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Arendt (LM:19-23) – a natureza experiencial do mundo
quinta-feira 14 de outubro de 2021
Abranches et alii
Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer — a palavra "aparência" não faria sentido — se não existissem receptores de aparências: criaturas vivas capazes de conhecer, reconhecer e reagir — em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer — não apenas ao que está aí, mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.
Já que os seres sensíveis — homens e animais, para quem as coisas aparecem e que, como receptores, garantem sua realidade — são eles mesmos também aparências, próprias para e capazes tanto de ver como de serem vistas, ouvir e serem ouvidas, tocar e serem tocadas, eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal; não são menos "objetivos" do que uma pedra ou uma ponte. A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade "objetiva". O que usualmente chamamos "consciência", o fato de que estou cônscio de mim mesmo, e que, portanto, em algum sentido, posso aparecer para mim mesmo, jamais seria o bastante para assegurar a realidade (o Cogito me cogitare ergo sum, de Descartes , é um non sequitur, pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece, a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores). Vista da perspectiva do mundo, cada criatura que nasce chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem; são criaturas adequadas à existência mundana. Os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos — percebendo e sendo percebidos — ao mesmo tempo.
Talvez nada surpreenda mais neste nosso mundo, no entanto, do que a infinita diversidade de suas aparências, o simples valor de entretenimento de suas visões, seus sons e seus odores, algo que quase nunca é mencionado por pensadores e filósofos. (Somente Aristóteles , pelo menos incidentalmente, incluía a vida de fruição passiva dos prazeres que nossos órgãos corporais proporcionam entre os três modos de vida a serem escolhidos por aqueles que, não estando sujeitos à necessidade, podem devotar-se ao kalon, ao que é belo, em contraposição ao que é necessário e útil). Essa diversidade é correspondida por uma igualmente estarrecedora diversidade de órgãos sensoriais entre as espécies animais, de tal modo que o que realmente aparece às criaturas vivas assume uma enorme variedade de forma e figura: cada espécie animal vive em um mundo próprio. Ainda assim, todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal. Em primeiro lugar, um mundo que lhes aparece; em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem, o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e que sempre haverá um mundo depois de sua partida.
Estar vivo significa viver em um mundo que precede à própria chegada e que sobreviverá à partida. Nesse nível do estar meramente vivo, o aparecer e o desaparecer — à medida que um segue o outro — são os eventos primordiais que, como tais, demarcam o tempo, o intervalo temporal entre o nascimento e a morte. O finito intervalo vital de cada criatura determina não só sua expectativa de vida mas também sua experiência do tempo; ele fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais, não importa quanto essas mensurações transcendam o intervalo em direção ao passado ou ao futuro. Assim, a experiência vivida da duração de um ano muda radicalmente ao longo de nossa vida. Um ano, que consiste em um quinto da existência para uma criança de cinco anos, deve parecer muito maior do que quando chegar a constituir um vigésimo ou um trigésimo do tempo dessa criatura na Terra. Todos sabemos como os anos passam cada vez mais rapidamente à proporção que envelhecemos, até que, com a proximidade da velhice, a velocidade volta a diminuir, porque começamos a medi-los com referência à data psicológica e somaticamente antecipada de nossa partida. Contra esse relógio inerente a seres vivos que nascem e morrem está o tempo “objetivo”, segundo o qual a duração de um ano não muda nunca. Esse é o tempo do mundo, e seu pressuposto subjacente — independente de quaisquer crenças científicas ou religiosas — é que o mundo não tem princípio nem fim, um pressuposto que só parece natural a seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que a eles sobreviverá.
Em contraste com o estar-aí inorgânico da matéria morta, os seres vivos são meras aparências. Estar vivo significa ser possuído por um impulso de auto-exposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um. As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie. Parecer — o parece-me, dokei moi — é o modo — talvez o único possível — pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido. Aparecer significa sempre parecer para outros, e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua fenomenalidade, uma espécie de disfarce que pode de fato — embora não necessariamente — ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência, independentemente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade de espectadores.
