====== De Libera: sujeito e agente ====== Como o sujeito pensante, ou, se preferirem, o homem //enquanto sujeito e agente// do pensamento, entrou na filosofia? E por quê? Nada, para retomar a expressão de Aristóteles falando das Formas platônicas, indicava, na aparência, o nascimento de um tal “monstro”. Ao contrário, tudo parecia excluí-lo: desde o Estagirita, a palavra “sujeito” designava alguma coisa como um suporte ou um substrato dotado de uma capacidade receptiva; “pensamento”, uma afecção ou um afeto, ou, para falar no rude idioma aristotélico, uma “alteração” de um tipo particular ]; “homem”, um animal político, dotado de logos, o que, como para o Rei de //Ridicule// , 1996, roteiro de R. Waterhouse, M. Fessler e E. Vicaut.]], não autorizava de antemão a fazer dele um //sujeito// no sentido mais corrente do termo. Em suma, na grande loteria da genética conceitual, a associação das noções de “sujeito” e de “agente” para designar o //princípio// do pensamento no homem era tão (im)provável quanto o encontro fortuito sobre a mesa de dissecação de uma máquina de costura e de um guarda-chuva. Porém, o atentado contra o uso aristotélico aconteceu: em um determinado momento da história da filosofia o homem se tornou “sujeito do pensamento”, depois “sujeito pensante”, coletando potencialmente numa passada 438 e 20 100 menções no Google, em 0,57 e 0,44 segundos, respectivamente. Vantagem considerável para uma contradição //in adiecto//. Contudo, não há fumaça sem fogo. E mesmo que Jean Beaufret diga que “o pensamento grego ignora o sujeito”], é preciso crer que ele não lhe era assim tão completamente estranho //de antemão// para que os modernos - supondo-se que o sujeito é, de nascença, “moderno” - tenham julgado bom inventá-lo ou traçar suas premissas. De fato, como escreve Alain Renaut: “O que define intrinsecamente a modernidade é, sem dúvida, a maneira como o ser humano nela é concebido e afirmado como a fonte de suas representações e de seus atos, como seu fundamento (//subjectum//, sujeito), ou ainda como seu autor”]. A custa de que violência cometida contra Aristóteles e o aristotelismo, de que contrassensos, de que desvios ou de que inversões? A pergunta merece ser colocada, e, pelo menos historiograficamente, é a primeira ambição deste livro: pretende-se, se não restituir todas as etapas, pelo menos traçar os aspectos decisivos ou, melhor dizendo, expor as condições históricas mais importantes do //nascimento do sujeito//. À simples leitura do título e do subtítulo já se compreendeu que, mais do que nunca, o trabalho empreendido corre o risco de ser caracterizado como um exercício de “escolástica heideggeriana” enxertado em uma história “praticada na escola de M. Foucault”. A discordância é antiga, assim como a descrição do método empregado para dar corpo a esse duplo e “improvável” apadrinhamento: “multiplicar as polissemias”, “//historicizar//, isto é, substituir o desenrolar dos fatos e das ideias pela linha quebrada e descontínua das epistemes”, “desdobrar as redes conceituais, realçar as rupturas epistemicas, os deslocamentos de sentido, as substituições de estrutura”]. Aceito de bom grado um e outro. Nem este livro, nem os trabalhos de seminário que aqui ou ali ele condensa ou - ao contrário - prolonga teriam existido sem o duplo estímulo recebido de //A Arqueologia do Saber// e de um conjunto de textos de Heidegger que inscrevem a emergência do sujeito naquilo que se convencionou chamar de “a história do Ser”. Não me parece necessário defender mais uma vez, à guisa de abertura, aquilo que chamo de “arqueologia filosófica”: já a defini e pratiquei o suficiente em outro lugar para não ter de voltar a apontar //abstratamente// seus méritos e ao mesmo tempo seus limites ]. Considero mais pertinente dizer que a questão do sujeito é, entre todas, aquela em que o historiador da filosofia não pode evitar de retomar por sua conta os dois tipos de questionamento e de pesquisa colocados problematicamente, senão contraditoriamente, por Heidegger e Foucault. De fato, sem eles não haveria //questão do sujeito//. Que se retome, portanto. //Mas, por que fazer, e em que perspectiva?// O sujeito, garante-nos Heidegger, nasceu em uma certa configuração, em uma certa “época” da história do Ser. E morreu, proclamou Foucault, por volta dos anos 1960, ao mesmo tempo que o Homem, antes de renascer para nós, ao que parece, em uma espécie de retorno do recalcado da/pela metafísica, em forma de “cuidado de si”. Nascimento, morte, renascimento. É essa a //questão//? Não acredito. A //última palavra// da história do sujeito talvez já tenha sido dita. Mas tudo indica que ainda estamos longe de ter pensado a fundo //as primeiras//. Como seria se o dossiê fosse mais complexo, menos linear, mais inextricavelmente misturado que o diagnóstico de Heidegger e de Foucault dá a entender? Se nem as rupturas, nem as pausas, nem as continuidades marcadas por suas respectivas genealogias estivessem de acordo com o estado presente do arquivo? Se o conjunto do processo fosse, em suma, //mal datado//? Se, como de hábito, o lugar, o papel, a contribuição da Idade Média tivessem sido, tanto por um como pelo outro, //mal avaliados//? Seria preciso ao menos voltar ao ponto de partida comumente alegado e se indagar com novos elementos sobre as condições em que o sujeito adquiriu uma forma de predominância filosófica geral que nada permitiria prever durante mais de um milênio; determinar por quais equívocos, quais contágios, quais redistribuições, que se poderia dizer tanto //epocais// com Heidegger quanto epistemológicas com Foucault, ele se impôs precisamente no lugar do homem, como titular insigne da função do eu. E o que se fará aqui. Contudo, tal projeto não poderia ser iniciado sem que o leitor soubesse de antemão o que, das duas posições mencionadas, será efetivamente retomado filosoficamente, historicamente, metodologicamente. Assim, e sem esquecer que, mais ainda que no século XII, “somos anões empoleirados nos ombros de gigantes”, alguns esclarecimentos se impõem.