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Zizek (LL): o Outro de Lacan aprofunda o "a-gente" de Heidegger
segunda-feira 22 de junho de 2020
AS NOVELAS MEXICANAS SÃO GRAVADAS num ritmo tão frenético (um episódio de 25 minutos por dia, todos os dias) que os atores sequer recebem o texto para aprender suas falas de antemão; usam minúsculos receptores em seus ouvidos que lhes dizem o que fazer e aprendem a representar o que ouvem (“Agora lhe dê um tapa e diga que o odeia! Depois o abrace! …”). Esse procedimento nos dá uma imagem do que, segundo a percepção comum, Lacan quer dizer com “o grande Outro”. A ordem simbólica, a constituição não escrita da sociedade, é a segunda natureza de todo ser falante: ela está aqui, dirigindo e controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas permanece essencialmente impenetrável − nunca posso pô-la diante de mim e segurá-la. É como se nós, sujeitos de linguagem, falássemos e interagíssemos como fantoches, nossa fala e gestos ditados por algo sem nome que tudo impregna. Será isso o mesmo que dizer que, para Lacan, nós, indivíduos humanos, somos meros epifenômenos, sombras sem nenhum poder real próprio? Que nossa autopercepção como agentes livres autônomos é uma espécie de “ilusão do usuário” cegando-nos para o fato de que estamos nas mãos do grande Outro que se oculta por trás da tela e puxa os cordões?
Há, no entanto, muitas características do grande Outro que se perdem nessa noção simplificada. Para Lacan, a realidade dos seres humanos é constituída por três níveis entrelaçados: o simbólico, o imaginário e o real. Essa tríade pode ser precisamente ilustrada pelo jogo do xadrez. As regras que temos de seguir para jogar são sua dimensão simbólica: do ponto de vista simbólico puramente formal, “cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura pode fazer. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imaginário diferente, em que esta figura seria chamada de “mensageiro”, ou “corredor”, ou de qualquer outro nome. Por fim, o real é toda a série complexa de circunstâncias contingentes que afetam o curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo.
O grande Outro opera num nível simbólico. De que, então, se compõe a ordem simbólica? Quando falamos (ou quando ouvimos), nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala é fundada em nossa aceitação e dependência de uma complexa rede de regras e outros tipos de pressupostos. Primeiro há as regras da gramática, que tenho de dominar de maneira cega e espontânea: se eu tivesse de ter essas regras em mente o tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois há o pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que permite que eu e meu parceiro na conversação compreendamos um ao outro. As regras que eu sigo estão marcadas por uma profunda divisão: há regras (e significados) que sigo cegamente, por hábito, mas das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente consciente (como as regras gramaticais comuns); e há regras que ignoro que sigo, significados que ignoro que me perseguem (como proibições inconscientes). E há regras e significados cujo conhecimento não devo revelar que tenho − insinuações sujas ou obscenas que silenciamos para manter o decoro.
O espaço simbólico funciona como um padrão de comparação contra o qual posso me medir. É por isso que o grande Outro pode ser personificado ou reificado como um agente único: o “Deus” que vela por mim do além, e sobre todos os indivíduos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade, Comunismo, Nação) e pela qual estou pronto a dar minha vida. Enquanto falo, nunca sou meramente um “pequeno outro” (indivíduo) interagindo com outros “pequenos outros”: o grande Outro deve sempre estar lá. Essa referência inerente ao Outro é o tópico de uma piada infame sobre um pobre camponês que, tendo sofrido um naufrágio, vê-se abandonado numa ilha com, digamos, a Cindy Crawford. Depois de fazer sexo com ele, ela lhe pergunta como foi; sua resposta é “Foi ótimo”, mas ele ainda tem um favorzinho a pedir para completar sua satisfação: poderia ela se vestir como seu melhor amigo, usar calças e pintar um bigode no rosto? Ele lhe garante não ser um pervertido enrustido, como ela verá assim que lhe fizer o favor. Quando ela o faz, ele se aproxima dela, dá-lhe um tapinha nas costas e lhe diz com o olhar malicioso da cumplicidade masculina: “Sabe o que me aconteceu? Acabo de transar com a Cindy Crawford!” Esse Terceiro, que está sempre presente como a testemunha, nega a possibilidade de um prazer privado inocente e intacto. O sexo é sempre minimamente exibicionista e depende do olhar de outrem.
Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro é frágil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele só existe na medida em que sujeitos agem como se ele existisse. Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como Comunismo ou Nação: ele é a substância dos indivíduos que se reconhecem nele, o fundamento de toda a sua existência, o ponto de referência que fornece o horizonte supremo de significado, algo pelo qual esses indivíduos estão prontos a dar suas vidas; no entanto, a única coisa que realmente existe são esses indivíduos e suas atividades, de modo que essa substância é real apenas na medida em que indivíduos acreditam nela e agem de acordo com isso.