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A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental

Husserl (CCEFT:65-66) – Os limites da redução cartesiana

§ 19. O interesse premente de Descartes pelo objetivismo como fundamento da sua errônea autointerpretação

quarta-feira 13 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

      

[HUSSERL  , Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Tr. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 65-66]

      

As Meditações atuaram em Descartes   e continuam historicamente até hoje a atuar sob a forma nociva de uma substituição do ego pelo próprio eu mental  , da imanência egológica pela imanência psicológica, da autopercepção egológica pela evidência do “interior” psíquico ou “autopercepção”. O próprio Descartes acredita efetivamente poder, por meio de conclusões acerca do que transcende o propriamente mental, demonstrar   o dualismo   das substâncias finitas (por intermédio da conclusão inicial da transcendência de Deus  ). Do mesmo modo, julga resolver o problema, significativo para a sua posição, que é um contrassenso -problema que retorna mais tarde, numa forma alterada, em Kant  ·, como podem as configurações da razão geradas na minha razão (as minhas próprias “clarae et distinctae perceptiones”) - as da matemática e da ciência matemática da natureza - reivindicar uma validade objetivamente “verdadeira”, uma validade metafisicamente transcendente? O sentido do que a Modernidade denomina teoria   do entendimento ou da razão, num sentido pleno  , ou seja, a crítica da razão ou [65] problemática transcendental, radica nas Meditações cartesianas. A Antiguidade   não conheceu nada de semelhante, visto serem-lhe estranhas a epoché cartesiana e o seu ego. Assim, começa com Descartes, de fato, um filosofar de espécie inteiramente nova, que busca as suas fundamentações últimas no [domínio] subjetivo. Mas que Descartes, não obstante a sua fundamentação subjetiva, se tenha fixado no puro objetivismo só se tornou possível porque a mens  , que de início se mantinha por si mesma na epoché, e funcionava como fundamento absoluto do conhecimento para as fundamentações das ciências objetivas (dito de modo universal  , da filosofia), parecia simultaneamente cofundada nestas mesmas ciências objetivas, nomeadamente, na psicologia, como tema legítimo dessas ciências. Não ficou claro para Descartes que é impossível ao ego <84> - o seu eu, despojado de mundo pela epoché, em cujas cogitationes funcionais o mundo possui todo o sentido de ser que alguma vez possa ter para ele - ocorrer no mundo como tema, uma vez que tudo o que é mundano e, logo, também o próprio ser mental, o eu   no sentido habitual, cria o seu sentido justamente a partir dessas funções. Era-lhe, então, naturalmente inacessível a observação de que o ego, tal como vem a ser descoberto na epoché como sendo para si [Für sich] mesmo, não é ainda “um” eu, que pode ter fora de si outros ou muitos coeus [Mit-lche]. Permaneceu-lhe oculto que todas as diferenças tais como eu e tu, interior e exterior, só se “constituem” no ego absoluto. Compreende-se, então, por que é que Descartes, na sua pressa de fundamentar o objetivismo e as ciências exatas como proporcionando conhecimento metafisicamente absoluto, não se propôs a tarefa de questionar sistematicamente o puro ego - permanecendo consequentemente na epoché - e aquilo que lhe é próprio, como atos e faculdades  , e o fato de que nestes atos e faculdades ele gera, como realização   intencional. Posto que não se detém nisto, não se lhe descortina a gigantesca problemática de, a partir do mundo no ego, como “fenômeno  ”, questionar retrospectivamente, de modo sistemático, em que realizações imanentes do ego, efetivamente identificáveis, o mundo recebeu o seu sentido e ser. É manifesto   que uma analítica do ego como mens   era para ele assunto para a futura psicologia objetiva.


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