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Fernandes (SH:49-51) – a ideia de "ser em si"

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

A ideia de “Ser enquanto Ser”, ou de “Ser em si”, tem sido identificada tradicionalmente, na Filosofia ocidental, sobretudo com três noções, todas elas dependentes, ainda que de maneiras obscuras e insidiosas, da noção incoerente (não que eu tenha a coerência em alta conta!) de “sujeito imutável da mudança” [sic]: são elas as noções de substância, essência e existência. Essas identificações, afirmo, constituem um tremendo equívoco, têm levado a metafísica a uma série de desastres e tenho dedicado boa parte de meus trabalhos filosóficos a remediar o que talvez seja irremediável. Se fizermos abstração do magistério universitário, pois tenho a impressão de que hoje em dia quase ninguém mais lhe dá ouvidos, além de meu estudo de Kant   e Popper   (Foundations of Objective Knowledge), remeto o leitor para Filosofia da Consciência, onde está minha primeira tentativa, digamos, mais decidida, de compreender essas artimanhas do pensamento que são as noções de “substância”, em qualquer sentido, a de “essência”, em quase todos os sentidos, e, sobretudo, a de “existência”, que, além de desconstruída, deve ser objeto de uma reconstrução. Afinal, “aquilo que muda” ou “dura”, ou o “sujeito do devir”, só é o que é precisamente porque não muda, não devém, e, portanto, não “tem duração” ! E ainda se quer que tais coisas “permaneçam idênticas a si mesmas ao longo do tempo ou do espaço” [sic], o que é simplesmente absurdo (na língua do Império, nonsense).

Como anunciei na Introdução, a Ontologia que adoto, já desde o livro de 1995, não é realmente do tipo tradicional. Na verdade, foge inteiramente da usual (desafio assim, de bom grado, os caçadores de precedentes!). O Ser, em minha concepção, não é substância, nem nos sentidos clássicos, nem nos sentidos modernos da palavra. (V. Filosofia da Consciência, Sec. 2.2: “A imitação do Ser chamada ‘Substância’”, e o instrutivo artigo de Puntel, 2001). Tampouco é essência (V. Filosofia da Consciência, Sec. 2.5: “A Imitação do Ser chamada ‘Essência’: o Erro de Husserl  .”) Distingue-se sobretudo de “existência”, que defino como o estar projetado para fora do Ser, como Não-Ser.

Imediatamente, duas desqualificações: a “Existência” não é o (Dasein); tampouco é “O Nada”. A “Existência”, ou Não-Ser, não tem, de fato, “ser” algum, nem mesmo o “ser” que os fenomenólogos atribuem àquilo que é dado ao que chamam de “intencionalidade da consciência”. Fique o leitor, por enquanto, com o que está na Introdução: o Não-Ser é o que não é o Ser, é o “contraste”, embora necessário, para que haja verdadeira Experiência. E acrescente-lhe algo bastante intuitivo: não se injetam contrastes no próprio sangue para que, aos raios X, tomem-se opacas certas partes do corpo, que, sem o contraste, seriam transparentes? A isto vá acrescentando, também por enquanto, o seguinte: o “ser” de um ente (o fato de o ente ser indefinidamente, portanto diversamente determinável, ou reidentificável) só pode ser o seu... ser — ainda que seja o ser daquele ente determinado —, só pode ser o seu ser enquanto ser, ou o seu ser em si, pois o Ser não pode “ser” outra coisa, senão “O Que É”. Por exemplo, o ser de um ente não pode estar “na” identificação daquele ente (a outro ente?!), ou “na” arena subjacente do espaço ou do tempo, porque não pode “ser outra coisa”, “mudar”, “ter duração” ou “movimento” e, menos ainda, “subjazer” ao que quer que não “seja”, que não tenha ser, que esteja fora do Ser — ou, na minha terminologia “protestante”, ou “reformada”, subjazer ao que “exista”. Longe de poder ser um tipo (o que quer que se repita ou esteja presente em mais de um ente) ou um composto hylemórfico, etc., o ser de um ente, ou um ser determinado, não é o que quer que seja, que nele for determinado ou identificado: o que é determinável ou identificável é o ente, não o ser do ente! (Por favor, fique o leitor — e conforme-se! — com essa explicação en passant do que viria a ser um “tipo”, pois é, dentre outras coisas, da incapacidade de a Ciência resolver o “problema (em aberto!) do significado da distinção token/type, que decidi fazer essa reforma da Ontologia. (“Murmúrios na Catedral!” Uso o título de um review de Dennett sobre A Mente Nova do Rei [The Emperor ‘s New Mind, de Roger Penrose] para me dar conta do que neste momento deve estar pensando, derrisoriamente, um “filósofo analítico”, ou seja, “e Quine?!!!” ; “e Wittgenstein  ?!!!”, etc.)

Proponho que o ser de um ente seja uma interface-justamente a interface entre Ser e Não-Ser que faz de um ente, por um lado, um ser determinado, reidentificável, e, por outro lado, um indivíduo, único, irrepetível (não “identificável” a outro), independente de espaço ou tempo, e incomparável (não meramente “diferente” ). Ora, aquilo que está “deste último lado”, o lado do indivíduo, é “absoluto”, não “subjaz”, não “dura”, não “permanece idêntico a si mesmo” [sic], “ao longo do tempo e do espaço” e, sobretudo, não se “identifica” (não “existe” ). O leitor terá paciência para ler minhas explicações?!... Mas quanto poderá ele... suportar?


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj