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SER HUMANO

Fernandes (SH:283-286) – Falácia Axiológica

A QUESTÃO DA ÉTICA

terça-feira 14 de novembro de 2023

      

FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano  . Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005, p. 283-286.

      

Chamo "falácia axiológica" a derivação da tese de que o "valer" e os "valores" teriam alguma espécie de "ser", seriam simulacros passíveis de compreensão, "entes", embora jamais por excelência(!), dotados de algum estatuto ontológico positivo, seja de que tipo for (em minha terminologia, a tese de que poderiam integrar a Experiência), tese comumente derivada a partir do pressuposto (não nos meus termos, obviamente) de que a Mente  , o Pensamento e a Linguagem projetam fora do Ser, na Existência (ou Não-Ser), como simulacros — jamais como interfaces, pois se trata aqui de dualidades inautênticas —, as distinções entre ser e valer, fato e norma, "é" e deve, descrições e prescrições, etc. São inautênticas as dualidades em que um dos termos é, em última análise, apenas a ausência ou a sombra do outro. São falsas as dualidades que equivalem a identidades verdadeiras. São autênticas as dualidades irredutíveis. E são arcanas aquelas dualidades irredutíveis cuja coincidência de fronteiras constitui o sagrado  , ou a Vida da Experiência. Isto sugere a pergunta: não seriam sagradas todas as dualidades irredutíveis?! A resposta   fica para um próximo livro, pois exige a cuidadosa e trabalhosa extensão do sagrado   a todas as esferas e dimensões da Vida.

A premissa da falácia axiológica é verdadeira, e sua conclusão é falsa. Eis a principal tese desta Seção. O Instrumento produz, em sua superabundância intra-reativa inconsciente, tanto aquilo que pode ser compreendido e, ainda assim, guardar com o identificado (o Existente) alguma semelhança  , quanto aquilo que não poderia integrar uma Aparição sem... desaparecer, ou seja, sem a Desaparição do modo como o Instrumento o tomara como objeto. ("Reação" é sempre usado por mim   para indicar que não se trata de "ação", que é pura espontaneidade criadora, sem pressuposição de tempo, etc. Não cabe discutir aqui a desconstrução da ideia de "causa  /efeito", ou perguntar por aquilo A QUE o Instrumento "reagiria". Nagarjuna   já o fez muito bem. Além disso, a "reatividade" do Instrumento não tem começo nem fim, pois o tempo lhe é uma produção ilusória inerente). A Ciência, que examinamos no último Capítulo, está no primeiro caso; a Axiologia e, sobretudo a Ética, estão no segundo. Admito que a Mente  , o Pensamento e a Linguagem tomam como objeto (projetam como simulacros) as distinções a que me referi no enunciado da tese, mas afirmo que o fazem como principal expediente para produzir o maior contraste possível com o Ser  , o que pode (sem ser necessário) requerer a construção de um Mundo como Ideia de que a Compreensão é Impossível. "Mundo" é entendido aqui como tudo que pode ser tomado como objeto (objetivado, projetado, etc.) pelo Instrumento e ter os dois   destinos possíveis, dos quais já nos ocupamos tantas vezes ao longo deste livro: ser ou não ser compreendido na Experiência. Esse "Mundo", produzido pelo Instrumento para gerar uma distância infinita, ou o maior contraste possível entre Ser e Não-Ser, até pode ser compreendido, mas não poderia integrar o instante   eterno de uma Aparição (uma autêntica Experiência) sem... Desaparecer. Aquelas distinções referidas no enunciado da tese, que são as distinções da Axiologia, não são objetos compreensíveis pela Experiência em si mesma, que constitui nosso Ser (sem Desaparição). Eu mesmo não consigo compreendê-las, o que quer dizer que, quando as compreendo, elas desaparecem(!), e, se me proponho a escrever   sobre elas uma Seção, é para expô-las à luz do Espírito, fazendo com que, compreendidas, desapareçam. (Tomara que esta Seção, pelo menos, possa ser breve como planejo, que o leitor já deve estar cansado, e ainda temos que resolver (?!!!), não: dissolver  , não: enfrentar... o "Problema do Mal") As distinções axiológicas e, sobretudo, éticas estão para sempre condenadas a permanecer no plano da Existência, a infinita distância do Ser, servindo ao propósito meramente instrumental (a serviço do máximo contraste) de impedir a equanimidade, que é a suspensão absoluta de juízos de aceitação ou não-aceitação das coisas em sua "comotalidade", tais como se integram às Experiências, em Presença de Espírito. Então não se sabe, desde sempre, pelas tradições sagradas, que a Presença de Espírito atende tanto ao algoz quanto à vítima, já que todo ataque   é um pedido de ajuda  ? Não estariam resumidos nesse saber injunções como a de amar   o inimigo  , voltar a outra face, não levantar a voz em defesa própria e, sobretudo, não julgar? Mas não conheço ninguém que: 1) não lhes preste deferência; e 2) as pratique. Talvez eu só ande em más companhias, diria Aristóteles... O juízo é o principal instrumento que o Instrumento usa para manter as coisas infinitamente longe do Ser. A suspensão do julgar, ou suspensão de juízos de valor  , no entanto, nada tem a ver com aquilo que o Instrumento toma como "indiferença", ou "insensibilidade", ou "falta de atenção" ao que "é", sendo, ao contrário, uma condição sine qua non da autêntica Experiência. Aprofundando a análise, as distinções valorativas, enquanto distinções que a Mente, o Pensamento e a Linguagem introduzem no seu "Mundo", servem ao propósito, constitutivo do Instrumento de dividir para reinar sobre a Existência, ou seja, ao seu propósito constitutivo de lidar não com o medo da "morte", como ordinariamente se pensa, mas com o medo de Não-Ser, que lhe é uma emoção inerente. (Amor, no sentido, não de eros, mas de agape, charitas ou karuna  , por um lado, e medo, por outro lado, são emoções mutuamente excludentes. O Instrumento só conhece, sem compreender o que conhece. E só conhece o amor na primeira das acepções referidas acima). Compreendidos, em Presença de Espírito, na imanência da Experiência em si mesma, e concomitante espontaneidade absoluta da ação consciente, os "valores" desaparecem. (O Espírito é senhor absoluto das Aparições e Desaparições.) Ou, o que é a mesma coisa, não valem coisa alguma. Não compreendidos, em Ausência de Espírito, na inconsciência do Instrumento, que nada é em si mesmo  , valem o que valerem suas maquinações existenciais, enquanto ele permanecer abandonado a "si mesmo" ou ao "si mesmo", entregue à utilidade relativa das maquinações inconscientes.


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