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Zizek: pandemia e isolamento
quarta-feira 15 de abril de 2020
nossa tradução
"Não me toque", de acordo com João 20:17, é o que Jesus disse a Maria Madalena quando ela o reconheceu após a ressurreição. Como eu, ateu cristão declarado, entendo essas palavras? Primeiro, eu as tomo junto com a resposta de Cristo à pergunta de seu discípulo sobre como saberemos que ele voltou, ressuscitou. Cristo diz que estará lá sempre que houver amor entre seus crentes. Ele estará lá não como uma pessoa para tocar, mas como o vínculo de amor e solidariedade entre as pessoas – então, "não me toque, toque e lide com outras pessoas no espírito do amor".
Hoje, no entanto, em meio à epidemia de coronavírus, somos todos bombardeados precisamente por chamadas não para tocar os outros, mas para nos isolar, para manter uma distância corporal adequada. O que isso significa para a injunção "não me toque"? As mãos não podem alcançar a outra pessoa; é somente desde dentro que podemos nos aproximar – e a janela para “dentro” são nossos olhos. Hoje em dia, quando você conhece alguém próximo a você (ou até mesmo um estranho) e mantém uma distância adequada, um olhar profundo adentro dos olhos do outro pode revelar mais do que um toque íntimo. Em um de seus fragmentos de juventude, Hegel escreveu:
O amado não é/está oposto a nós, ele é/está um com nosso próprio ser; nos vemos apenas nele, mas, novamente, ele não é mais um nós - um enigma, um milagre [ein Wunder], que não podemos compreender.
É crucial não ler essas duas afirmações em oposição, como se o amado fosse parcialmente um "nós", parte de mim mesmo e parcialmente um enigma. Não é precisamente o milagre do amor que você é parte da minha identidade, na medida em que permanece um milagre que eu não consigo compreender, um enigma não apenas para mim, mas também para si mesmo? Para citar outra passagem bem conhecida do jovem Hegel:
O ser humano é esta noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade – uma riqueza interminável de muitas representações, imagens, das quais nenhuma lhe pertence – ou que não estão presentes. Alguém vê essa noite quando olha nos olhos dos seres humanos.
Nenhum coronavírus pode tirar isso de nós. Portanto, há uma esperança de que o distanciamento corporal reforce a intensidade do nosso vínculo com os outros. Só agora, quando tenho que evitar muitos daqueles que são próximos de mim, é que experimento plenamente a presença deles, a importância deles para mim.
Já posso ouvir o riso de um cínico neste momento: OK, talvez tenhamos momentos de proximidade espiritual, mas como isso nos ajudará a lidar com a catástrofe em andamento? Vamos aprender alguma coisa com isso?
Hegel escreveu que a única coisa que podemos aprender da história é que nada aprendemos da história, por isso duvido que a epidemia nos torne mais sábios. A única coisa que fica clara é que o vírus destruirá os próprios alicerces de nossas vidas, causando não apenas uma quantidade imensa de sofrimento, mas também um caos econômico concebivelmente pior do que a Grande Recessão. Não há retorno ao normal, o novo "normal" terá que ser construído sobre as ruínas de nossas vidas antigas, ou nos encontraremos em uma nova barbárie cujos sinais já são claramente discerníveis. Não será suficiente tratar a epidemia como um acidente infeliz, livrar-se de suas consequências e retornar ao suave funcionamento da antiga maneira de fazer as coisas, talvez com alguns ajustes nos nossos planos de saúde. Teremos que levantar a questão-chave: o que há de errado com o nosso sistema que fomos apanhados despreparados pela catástrofe, apesar dos cientistas nos alertarem sobre isso há anos?
Original
“Touch me not,” according to John 20:17, is what Jesus said to Mary Magdalene when she recognized him after his resurrection. How do I, an avowed Christian atheist, understand these words? First, I take them together with Christ’s answer to his disciple’s question as to how we will know that he is returned, resurrected. Christ says he will be there whenever there is love between his believers. He will be there not as a person to touch, but as the bond of love and solidarity between people—so, “do not touch me, touch and deal with other people in the spirit of love.”
Today, however, in the midst of the coronavirus epidemic, we are all bombarded precisely by calls not to touch others but to isolate ourselves, to maintain a proper corporeal distance. What does this mean for the injunction “touch me not?” Hands cannot reach the other person; it is only from within that we can approach one another—and the window onto “within” is our eyes. These days, when you meet someone close to you (or even a stranger) and maintain a proper distance, a deep look into the other’s eyes can disclose more than an intimate touch. In one of his youthful fragments, Hegel wrote:
The beloved is not opposed to us, he is one with our own being; we see us only in him, but then again he is not a we anymore—a riddle, a miracle [ein Wunder], one that we cannot grasp.
It is crucial not to read these two claims as opposed, as if the beloved is partially a “we,” part of myself, and partially a riddle. Is not the miracle of love that you are part of my identity precisely insofar as you remain a miracle that I cannot grasp, a riddle not only for me but also for yourself? To quote another well-known passage from young Hegel:
The human being is this night, this empty nothing, that contains everything in its simplicity—an unending wealth of many representations, images, of which none belongs to him—or which are not present. One catches sight of this night when one looks human beings in the eye.
No coronavirus can take this from us. So there is a hope that corporeal distancing will even strengthen the intensity of our link with others. It is only now, when I have to avoid many of those who are close to me, that I fully experience their presence, their importance to me.
I can already hear a cynic’s laughter at this point: OK, maybe we will get such moments of spiritual proximity, but how will this help us to deal with the ongoing catastrophe? Will we learn anything from it?
Hegel wrote that the only thing we can learn from history is that we learn nothing from history, so I doubt the epidemic will make us any wiser. The only thing that is clear is that the virus will shatter the very foundations of our lives, causing not only an immense amount of suffering but also economic havoc conceivably worse than the Great Recession. There is no return to normal, the new “normal” will have to be constructed on the ruins of our old lives, or we will find ourselves in a new barbarism whose signs are already clearly discernible. It will not be enough to treat the epidemic as an unfortunate accident, to get rid of its consequences and return to the smooth functioning of the old way of doing things, with perhaps some adjustments to our healthcare arrangements. We will have to raise the key question: What is wrong with our system that we were caught unprepared by the catastrophe despite scientists warning us about it for years?
[Excerto de ZIZEK, Slavoj. PANDEMIC!: COVID-19 Shakes the World. New York: OR Books, 2020]
Ver online : PANDEMIC!: COVID-19 Shakes the World