====== Ética "originária" ====== Uma aproximação sempre interessante é realizar uma incursão etimológica sobre qualquer termo filosófico. O termo ética, por exemplo, é um dos conceitos mais difundidos no linguajar contemporâneo e a compreensão sobre sua significação na Grécia Antiga requer que se reconheça a deterioração sofrida pelo vocábulo. Segundo Lima Vaz (1999, p. 13), o termo //ethike// é um adjetivo que qualifica um tipo de saber, precisamente definido por Aristóteles, seja como "o exercício constante das virtudes morais”, seja como “exercício da investigação e reflexão metódicas sobre o costume (//ethea//)”. Ainda segundo o autor, lentamente o adjetivo se substancia e passa a designar uma das três partes nas quais a Filosofia, na concepção do Estagirita, se divide: Lógica (//logike//), Física (//physike//), Ética (//ethike//). A grafia utilizada no //ethos// também designa duas possibilidades. O //êthos// (com //eta//) designa a "morada do //ser// humano". Neste sentido, podemos entendê-la como a "casa" onde o //ser// humano pode recolher-se diante da difícil existência no plano do real, do mundo. Como nos indica Lima Vaz, “o domínio da //physis// é rompido pela abertura do espaço humano do //ethos// no qual irão inscrever-se os costumes ”. O //éthos// (com //epsilon// inicial), por sua vez, seria a frequência com que o indivíduo é regido pelos ditamos do //êthos//, sobretudo em contraposição aos impulsos do desejo (//orexis//). Neste sentido, embora pareçam “caminhar" para horizontes distintos, as duas grafias se complementam na medida em que investigam toda a realidade das relações humanas não somente identificando e refletindo sobre os costumes que determinam as normas desta relação mas também a constância com que estas diretrizes são seguidas, ou seja, o próprio agir (//praxis//) seria uma expressão da articulação entre o //êthos// como “morada" e o //éthos// como "hábito". A relação entre as noções de //praxis// e //êthos//, por sua vez, deve ser compreendida à luz da ideia de //physis//, sobretudo na cultura grega arcaica, no período entre o século VII e V a.C. Os chamados pensadores pré-socráticos, ou fisiólogos, preocupavam-se quase que exclusivamente com o problema cosmológico. Dentre as noções por eles cunhadas e abundantemente investigadas está a ideia de //physis//. Segundo Gobry (2007, p. 115), "o substantivo //physis// deriva do verbo //phyo//, que quer dizer faço crescer, faço nascer, e, na forma média, //phyomai//: eu broto, eu cresço, eu nasço. A Natureza se manifesta como potência autônoma que possui, comunica e organiza a vida." Para Gonzague Truc (1968), não é estranho que o homem, tão logo tenha começado a especular, questione a natureza que o cercava tão intimamente, indagando sua matéria, origem e ordem. Existem, na história da filosofia, àqueles que afirmam que a filosofia cosmológica foi, na verdade, uma ruptura racional à fantasia mitológica, ou como nos sugere Luc Ferry (2010), uma busca pela “salvação" emancipada das crenças religiosas. Fato é que, diante da necessidade de um novo paradigma, logo se forjaram combinações mais racionais donde reinou a convicção de que havia um elemento primordial na origem da constituição do mundo natural, modernamente traduzido pelo termo //physis//. Jaeger (//apud// Bornheim), no entanto, nos faz um alerta: “Dizer que o Oceano é a gênese de todas as coisas é virtualmente o mesmo que dizer que é a //physis// de todas as coisas”. Neste sentido, a //physis// encontra em si mesma a sua gênese; ela é //arkhé//, sendo ao mesmo tempo causa e efeito, ou seja, princípio de tudo aquilo que vem a ser a totalidade do real. Segundo Gobry (2007), a //physis// pode ser definida como a lei que regra os fenômenos e a ordem do mundo. Para Bornheim (breve23), é um grande equívoco entender a //physis// como o conceito que hoje entendemos como natureza. Esta aproximação do conceito de //physis// no pensamento pré-socrático faz-se necessária para uma justa apreensão da noção de //êthos// na filosofia clássica, sobretudo com Sócrates, Platão e Aristóteles. Embora os grandes mestres da filosofia clássica divirjam em suas especulações acerca do conhecimento, podemos estabelecer um traço comum destas filosofias quando se trata da concepção de //êthos//. O pensamento grego, em sua totalidade, nos legou a ideia de uma //physis// ordenada, em perfeito equilíbrio, cujas gerações espontâneas fortalecem essa harmonia e estabilidade do mundo. Estando //ser// humano inserido na “totalidade do real”, como situar as peculiaridades do agir humano? Como conciliar as inúmeras possibilidades da //praxis// humana à harmonia e estabilidade da //physis//? Para o pensamento clássico, sobretudo com Aristóteles, o termo //êthos//, transposto à //praxis// humana, é uma apropriação da concepção de //physis//, ou seja, a versão humana da //physis//. Para Lima Vaz (breve24), isso se dá pela incompatibilidade de abranger e compreender sob o mesmo conceito de physis tanto o mundo humano quanto o mundo das coisas. Pelo menos uma constatação emerge a partir do que foi posto até aqui: a morada do //ser// humano (//êthos//) assim como a constância com que os indivíduos se deixam guiar por normas de conduta (//éthos//), deve manifestar e ser regida, sempre, por esta lei autônoma e organizadora, imanente à todo //ser// humano e que se resume no conceito de //êthos//. Entrementes, devemos ressaltar que a distinção entre //physis// e //êthos//, é a mesma que vigora entre a necessidade (imanente aos movimentos da //physis//) e a quase-necessidade, que caracteriza a //praxis// humana (LIMA VAZ, 1999). Mas por que “quase-necessidade”? Ora, a dignidade moral, no pensamento clássico, está intimamente relacionado ao desenvolvimento e atualização dos seus talentos particulares (gr. //arete//, virtudes), que devem ser compreendidos como uma mensagem do Universo para a “vida boa”, dessa forma, agir a partir das prerrogativas do Cosmos, ou não, é uma decisão humana e por isso uma “quase-necessidade”.