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Fernando Pessoa

Ávaro de Campos: Viver é desencontrar-se consigo mesmo

(17-6-1929)

domingo 24 de maio de 2020, por Cardoso de Castro

      
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração  .
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher   faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria  
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amamos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver   é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus  , a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim  !
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior  ,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente   quando o sol   está alto.
Boa noite na Austrália!

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