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Barbuy: a crise do senso comum

sábado 13 de junho de 2020

  

É fora de dúvida que o senso comum, sob a forma da consciência sensível ou moral, unida à inteligência produz o sentimento da personalidade. A crise do senso comum, isto é, o isolamento entre as elaborações da inteligência e o mundo da realidade representa uma dissociação da personalidade: nem por menos a loucura é uma desintegração das faculdades internas de que resulta uma inadequação do indivíduo com a realidade; a loucura pode não destruir a razão, mas destrói sempre o senso comum que liga a razão à realidade. O senso comum é também o auto-sentimento, cuja raiz está na substancialidade do indivíduo e na sua identidade consigo mesmo; sem o auto-sentimento seria impossível a coesão interna e a experiência interior vivida; o auto-sentimento não só é concomitante e interior ao sentimento, como ainda é ele que faz com que o sentimento seja sentimento; o auto-sentimento resulta de uma fusão da sensibilidade com a inteligência [1]; é ele que dá um sentido às experiências íntimas, traduzindo a inefável intuição que tem o indivíduo de ser ele mesmo (individuum, que não pode ser dividido), uma entidade distinta de todas as demais e que tem de si mesma uma intuição que a psicologia nunca poderá interpretar; o sentimento da personalidade não é capítulo da psicologia mas da mística e da metafísica; se fosse possível uma psicologia científica autêntica, o método introspectivo seria o único realmente válido; mas a introspecção não se deve confundir com o auto-sentimento, o qual não se pode verbalizar nem traduzir analiticamente; no fundo, a introspecção é uma observação externa, uma extrospecção na qual o indivíduo em vez de tomar os outros se toma a si mesmo por objeto. A introspecção é uma duplicata da extrospecção e na mesma medida em que pudesse captar um estado interior, seria inefável, identificar-se-ia com o auto-sentimento, seria uma intuição íntima e profunda, nenhuma palavra a poderia exteriorizar. É por isso que uma psicologia autêntica, como compenetração sympathica do outro não é uma ciência, no sentido vulgar que assumiu esta palavra, e sim uma sabedoria da vida; não comporta um sistema de classificação em que cada fenômeno recebe um nome e uma demarcação; do mesmo modo, o conjunto dos sentidos internos, anterior a toda excogitação e a todas as sistematizações científicas, dirige a vida mais sabiamente do que os tratados de pedagogia e de psicologia. Mas a sabedoria da vida desaparece na mesma proporção em que as faculdades intelectivas se dissociam da consciência sensível e uma série de explicações e sistemas inteiramente fundados no abstrato passam a querer governar a vida, cuja sabedoria não pode derivar senão da experiência concreta.

A crise do senso comum ou da ratio particularis começa com a separação entre o intelectivo e o sensitivo e o domínio absoluto do senso relacional, abstrato, com o desligamento de todos os valores particulares e concretos.

[Excerto de BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 137-138]


Ver online : SENSO COMUM


[1A esta fusão os escolásticos denominavam collatio, que indica a assimilação mas também a distinção de ambas as faculdades, distinção que não fizeram os cartesianos para os quais a aestimativa, por ex., se desfigura confundindo-se com a inteligência pura, enquanto que, para os positivistas, são os juízos intelectuais que se confundem com a aestimativa, desfiguradas ambas as faculdades que tomam como graus diferentes da mesma faculdade.