sensações”. Intro II Mais geralmente, ele é cego ao modo de existência e de coexistência dos objetos percebidos, à vida que atravessa o **campo visual** e liga secretamente suas partes. Intro III Quando tenho a intenção de olhar para a esquerda, este movimento do olhar traz nele, como sua tradução natural, uma oscilação do **campo visual**: os objetos permanecem no seu lugar, mas depois de terem vibrado por um instante. Intro III Foi justamente a Gestalttheorie que nos fez tomar consciência dessas tensões que, como linhas de força, atravessam o **campo visual** e o sistema corpo próprio/mundo, e que os animam com uma vida surda e mágica, impondo aqui e ali torções, contrações, dilatações. Intro III Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do **campo visual** e poder fixá-lo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação, fixando-o. Intro IV Particularmente, o objeto só é objeto se pode distanciar-se e, no limite, desaparecer de meu **campo visual**. Intro II O corpo é apenas um elemento no sistema do sujeito e de seu mundo, e a tarefa obtém dele os movimentos necessários por um tipo de atração à distância, assim como as forças fenomenais que operam em meu **campo visual** obtêm de mim, sem cálculo, as reações motoras que estabelecerão o melhor equilíbrio entre elas, ou assim como os usos de nosso círculo, a constelação de nossos ouvintes imediatamente obtêm de nós as falas, as atitudes, o tom que lhes convêm, não porque procuremos agradar ou disfarçar nossos pensamentos, mas porque literalmente somos aquilo que os outros pensam de nós e aquilo que nosso mundo é. Intro III O campo prático que falta a Schneider não é outro senão o **campo visual**. Intro III Mas como esse tipo de consciência é apenas a sublimação da visão sensível, como a cada momento ele se esquematiza nas dimensões do **campo visual**, sobrecarregando-as, é certo, com um sentido novo, compreende-se que essa função geral tenha suas raízes psicológicas. Intro III Para poder imitar os gestos de alguém que está diante de mim, não é necessário que eu saiba expressamente que “a mão que aparece à direita de meu **campo visual** para meu parceiro é mão esquerda”. Intro III Quando movo os olhos, levo em conta seu movimento sem tomar consciência expressa dele, e compreendo através dele que a desordem do **campo visual** é apenas aparente. Intro V O distúrbio diz respeito “à maneira pela qual as cores se agrupam para o observador, à maneira pela qual o **campo visual** se articula do ponto de vista das cores”. Intro VI O paciente de Stratton, cujo **campo visual** foi objetivamente invertido, primeiramente vê os objetos de cabeça para baixo; no terceiro dia da experiência, quando os objetos começam a readquirir seu aprumo, ele é invadido “pela estranha impressão de olhar o fogo com o dorso de sua cabeça”. II VI Isso ocorre porque há uma equivalência imediata entre a orientação do **campo visual** e a consciência do corpo próprio enquanto potência desse campo, de tal forma que a subversão experimental pode traduzir-se indiferentemente pela inversão dos objetos fenomenais ou por uma redistribuição das funções sensoriais no corpo. II VI O gesto de levantar o braço, que se pode tomar como indicador da perturbação motora, é diferentemente modificado em sua amplitude e em sua direção por um **campo visual** vermelho, amarelo, azul ou verde. II I A cor do **campo visual** torna as reações do sujeito mais ou menos exatas, quer se trate de executar um movimento de uma amplitude dada ou de mostrar com o dedo um comprimento determinado. II I Com um **campo visual** verde, a apreciação é exata; com um **campo visual** vermelho, ela é inexata por excesso. II I Dizer que tenho um **campo visual** é dizer que, por posição, tenho acesso e abertura a um sistema de seres, os seres visuais, que eles estão à disposição de meu olhar em virtude de uma espécie de contrato primordial e por um dom da natureza, sem nenhum esforço de minha parte; é dizer portanto que a visão é pré-pessoal; e é dizer ao mesmo tempo que ela é sempre limitada, que existe sempre em torno de minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis. II I Entendamos que o campo tátil nunca tem a amplitude do **campo visual**, nunca o objeto tátil está presente por inteiro em cada uma de suas partes assim como o objeto visual, e em suma que tocar não é ver. II I Fixo nelas o meu olhar, quer dizer, limito meu **campo visual**. II I Ela não era nenhuma qualidade definida, e fiz a qualidade manifestar-se fixando meus olhos em uma porção do **campo visual**: agora e apenas agora me encontrei em presença de um certo quale em que meu olhar se afunda. II I Nessa atitude, ao mesmo tempo em que o mundo se pulveriza em qualidades sensíveis, a unidade natural do sujeito perceptivo é rompida e chego a ignorar-me enquanto sujeito de um **campo visual**. II I Enfim, o movimento