O impulso de auto-exposição — responder, apresentando-se, ao efeito esmagador de ser apresentado — parece ser comum a homens e animais. E assim como o ator depende do palco, dos outros atores e dos espectadores para fazer sua entrada em cena, cada coisa viva depende de um mundo que solidamente aparece como a locação de sua própria aparição, da aparição de outras criaturas com as quais contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua existência. Vista da perspectiva dos espectadores para quem ela aparece e de cuja presença ela finalmente desaparece, cada vida individual, seu crescimento e declínio, é um processo de desenvolvimento no qual uma entidade desdobra-se em um movimento ascendente, até que todas as suas propriedades estejam plenamente expostas; essa fase é seguida por um período de permanência — florescência ou epifania, por assim dizer — que, por sua vez, é sucedido pelo movimento descendente de desintegração, que termina com o completo desaparecimento. São muitas as perspectivas segundo as quais esse processo pode ser visto, examinado e compreendido; mas o critério pelo qual uma coisa viva essencialmente é permanece o mesmo: na vida cotidiana, assim como na pesquisa científica, ela é determinada pelo intervalo de tempo relativamente curto de sua plena aparição, de sua epifania. A escolha guiada pelo critério único da completude e da perfeição na aparição seria inteiramente arbitrária se a realidade não fosse, antes de tudo, de uma natureza fenomênica.
A primazia da aparência, para todas as criaturas vivas frente às quais o mundo aparece sob a forma de um parece-me, é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidar — as atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais. Pois embora haja grandes diferenças entre essas atividades, todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece, e um movimento para trás em direção ao eu. Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores, criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele, dele tirar proveito e com ele nos entreter, mas tendo ainda alguma outra região como habitat natural. Contudo, somos do mundo, e não apenas estamos nele, também somos aparências, pela circunstância de que chegamos e partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo. Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do corpo, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas, mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais. Como certa vez Merleau-Ponty formulou, “só posso escapar do ser para o ser”, e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo.
ARENDT , Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 17-20
Original
The world men are born into contains many things, natural and artificial, living and dead, transient and sempiternal, all of which have in common that they appear and hence are meant to be seen, heard, touched, tasted, and smelled, to be perceived by sentient creatures endowed with the appropriate sense organs. Nothing could appear, the word “appearance” would make no sense, if recipients of appearances did not exist—living creatures able to acknowledge, recognize, and react to—in flight or desire, approval or disapproval, blame or praise—what is not merely there but appears to them and is meant for their perception. In this world which we enter, appearing from a nowhere, and from which we disappear into a nowhere, Being and Appearing coincide. Dead matter, natural and artificial, changing and unchanging, depends in its being, that is, in its appearingness, on the presence of living creatures. Nothing and nobody exists in this world whose very being does not presuppose a spectator. In other words, nothing that is, insofar as it appears, exists in the singular; everything that is is meant to be perceived by somebody. Not Man but men inhabit this planet. Plurality is the law of the earth.
Since sentient beings—men and animals, to whom things appear and who as recipients guarantee their reality—are themselves also appearances, meant and able both to see and be seen, hear and be heard, touch and be touched, they are never mere subjects and can never be understood as such; they are no less “objective” than stone and bridge. The worldliness of living things means that there is no subject that is not also an object and appears as such to somebody else, who guarantees its “objective” reality. What we usually call “consciousness,” the fact that I am aware of myself and therefore in a sense can appear to myself, would never suffice to guarantee reality. (Descartes Cogito me cogitare ergo sum is a non sequitur for the simple reason that this res cogitans never appears at all unless its cogitationes are made manifest in sounding-out or written-down speech, which is already meant for and presupposes auditors and readers as its recipients.) Seen from the perspective of the world, every creature born into it arrives well equipped to deal with a world in which Being and Appearing coincide; they are fit for worldly existence. Living beings, men and animals, are not just in the world, they are of the world, and this precisely because they are subjects and objects—perceiving and being perceived—at the same time.
Nothing perhaps is more surprising in this world of ours than the almost infinite diversity of its appearances, the sheer entertainment value of its views, sounds, and smells, something that is hardly ever mentioned by the thinkers and philosophers. (Only Aristotle at least incidentally counted the life of passive enjoyment of the pleasures our bodily organs provide as among the three ways of life that can be elected by those who, not being subject to necessity, can devote themselves to the kalon, to what is beautiful in opposition to what is necessary and useful.) This diversity is matched by an equally astounding diverseness of sense organs among the animal species, so that what actually appears to living creatures assumes the greatest variety of form and shape: every animal species lives in a world of its own. Still, all sense-endowed creatures have appearance as such in common, first, an appearing world and second, and perhaps even more important, the fact that they themselves are appearing and disappearing creatures, that there always was a world before their arrival and there always will be a world after their departure.
To be alive means to live in a world that preceded one’s own arrival and will survive one’s own departure. On this level of sheer being alive, appearance and disappearance, as they follow upon each other, are the primordial events, which as such mark out time, the time span between birth and death. The finite life span allotted to each living creature determines not merely its life expectancy but also its time experience; it provides the secret prototype for all time measurements no matter how far these then may transcend the allotted life span into past and future. Thus, the lived experience of the length of a year changes radically throughout our life. A year that to a five-year-old constitutes a full fifth of his existence must seem much longer than when it will constitute a mere twentieth or thirtieth of his time on earth. We all know how the years revolve quicker and quicker as we get older, until, with the approach of old age, they slow down again because we begin to measure them against the psychologically and somatically anticipated date of our departure. Against this clock, inherent in living beings who are born and die, stands “objective” time, according to which the length of a year never changes. This is the time of the world, and its underlying assumption—regardless of any religious or scientific beliefs—is that the world has neither beginning nor end, an assumption that seems only natural for beings who always come into a world that preceded them and will survive them.
In contrast to the inorganic thereness of lifeless matter, living beings are not mere appearances. To be alive means to be possessed by an urge toward self-display which answers the fact of one’s own appearingness. Living things make their appearance like actors on a stage set for them. The stage is common to all who are alive, but it seems different to each species, different also to each individual specimen. Seeming—the it-seems-to-me, dokei moi—is the mode, perhaps the only possible one, in which an appearing world is acknowledged and perceived. To appear always means to seem to others, and this seeming varies according to the standpoint and the perspective of the spectators. In other words, every appearing thing acquires, by virtue of its appearingness, a kind of disguise that may indeed—but does not have to—hide or disfigure it. Seeming corresponds to the fact that every appearance, its identity notwithstanding, is perceived by a plurality of spectators.
The urge toward self-display—to respond by showing to the overwhelming effect of being shown—seems to be common to men and animals. And just as the actor depends upon stage, fellow-actors, and spectators, to make his entrance, every living thing depends upon a world that solidly appears as the location for its own appearance, on fellow-creatures to play with, and on spectators to acknowledge and recognize its existence. Seen from the viewpoint of the spectators to whom it appears and from whose view it finally disappears, each individual life, its growth and decline, is a developmental process in which an entity unfolds itself in an upward movement until all its properties are fully exposed; this phase is followed by a period of standstill—its bloom or epiphany, as it were—which in turn is succeeded by the downward movement of disintegration that is terminated by complete disappearance. There are many perspectives in which this process can be seen, examined, and understood, but our criterion for what a living thing essentially is remains the same: in everyday life as well as in scientific study, it is determined By the relatively short time span of its full appearance, its epiphany. The choice, guided by the sole criteria of completeness and perfection in appearance, would be entirely arbitrary if reality were not first of all of a phenomenal nature.
The primacy of appearance for all living creatures to whom the world appears in the mode of an it-seems-to-me is of great relevance to the topic we are going to deal with—those mental activities by which we distinguish ourselves from other animal species. For although there are great differences among these activities, they all have in common a withdrawal from the world as it appears and a bending back toward the self. This would cause no great problem if we were mere spectators, godlike creatures thrown into the world to look after it or enjoy it and be entertained by it, but still in possession of some other region as our natural habitat. However, we are of the world and not merely in it; we, too, are appearances by virtue of arriving and departing, of appearing and disappearing; and while we come from a nowhere, we arrive well equipped to deal with whatever appears to us and to take part in the play of the world. These properties do not vanish when we happen to be engaged in mental activities and close the eyes of our body, to use the Platonic metaphor, in order to be able to open the eyes of the mind. The two-world theory belongs among the metaphysical fallacies but it would never have been able to survive for so many centuries if it had not so plausibly corresponded to some basic experiences. As Merleau-Ponty once put it, “I can flee being only into being,” and since Being and Appearing coincide for men, this means that I can flee appearance only into appearance. And that does not solve the problem, for the problem concerns the fitness of thought to appear at all, and the question is whether thinking and other invisible and soundless mental activities are meant to appear or whether in fact they can never find an adequate home in the world.
Ver online : Hannah Arendt
ARENDT, H. The Life of the Mind: the Groundbreaking Investigation on How We Think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1981 [LM]