Adesão a si

(Gil1998)

Percebo-me como uma entidade dotada de realidade e sempre a mesma, que não consigo contudo capturar, quer conceptual quer experiencialmente. A consistência aparente do eu reconduz-se a outros dados, alguns deles inquestionáveis: a consciência de si e de uma interioridade, ser portador de uma experiência e de um querer sentidos como tais — enquanto que um outro dado, o sentimento da identidade pessoal, supõe ainda a crença na permanência pessoal: uma crença que, se é verdade que nos constitui, não deixa por isso de ser frágil. Vimos que estes diversos aspectos da consciência e da experiência se fundem num sentimento de unidade. Em linguagem aristotélica, ela seria a «causa formal» do sentimento de realidade do eu. É dessa unidade que carece a experiência poética de Sá de Miranda — pois carece da experiência dos seus ingredientes. Ora, aquela fusão resulta da reconstrução a que procedemos. Explicará porventura o sentimento da unidade do eu, mas este sentimento não tem peso ontológico capaz de transformar a unidade em realidade. Ou seja, nenhum dos dados experienciais que encontrámos contém a experiência de um eu, salvo, precisamente, a identidade pessoal — que não é um dado experiencial. O eu constitui uma crença (Fichte também o explicou).

Indicámos qual pode ser a sua «causa final», indirectamente, por via da duração: a crença na duração é condição da crença na efectividade da acção e, por isso, também da crença em mim próprio enquanto autor da acção: se creio na duração dos efeitos, creio a fortiori na duração e na realidade da sua sede, também por aí se instaurando o eu.

Será na «causa material», que nos falta determinar, que o eu encontra finalmente a sua prova ontológica. A adesão a si é um dado da nossa experiência. Dissemos que supõe a permanência temporal e se esteia na auto-estima do sujeito — essa estima por si vedada a Sá de Miranda. O registo da estima é afectivo, energético, sem medida comum com a consciência de si intelectual, e não se confunde tão-pouco com os modos activo-passivos da experiência de si, que são sentimentos intelectuais (é um problema em aberto determinar como o sensível se torna abstracto). Também este registo se situa entre a experiência e o imaginário, e é susceptível de ser vivido mais num ou mais no outro dos dois modos — respectivamente, como «estima» ou como «adesão» (e seríamos por aí obrigados a evocar o eu prático de Kant, o ^sujeito livre que quisemos excluir desta reflexão).

A adesão a si enraiza-se na corporalidade (a causa material em sentido estrito) e no pulsional. Não dispomos de uma visão integrada da biologia do eu; mas cabe lembrar —para além do seu substrato neural, a que fizemos já referência — o antropomorfismo do léxico imunológico, assente no reconhecimento, ou não, do self. É uma crença pelo menos verosímil admitir que a adesão a si tem as suas fundações na defesa do organismo contra a doença e a ameaça da morte. A outra raiz mergulha no pulsional, e concerne conjuntamente a emoção e o sentimento, a mente, a linguagem. É o obscuro domínio do impulso sexual, do desejo, da «tendência», do amor. Esta dimensão é essencial à fabricação do eu pois nela nascem propriamente os afec-tos — e portanto a estima, que se enxertará, se assim se pode dizer, na experiência de si. E é por isso também a origem da adesão a si, do amour propre, para dizer com Rousseau, ou das armadilhas do narci-sismo, com a psicanálise. Para Jacques Lacan elas são ontológicas, o eu revelar-se-ia constitutivamente uma miragem alucinatória: o «estádio do espelho» é a metáfora da· obtenção da identidade por uma imagem— quer dizer, pela imaginação. Mas o desejo é também a fonte e o reservatório da energia que é condição da acção.

Na agenda de uma teoria do self, a auto-estima e a adesão a si não podem ser esquecidas como o têm sido, quer pela filosofia passada no seu conjunto, quer pela filosofia contemporânea. Pois esta adesão é bem o teor fenomenológico mais aparente do eu (e o ónus da prova incumbe a quem o contesta!). As suas dimensões são corporais e pulsionais, afectivas, cognitivas (a efectividade causal da acção e as suas condições) e metafísicas (crença, duração), e não há que recear acoplar ciência e metafísica. O seu principal operador é uma imaginação que actua em todos os registos, e já na simples percepção. A imaginação transforma o antes e o depois em duração, o facto biológico da morte em pavor e, também, a pulsão em amor: um pavor e um amor que investem definitivamente e irremediavelmente a experiência de si e do outro. E haveria ainda que tomar em consideração a linguística do eu e a sua história cultural (veja-se Charles Taylor, The sources of the self 1989); esta cultura é também social, política e filosófica (pense-se no princípio da soberania em Bodin, ou no ideal aristotélico da autarkeia que compreende o sujeito, a comunidade política e os fundamentos das ciências).

A nossa reconstrução não inventou entidades, antes as desfez. A adesão é o modo excessivo da estima por si. Mas podemos talvez conceber uma auto-estima sem a alucinação da «egoidade». Se não há uma experiência ontológica do eu, não relevará então de um voluntarismo ineficaz admitir, ainda com Rousseau, um amour de soi sem amour propre. Ele abre para uma evidência da experiência própria sem nada de alucinatório, ou seja, sem essencialismo: uma «via mediana», entre a pura dispersão e o essencialismo, à maneira do budismo [no seu estimulante The embodied mind, Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch (1991) apresentam essa via como uma versão metafísica da concepção «superveniente» e não «absolutista» do eu, que defendem]. Na tradição europeia, deparam-se-nos aqui e ali sugestões nesse sentido, e pelo menos uma filosofia coerente do eu dessubstancializado. Com efeito, extrair-se-iam sem dificuldade das Rêveries du promeneur solitaire (e sobretudo da quinta) figuras homólogas, mas com sinal contrário, de todas aquelas que nos interessaram. A rêverie à maneira de Rousseau é o seu operador — em vez da consciência de si. A relação que o devaneio estabelece com o exterior não consiste na oposição do eu ao não eu — é um entre-deux, que se acompanha pela neutralização da vontade. E o sentimento de existir rousseauiano condensa e ocupa o lugar da pertença e da permanência temporal. O sentimento de existir exprime uma aceitação da vida que é talvez a tonalidade humana da auto-organização biológica. Ele vai a par do eu prático de Kant e de Fichte: aceitar a vida apesar da morte acaba por ser uma decisão. (Talvez se trate de um só registo, na liberdade a auto-organização sublima-se e metamorfoseia-se, até poder dirigir-se contra si mesma.)

A experiência de Rousseau não é tão rara como a alguns parecerá, temo-la todos os dias ao ouvirmos música. Mas a disponibilidade que implica exige algo que é sempre da ordem da conversão.