dos objetos visíveis não é o simples deslocamento das manchas de cor que lhes correspondem no **campo visual**. II I Diremos então que a diplopia se produz porque nossos olhos não convergem para o objeto e porque em nossas duas retinas se formam imagens não-simétricas? Diremos que as duas imagens se fundem porque a fixação as reconduz a pontos homólogos das duas retinas? Mas a divergência e a convergência dos olhos são a causa ou o efeito da diplopia e da visão normal? Nos cegos de nascença operados da catarata não se poderia dizer, no período que se segue à operação, se é a incoordenação dos olhos que impede a visão ou se é a confusão do **campo visual** que favorece a incoordenação — se eles não veem por não fixar ou se não fixam por não ter algo para ver. II I A palavra “duro” suscita uma espécie de rigidez das costas e do pescoço, e é secundariamente que ela se projeta no **campo visual** ou auditivo e adquire sua figura de signo ou de vocábulo. II I Quer se trate de perceber palavras ou, mais geralmente, objetos, “há uma certa atitude corporal, um modo específico de tensão dinâmica que é necessária para estruturar a imagem; o homem enquanto totalidade dinâmica deve enformar-se a si mesmo para traçar uma figura em seu **campo visual** enquanto parte do organismo psicofísico”. II I O “alto” do **campo visual**, em que primeiramente as pernas aparecem, tendo sido frequentemente identificado com aquilo que para o tato é o “baixo”, em breve o sujeito não precisa mais da mediação de um movimento controlado para passar de um sistema ao outro, suas pernas começam a residir naquilo que ele denominava o “alto” do **campo visual**, ele não apenas as “vê” ali, mas ainda as “sente” ali, e finalmente “aquilo que antigamente tinha sido o ‘alto’ do **campo visual** começa a dar uma impressão muito semelhante àquela que pertencia ao baixo e vice-versa”. II II No momento em que o corpo tátil se reúne ao corpo visual, a região do **campo visual** em que apareciam os pés do sujeito deixa de definir-se como “o alto”. II II Responder-se-á: após a imposição dos óculos, o **campo visual** parece invertido em relação ao campo tátil-corporal ou em relação ao **campo visual** habitual, dos quais dizemos, por definição nominal, que são “direitos”. II II Todavia, nós não estamos nas coisas, ainda só temos campos sensoriais que não são aglomerados de sensações postos diante de nós, ora “a cabeça para o alto ”, ora “a cabeça para baixo ”, mas sistemas de aparências cuja orientação varia no decorrer da experiência, mesmo sem nenhuma mudança na constelação dos estímulos, e trata-se justamente de saber o que se passa quando essas aparências flutuantes repentinamente se ancoram e se situam do ponto de vista do “alto” e do “baixo”, seja no início da experiência, quando o campo tátil-corporal parece “direito” e o **campo visual** “invertido”, seja na sequência, quando o primeiro se inverte enquanto o segundo se apruma, seja enfim ao termo da experiência, quando ambos estão quase “direitos”. II II Digamos que, antes da experiência, a percepção admitia um certo nível espacial em relação ao qual o espetáculo experimental primeiramente parecia oblíquo e que, no decorrer da experiência, esse espetáculo induz um outro nível em relação ao qual o conjunto do **campo visual** pode novamente parecer direito. II II E a vertical só tende a seguir a direção da cabeça se o **campo visual** está vazio e se faltam os “pontos de ancoragem”, por exemplo quando se opera na obscuridade. II II A observação de Wertheimer mostra justamente como o **campo visual** pode impor uma orientação que não é a do corpo. II II As variações do tônus muscular, mesmo com um **campo visual** pleno, modificam a vertical aparente a ponto de o sujeito inclinar a cabeça para situá-la paralelamente a essa vertical desviada. II II No início da experiência, o **campo visual** parece ao mesmo tempo invertido e irreal porque o sujeito não vive nele e não está às voltas com ele. II II Pode-se dizer ainda que ele ocupa menos completamente o meu **campo visual**, sob a condição de nos lembrarmos de que o **campo visual** não é ele mesmo uma área mensurável. II II Dizer que um objeto ocupa pouco lugar no **campo visual** é dizer, em última análise, que ele não apresenta uma configuração suficientemente rica para esgotar minha potência de visão nítida. II II Meu **campo visual** não tem nenhuma capacidade definida e pode conter mais ou menos coisas, justamente, segundo as vejo “de longe” ou “de perto”. II II Mas qual é este gênio perceptivo operando em nosso **campo visual**, que tende sempre ao mais determinado? Não retornamos ao realismo? Consideremos um exemplo. II II Aqui a solicitação não é imperiosa, já que se trata justamente de uma figura ambígua, mas, em um **campo visual** normal, a segregação dos planos e dos contornos é irresistível e, por exemplo, quando