====== Conche (2007) – Montaigne, miséria do homem insensato ====== CONCHE, Marcel. Montaigne ou La conscience heureuse. Paris: Presses universitaires de France, 2007. ==== A condição humana entre a bondade natural e a miséria da liberdade ==== * A problemática da felicidade impõe-se pela constatação de que os homens não são felizes, o que suscita a interrogação sobre se a condição humana estaria ontologicamente vetada à beatitude neste mundo, hipótese que Montaigne rejeita peremptoriamente dada a sua convicção na bondade intrínseca da natureza, a qual não teria engendrado criaturas destinadas ao infortúnio; a presunção humana de se imaginar uma exceção desfavorecida na ordem natural é infundada, pois as possibilidades de felicidade são equitativamente distribuídas entre todas as criaturas, sejam aranhas, raposas ou homens, cada qual segundo a sua natureza específica, não havendo hierarquia que coloque o ser humano acima ou abaixo da lei universal que rege a existência sob o céu. * A legitimidade da busca pela felicidade terrena, questionada tanto pela moralidade quanto pela teologia cristã que situa o sentido da vida na conquista do mérito e não na fruição imediata, é reafirmada pela perspectiva de que o sentido da vida reside no próprio ato de viver e no contentamento fundamental de estar vivo; questionar o direito à felicidade equivaleria a questionar o direito da natureza de nos ter concedido a vida, devendo o homem abandonar a vergonha de sua condição natural e aprender a fruir do seu ser através da única via possível, que é a sabedoria. * A infelicidade humana não decorre de uma constituição natural defeituosa ou de um destino trágico, mas do mau uso da liberdade, visto que a satisfação plena é acessível e os desejos naturais e necessários, essencialmente limitados ao sustento básico, são de fácil saciedade, conforme ensinam os estoicos que afirmam bastar uma azeitona por dia para a subsistência; a natureza proveu abundantemente o necessário, e a escassez, as fomes e as dificuldades são imputáveis não a uma madrasta natural, mas ao artifício humano, à exploração desmedida da terra e à falta de solidariedade mútua. * O exemplo dos povos do Brasil, ou do Novo Mundo, ilustra a persistência de uma sabedoria natural onde a ausência de propriedade privada, de hierarquias sociais artificiais e de trabalho forçado permite uma existência feliz e satisfeita, regida ainda pelas leis naturais que limitam o desejo à necessidade biológica; a insatisfação do homem civilizado é, portanto, autoprovocada pela ilimitação dos desejos e pela ignorância de que ele próprio é a causa de seu tormento, devendo reconhecer sua insensatez para retornar a um estado de contentamento divino. ==== O conhecimento de si através do espelho da alteridade e da história ==== * O estudo do homem não visa uma objetividade científica desinteressada, mas um fim pragmático e filosófico voltado para a condução da vida e a arte de ser feliz, onde o conhecimento de si é inseparável do julgamento de valor e se realiza através da observação dos outros, que funcionam como espelhos reveladores do que se deve seguir ou evitar; a introspecção isolada é insuficiente, exigindo que o indivíduo se situe em relação à diversidade das formas de vida humana apresentadas pela história e pelas viagens. * A restrição do horizonte de observação aos concidadãos ou contemporâneos produz uma imagem distorcida e mesquinha da humanidade, sendo necessário confrontar-se com a grandeza de figuras históricas como César, Alexandre, Catão ou Sócrates para aferir a própria medida e reconhecer a mediocridade do século presente; essa ampliação do olhar revela que muito do que se considera essencial à natureza humana é, na verdade, sedimento histórico e costume transformado em natureza, deslocando o problema da sabedoria não para um retorno atávico à selvageria, mas para um uso da liberdade que, dentro da condição atual, se alinhe ao que resta de natural e racional no homem. * O reconhecimento da própria loucura ou insensatez exige um referencial externo de sanidade, pois o insensato é incapaz de perceber sua condição sem o contraste com paradigmas de excelência humana; figuras como Sócrates, Cipião, Catão, Epaminondas e Epicuro funcionam como normas vivas ou homens-medida que demonstraram experimentalmente as fronteiras da capacidade humana de sabedoria e virtude, servindo de bitola para o julgamento da conduta comum. ==== A fenomenologia do insensato: Desejo, Tempo e Morte ==== * O homem insensato caracteriza-se pela recusa em administrar a própria vida através da reflexão e da medicina da sabedoria, deixando que necessidades artificiais e supérfluas, suscitadas pela competição social e pela vaidade, proliferem descontroladamente; diferentemente da natureza, a loucura humana engendra desejos infinitos e