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Lévinas (1993:138-141) – diferença ontológica

quarta-feira 18 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Aqui vamos relembrar alguns dos motivos fundamentais do pensamento heideggeriano.

1. A coisa mais extraordinária que Heidegger   traz é uma nova sonoridade do verbo ser: precisamente sua sonoridade verbal. Être: não o que é, mas o verbo, o ’ato’ de ser (em alemão, a diferença é facilmente feita entre Sein e Seiendes, e esta última palavra não tem, para a língua, o som bárbaro do francês étant, que, por essa razão, os primeiros tradutores tiveram que colocar entre aspas). Essa contribuição é o inesquecível na obra de Heidegger. Ela resulta em :

2. A distinção radical entre ser e ente, a famosa diferença ontológica. Há uma diferença radical entre a ressonância verbal da palavra ser e sua ressonância substantiva. Essa é a diferença por excelência. É a Diferença. Toda diferença pressupõe uma certa comunidade — não há nada em comum entre ser e ente. (Isso é proposto aqui como um dito a ser des-dito).

3. Linguagem. É o lugar dessa diferença, é aí onde o ser está alojado. A linguagem é a morada do ser [1].

4. Esquecimento da diferença. Essa diferença foi esquecida, e esse esquecimento constitui o pensamento ocidental.

Esse esquecimento não é, de forma alguma, o resultado de uma deficiência psicológica do homem: ele se baseia no ser, é um evento do próprio ser. O próprio ser se fez ou se permitiu ser esquecido; ele se encobriu — e é esse encobrimento que dá origem ao esquecimento (humano) do ser. O esquecimento é uma época do ser [2].

O pensamento ocidental consiste em não entender o ser senão como o fundamento do ente (toda filosofia não tem sido nada além da linguagem do ser; é a maneira pela qual o ser pode ser dito; pois há uma linguagem silenciosa do ser à qual o homem responde).

Agora há um gesto do ser, um reinado do ser. Em alemão, usamos o verbo wesen. Das Sein west: o ser faz seu trabalho como ser (enquanto o ente é — ist). O ser west, ele faz seu trabalho, seu reinado de ser, ou conduz seu trem de ser. Portanto, podemos dizer que o ente é fundado no ser. Mas isso já é uma certa interpretação do ser, e já é um velamento. Ao dizê-lo como um fundamento, não estamos dizendo o ser em sua verdade, em seu próprio gesto — que trata-se de encontrar, no pensamento do ser.

Para Heidegger, a compreensão do ser em sua verdade foi imediatamente coberta por sua função como o fundamento universal do ser por um ser supremo, por um fundador, por Deus. O pensamento do ser, o ser em sua verdade, torna-se conhecimento ou compreensão de Deus: teo-logia. A filosofia europeia do ser torna-se teologia.

Nesse sentido, veja a leitura que ele faz de Aristóteles: o problema colocado por Aristóteles é, de fato, o do ser como ser (do ser em sua verbalidade), mas o ser é imediatamente abordado como o fundamento dos entes, e, finalmente, passa a ser chamado de Deus. A partir daí, a filosofia se torna teologia. Daí o título citado anteriormente: Die onto-theo-logische Verfassung der Metaphysik.

Não se trata, entretanto, de um caso de desvio puro e simples, mas de uma certa compreensão do ser (a partir dos entes): nada jamais teria sido pensado se não tivéssemos pensado o ser (do ente), mas, na era da metafísica, pensamos o ser como um fundamento, ou pensamos metafisicamente. Daí a maneira de Heidegger fazer as coisas, sua releitura da metafísica para descobrir o que não foi dito. Uma certa destruição (ou desconstrução) da metafísica é, portanto, necessária. No entanto, Heidegger opõe seu modo de conversar com a filosofia ao modo hegeliano: Hegel lê a filosofia como progresso; o conceito central de sua leitura é Aufhebung, uma palavra que pode ser efetivamente traduzida, com Derrida   [3], como troca [relève] (quer pensemos na troca de uma sentinela, na troca da guarda etc.; o que aufgehoben ist é ao mesmo tempo rejeitado, preservado e elevado). Para Heidegger, não é uma questão de troca, mas de retrocesso.

5. O mesmo movimento que substitui o pensamento do ser pela onto-teo-logia leva, em uma série de esquecimentos sucessivos, à ciência, que só presta atenção ao que é, que o subordina a si mesma, que quer conquistá-lo e dispor dele, que busca poder sobre o que é. Esse movimento leva, portanto, à vontade de poder (que é uma certa compreensão do ser, a maneira pela qual, em nosso tempo, o ser é ou faz seu trabalho de ser); leva à técnica. O fim da metafísica, a crise do mundo técnico, que leva à morte de Deus, é, na realidade, a extensão da onto-teo-logia.

6. Esse fim da metafísica deixa uma chance para o pensamento do ser, que não será mais ontologia. Heidegger não usa mais a palavra "ontologia", ainda ligada à lógica (ao passo que, no primeiro período de seu pensamento, a tarefa era a de uma ontologia fundamental). Esse abandono se deve a essa memória da lógica, ou seja, a maneira como o ser foi traduzido como o ser do ente. A lógica ainda carregaria a marca da lógica. A lógica ainda teria a marca da onto-teo-logia. — Heidegger, por outro lado, chama o que vem, o que pode vir, de pensamento do ser. Há uma nova época, marcada pela morte de Deus e pelo fim da onto-teo-logia.


Ver online : Emmanuel Lévinas


LÉVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris: Grasset, 2010.


[1"A linguagem é a morada do ser. Em seu abrigo, habita o homem". — essa é uma das primeiras proposições da Lettre sur l’humanisme (trans. R. Munier com texto de acompanhamento, Paris, Aubier-Montaigne, 1964, pp. 26-27) (GA9)

[2Ver, nesse sentido, as observações muito esclarecedoras de Heidegger em "Protocole d’un séminaire sur la conférence "Temps et être"", trans. J. Lauxerois e C. Roëls, em Questions IV, op.cit., pp. 58-59

[3Ver a primeira palestra, p. 85, n. 2.