passeio em uma avenida, não chego a ver os intervalos entre a árvores como coisas e as próprias árvores como fundo. II II De fato, se projetamos a imagem consecutiva de um movimento em um campo homogêneo, sem nenhum objeto e sem nenhum contorno, o movimento toma posse de todo o espaço, é todo o **campo visual** que se move, como na feira em Casa Mal-Assombrada. II II Errou-se ao dizer que as margens do **campo visual** sempre forneciam um referencial objetivo. II II Mais uma vez, a margem do **campo visual** não é uma linha real. II II Nosso **campo visual** não é recortado em nosso mundo objetivo, ele não é um fragmento com margens precisas como a paisagem que se enquadra na janela. II II Quando se chega aos limites do **campo visual**, não se passa da visão à não-visão: o fonógrafo que toca no cômodo vizinho e que não vejo expressamente ainda conta em meu **campo visual**; reciprocamente, aquilo que vemos é sempre, sob certos aspectos, não visto: é preciso que existam lados escondidos das coisas e coisas “atrás de nós”, se é que deva haver aqui um “diante” das coisas, coisas “diante de nós” e enfim uma percepção. II II As linhas do **campo visual** são um momento necessário da organização do mundo e não um contorno objetivo. II II Mas enfim é verdade todavia que um objeto percorre nosso **campo visual**, que ele ali se desloca e que o movimento não tem nenhum sentido fora desta relação. II II A margem de meu **campo visual** e a alguma distância, eu via uma grande sombra em movimento, viro o olhar para esse lado, o fantasma se encolhe e põe-se em seu lugar: era apenas uma mosca perto de meu olho. II II Da mesma maneira, vimos que, nas diferentes partes do **campo visual** tomadas uma a uma, não se pode discernir a cor própria do objeto e aquela da iluminação, mas que, no conjunto do **campo visual**, por uma espécie de ação recíproca em que cada parte se beneficia da configuração das outras, destaca-se uma iluminação geral que restitui a cada cor local o seu valor “verdadeiro”. II III Há portanto uma “lógica da iluminação”, ou ainda uma “síntese da iluminação”, uma compossibilidade das partes do **campo visual** que se pode explicitar em proposições disjuntivas, por exemplo se o pintor quer justificar seu quadro diante do crítico de arte, mas que em primeiro lugar é vivida como consistência do quadro ou realidade do espetáculo. II III As cores do **campo visual**, vimos há pouco, formam um sistema ordenado em torno de uma dominante que é a iluminação tomada como nível. II III Vejo uma cor de superfície porque tenho um **campo visual** e porque o arranjo do campo conduz meu olhar até ela; percebo uma coisa porque tenho um campo de existência e porque cada fenômeno aparecido polariza em direção a si todo o meu corpo enquanto sistema de potência perceptivas. II III Tenho objetos visuais porque tenho um **campo visual** em que a riqueza e a nitidez estão em razão inversa uma da outra, e porque estas duas exigências, das quais cada uma tomada à parte iria ao infinito, uma vez reunidas determinam no processo perceptivo um certo ponto de maturidade e um máximo. II III É percebido tudo aquilo que faz parte de meu ambiente, e meu ambiente compreende “tudo aquilo cuja existência ou inexistência, cuja natureza ou alteração contam para mim praticamente”: a tempestade que ainda não caiu, da qual eu não saberia nem mesmo enumerar os signos e que nem mesmo prevejo, mas para a qual estou “provido” e preparado; a periferia do **campo visual** que o histérico não apreende expressamente, mas que todavia co-determina seus movimentos e sua orientação; o respeito dos outros homens ou essa amizade fiel que eu nem mesmo percebia mais, mas que estavam ali para mim, já que me deixam em dificuldades quando se retiram. II III É a reflexão que objetiva os pontos de vista ou as perspectivas; quando eu percebo, através de meu ponto de vista, estou no mundo inteiro e não sei nem mesmo os limites de meu **campo visual**. II III Em particular, a visão atual não é limitada àquilo que meu **campo visual** efetivamente me oferece e o cômodo vizinho, a paisagem atrás dessa colina, o interior ou o verso deste objeto não são evocados ou representados. II III Tais são o mundo e o tempo cartesianos, e é verdade que essa concepção do ser é como que inevitável, já que tenho um **campo visual** com objetos circunscritos, um presente sensível, e já que todo “alhures” se dá como um outro aqui, todo passado e todo porvir como um presente antigo ou futuro. II III Parece-me que o mundo se vive a si mesmo fora de mim, assim como as paisagens ausentes continuam a se viver para além de meu **campo visual**, e assim como outrora meu passado se viveu para aquém de meu presente. II III Enquanto tenho funções sensoriais, um **campo visual**, auditivo, tátil, já me comunico com os outros, considerados também como sujeitos psicofísicos. II IV