insaciáveis, condenando o indivíduo a uma tortura perpétua onde a posse de bens nunca preenche o vazio interior, pois a felicidade é projetada para fora, na dependência de circunstâncias externas, e não reconhecida como um poder intrínseco e um modo de ser. * A vivência temporal do insensato é marcada pela alienação do presente e pela fuga para um futuro imaginário, onde a esperança e a expectativa de uma vida feliz vindoura anulam a única vida real e substancial, que é a atual; segundo Sêneca, a vida do insensato projeta-se inteiramente para o futuro, resultando em uma não coincidência consigo mesmo, uma incapacidade de habitar o momento e uma existência que se escoa na espera, perdendo a realidade em troca de sombras e ventos. * A angústia diante da morte é o corolário inevitável da projeção no futuro, pois os projetos infinitos do insensato pressupõem uma duração ilimitada e a negação da finitude, transformando a morte, que é um evento natural e ontologicamente indissociável da vida, em um acidente absurdo e uma interrupção indevida; a morte não possui realidade presente, sendo um mal apenas na medida em que a imaginação e o discurso a constituem como tal, o que confere ao sujeito o poder de, pela retificação do pensamento, anular o terror que ela inspira. * A sabedoria natural dos camponeses e dos povos não civilizados, que não cogitam a morte senão no instante de morrer, contrasta com a angústia dos que perderam a simplicidade; para estes, a filosofia propõe uma preparação metódica que consiste em familiarizar-se com a ideia da finitude, embora tal método possa, em almas vulgares, agravar o tormento em vez de aliviá-lo, demonstrando que a eficácia da sabedoria depende da qualidade prévia daquele que a pratica. ==== A inautenticidade social, a falsa virtude e a hipocrisia religiosa ==== * A insensatez manifesta-se socialmente através da vaidade, onde o indivíduo abdica de sua autonomia para viver em função do olhar e da aprovação alheia, constituindo um eu relativo e comparativo que sacrifica bens reais como a saúde e o repouso em troca de glória e reputação; a preferência pela fama em detrimento da bondade real revela uma inversão axiológica onde a virtude é instrumentalizada como meio para o prestígio, e não amada por si mesma. * A virtude do insensato é inconstante e circunstancial, frequentemente produto de paixões momentâneas, como a cólera ou a embriaguez no caso da coragem militar, ou do conflito entre vícios opostos, não possuindo a estabilidade e a firmeza que caracterizam a verdadeira sabedoria; para julgar corretamente o valor moral de um homem, é imperativo observá-lo em sua vida privada e cotidiana, longe dos disfarces da vida pública, rastreando a constância de seu caráter. * A religião, que deveria conferir aos cristãos uma superioridade moral sobre os pagãos, é frequentemente pervertida pela insensatez, transformando-se em instrumento para justificar vícios e paixões; o zelo religioso torna-se máscara para a crueldade, a avareza e a ambição, fazendo com que o cristão insensato seja mais miserável que o pagão, pois profana o divino ao alistá-lo a serviço de suas iniquidades e utiliza a fé não para extirpar o mal, mas para alimentá-lo com boa consciência. ==== A perversão do juízo pela imaginação e pelo costume ==== * A incapacidade de julgar corretamente não é uma fatalidade natural, mas uma consequência do desregramento do espírito influenciado pelo amor-próprio, pelas paixões e pela imaginação, a qual, embora possa ser usada para libertar o juízo através da representação da diversidade humana, frequentemente induz ao erro e à credulidade em milagres e prognósticos; os sentidos, por sua vez, entregam apenas a aparência exterior, levando o homem a confundir a hierarquia das grandezas visíveis (riqueza, poder) com a verdadeira hierarquia dos valores invisíveis (sabedoria). * O costume exerce um poder ambivalente e formidável, agindo como uma segunda natureza que integra o histórico ao biológico, mas que também possui a capacidade de perverter o entendimento moral, tornando o vício irreconhecível e a virtude inconcebível; a imersão acrítica em maus costumes cega a razão para as leis naturais, distorcendo a percepção do bem e do mal a ponto de tornar a alienação praticamente irreversível para o insensato, cuja liberdade se encontra aprisionada por suas próprias escolhas habituais. * Diante da constatação de que a insensatez adulta é incorrigível, pois a liberdade viciada pelo costume se tornou natureza, resta ao sábio a postura de espectador, oscilando entre o riso de Demócrito e o choro de Heráclito, mas reconhecendo a inanidade das agitações humanas; a impossibilidade de reforma dos adultos desloca a esperança inteiramente para o campo da educação das crianças, única via possível para a formação de um ser humano capaz de sabedoria.