====== Crítica à razão iluminista ====== (Berlin2013) **DESCARTES ACREDITAVA** que era possível adquirir conhecimento da realidade a partir de fontes //a priori//, por meio do raciocínio dedutivo. Para Hamann, esse é o primeiro e terrível equívoco do pensamento moderno. O único verdadeiro subversor dessa falsa doutrina foi **Hume**, a quem Hamann leu com entusiasmo e concordância. Na verdade, não é exagero dizer que a **Bíblia** e **Hume** são as duas raízes, estranhamente entrelaçadas, de suas ideias. Hume afirmara que o fundamento de nosso conhecimento sobre nós mesmos e o mundo externo é a **crença** — algo para o qual não há razões //a priori//; algo ao qual todos os princípios, teorias e as construções mais coerentes e elaboradas de nossas mentes, práticas ou teóricas, podem, no fim, ser reduzidos. Acreditamos que existem objetos materiais ao nosso redor que se comportam de tal ou qual maneira; acreditamos que somos idênticos a nós mesmos ao longo do tempo. Nas palavras de Hamann: //"Nossa própria existência e a existência de todas as coisas fora de nós devem ser// **acreditadas** //e não podem ser determinadas de outra forma."// E ainda: //"A crença não é produto do intelecto e, portanto, também não pode ser prejudicada por ele: pois a crença tem tão pouco fundamento quanto o gosto ou a visão."// A **crença** nos dá todos os nossos valores — o céu e a terra, a moral e o mundo real. //"Sabem, filósofos, que entre causa e efeito, meios e fins, a conexão não é física, mas// **espiritual, ideal**; //é o vínculo da fé cega."// Não percebemos causas ou necessidades na natureza; **acreditamos** nelas, agimos como se existissem. Pensamos e formulamos nossas ideias com base nessas crenças, mas elas próprias são **hábitos mentais**, formas //de facto// do comportamento humano. Tentar deduzir a estrutura do universo a partir delas é uma tentativa monstruosa de converter nossos hábitos subjetivos — que diferem em diferentes épocas, lugares e indivíduos — em "necessidades" objetivas e imutáveis da natureza. Hamann leu Hume com grande atenção. Hume era, é claro, um descrente, um inimigo da fé cristã, mas, mesmo assim, **Deus falava a verdade através dele**. Ele é um //"Saul entre os profetas"//, uma espécie de Balaão, uma testemunha relutante da verdade, um aliado //apesar de si mesmo//. Hamann traduziu os //Diálogos sobre a Religião Natural// de Hume, obra que admirava profundamente, e via Kant como uma espécie de //"Hume prussiano"// — embora Kant ignorasse o ensinamento de Hume sobre a crença. Enquanto Hume se contenta em afirmar que não podemos saber nem perguntar racionalmente //por que// as coisas são como são, limitando-se a descrever aquilo em que não podemos deixar de acreditar (assim como não podemos deixar de ver, cheirar ou ouvir), Kant tenta erigir esses hábitos empíricos em **categorias**. //"Hume é sempre o meu homem."// Os //Diálogos// são //"cheios de belezas poéticas"// e //"nada perigosos"//. //"Para comer um ovo ou beber um copo d’água, Hume precisa de// **crença**; // mas, se a crença é necessária até para comer ou beber, por que Hume quebra seu próprio princípio ao julgar coisas mais elevadas do que isso?"// Toda sabedoria começa nos sentidos: //"A sabedoria é// **sentimento**, //o sentimento de um pai e de uma criança."// E ainda: //"A existência das menores coisas repousa sobre a// **impressão imediata**, //e não sobre o raciocínio."// A **fé** é a base de nosso conhecimento do mundo externo. Podemos ansiar por outra coisa — dedução lógica, garantias dadas por intuição infalível —, mas Hume está certo: tudo o que temos é uma espécie de **fé animal**. Esse é o grande aríete com o qual Hamann busca destruir o edifício da metafísica e da teologia tradicionais. O princípio de Hume era que **de um fato, nenhum outro fato pode ser deduzido**; que a necessidade é uma relação lógica (isto é, entre símbolos, não entre coisas reais no mundo); e que todos os proponentes de doutrinas que alegam conhecer proposições existenciais não baseadas na experiência — ou inferi-las por métodos de puro pensamento — estão enganando a si mesmos, aos outros, ou a ambos. A isso, Hamann manteve-se fiel por toda a vida: é a base de todo o seu ataque aos métodos e valores do Iluminismo científico. **Não há ideias inatas** no sentido em que os racionalistas (Descartes, Leibniz e os platônicos) falavam delas. Dependemos do metabolismo com a natureza externa: //"Os sentidos são para o intelecto o que o estômago é para os vasos que separam os sucos mais finos e elevados do sangue: os vasos sanguíneos abstraem o que precisam do estômago. nossos corpos nada mais são do que o que vem de nossos estômagos ou dos estômagos de nossos pais. Os// stamina //e// menstrua //de nossa razão são, propriamente, apenas// **revelação** //e// **tradição**." A **tradição** é o acúmulo de crenças passadas; a **revelação** é a aparição de Deus para nós através da natureza ou das Escrituras. Além das implicações metafísicas disso, o ponto constantemente repetido por Hamann é que a **revelação** é o contato direto entre um espírito e outro — Deus e nós mesmos. O que vemos, ouvimos e entendemos é **dado diretamente**. No entanto, não somos meros receptáculos passivos, como Locke ensinara: nossos poderes ativos e criativos são atributos empíricos que diferentes homens ou sociedades possuem em graus e tipos diversos, de modo que nenhuma generalização pode ser garantida por muito tempo. Hamann transforma audaciosamente o ceticismo de Hume em uma **afirmação da crença** — no conhecimento empírico — que é sua própria garantia: o //dado último//, para o qual não faz sentido pedir uma justificativa geral. Dessa forma, Hamann volta as próprias armas empíricas que antes eram usadas contra a teologia e a metafísica dogmáticas **contra a epistemologia racionalista** — cartesiana, leibniziana, kantiana —, assim como seu admirador Kierkegaard as usou contra os hegelianos. A natureza e a observação tornam-se armas contra garantias //a priori// ou quase //a priori// de progresso, axiomas para as ciências naturais ou quaisquer outros esquemas grandiosos, metafisicamente fundamentados, que pretendem abarcar o mundo. O metafísico Fichte tinha razão, desse ponto de vista, ao exclamar que o empirismo era — ou poderia ser — um perigo para Rousseau, a Revolução Francesa e os princípios absolutos que eles invocaram. Hamann está entre os primeiros **reacionários empiricistas** que buscam demolir as construções da razão científica audaciosa por meio de apelos — semelhantes aos de Burke, mas muito mais radicais — à realidade **assimétrica** e **desorganizada**, a realidade revelada a uma visão não distorcida por óculos metafísicos, ou pelo conhecimento prévio da existência de um padrão rígido que se afirma estar tentando encontrar. Pois **não há conhecimento sem crença** — uma crença irracional — em sua base.